Sentado junto à janela, indo e vindo na cadeira de balanço, Américo dividia o olhar entre os passantes e o relógio da parede. Seu sobrinho demorava a chegar, e a ansiedade o torturava sem trégua.
E nesse turbilhão em que se encontravam seus pensamentos, uma dúvida insistia em se fazer ouvir: Júlio falara sério quanto a tirá-lo do asilo?
De vez em quando um enfermeiro encostava-se à ombreira da porta, desejava muitas felicidades pela mudança de lar, e despedia-se sorridente, carinho esse que aumentava a sua esperança.
De quando em vez um outro idoso aparecia, relembrava-o dos momentos de mútua consolação, mas se afastava entristecido, revelando não ter sido ele o favorecido pelo destino.
E ao mesmo tempo em que uma lágrima já se ia mostrando, os olhos do rejeitado conseguiam distinguir ao longe a figura do sobrinho, que entrava apressado pelo portão principal.
Ante a promessa que se cumpria, o pobre tio não conseguiu conter a emoção que despontava, e chorou de alegria como aquela criança que, muito pobre, acaba enfim ganhando o presente que há muito pedira para Papai Noel.
Assim que entrou no quarto, Júlio deparou-se com o esforço do tio a tentar levantar-se. Ele só tinha um pensamento: Precisava abraçá-lo!
O sobrinho, então, tratou de acalmá-lo, e conseguiu reafirmando que o levaria para morar em sua casa.
As lágrimas, porém, não deixaram de fluir, sobretudo quando Américo soube que o quarto em que iria ficar tinha sido preparado com esmero, deixando à criatividade infantil de seus sobrinhos-netos alguns toques à decoração, e tudo sob a supervisão de sua mãe, Patrícia.
O atraso, justificou-se Júlio, deveu-se a um pneu furado, ao esquecimento quanto à reposição do macaco que furtaram, e à ausência de uma borracharia nas proximidades.
Mas como tudo acabava bem, Américo nem pensou em comentar, e ofereceu os braços e um sorriso ao sobrinho, a quem enlaçou com a gratidão dos náufragos recém-salvos.
Como as poucas malas de Américo já estavam prontas desde o dia anterior, ao sobrinho restava apenas levá-las para o carro. No entanto, assim que Júlio para elas se virou, demonstrando a intenção de apanhá-las, seu tio indagava se ainda cheirava flores.
A pergunta, que à primeira vista parecia descabida, amalucada, tinha sim razão de ser. E como respondesse afirmativamente, seu tio pediu que esperasse um pouco e que se sentasse ao seu lado; queria conversar.
Júlio estranhou em princípio. Afinal, deduzia que o maior desejo de seu tio era sair daquele asilo o mais rápido possível. No entanto, por respeito e por um quê de curiosidade, acabou fazendo o que pedia.
Américo tornou a olhar pela janela. Sua visão, entretanto, perdia-se, como se não houvesse um primeiro plano. As pessoas apressadas, os carros barulhentos, as casas envelhecidas, os raros prédios que despontavam… tudo não mais existia. O que via? O passado. E foi sobre isso que começou a falar.
Lembrava-se do seu único irmão, o caçula Armando, falecido há quase cinco anos. Se bem que fossem unidos, um era o oposto do outro. Américo era intrépido, desmesuradamente ambicioso, e na quase totalidade das vezes só olhava para o próprio umbigo. Armando era um pouco tímido, comedido, e sempre perguntava se da comida servida à mesa a empregada lembrara-se de separar a sua quota; preocupação essa sempre criticada pelo primogênito.
É claro que essa disparidade fez diferença nas vidas dos irmãos. Assim, o mais velho preferiu a área financeira, conseguindo um excelente emprego em um poderoso banco de investimentos. Já Armando preferiu as humanidades, e foi aprovado em concurso público como professor de literatura.
Ambos fizeram carreira. Américo galgou a sua com extrema competência, chegando a conquistar o ambicionado – e invejado – cargo de diretor para a América Latina; se bem que, para obtê-lo, foram necessárias também uma e outra rasteiras em seus concorrentes, prática essa silenciosamente admitida na instituição a que se dedicou, haja vista a estimulante competitividade de que se embebem os que nela estão dispostos a vencer.
Armando, ao contrário do irmão, jamais admitiu passar a perna em quem quer que fosse. E se chegou a tomar posse do último cargo que o ensino permitia, exerceu suas funções com a probidade e a honradez que sempre o caracterizaram. Aposentou-se com os proventos a que tinha direito e encarou a inatividade como sempre viveu – imanente às belas-letras, sem luxo nenhum, e com uma sobriedade que poucos chegaram a conhecer.
Mas muito antes de se aposentarem, prosseguia Américo, era natural que os irmãos quisessem transmitir aos filhos as suas maneiras de encarar a vida. E como suas eleitas eram almas afins, partilhando, portanto, dos mesmos gostos e interesses, Júlio e o primo Pedro receberam em dose dupla os valores cultivados por seus pais.
Daí que enquanto Pedro ganhava, por exemplo, espadas e revólveres de plástico, além de joguinhos de videogame em que as lutas e a violência são um fim em si mesmas, e tudo para que sua coragem fosse despertada e ele tivesse plenas condições de sobreviver na selva de pedra, Armando preferia presentear a Júlio com brinquedos educativos, sem, contudo, ter a pretensão de isolá-lo dos avanços cibernéticos; apenas que nunca relaxava quanto ao conteúdo que entregaria ao filho.
De outra parte, Américo incutia no filho os sentimentos que sempre o moveram, e que, segundo pensava, foram a razão mesma do seu sucesso – a ambição desmedida e o egoísmo travestido de previdência. Se quisesse sempre mais, e se pensasse em primeiro lugar em si mesmo, tudo conquistaria e tudo preservaria. Portanto, se amava Pedro, tinha o inabdicável dever de ensinar a melhor maneira de se comportar, pois se o filho não agisse dessa forma, perderia para os outros tudo aquilo que o mundo dispunha à venda.
Por seu turno, Armando alicerçava em Júlio as suas regras do bom viver. Ensinava, entre outros valores, o respeito para com todos, a importância das amizades verdadeiras, a postura ética intransacionável, e o amor pela natureza.
Júlio era aluno aplicado. E entre as muitas lições aprendidas de Armando, o amor pelas flores representava o feedback mais gratificante, o espelho que melhor refletia a afinidade entre pai e filho. Aliás, justamente por ser algo natural, espontâneo, essas demonstrações de amor aconteciam onde quer que estivessem, pouco importando se outros olhos os vigiassem e lhes endereçassem críticas ou sarcasmos. Assim, durante um passeio, por exemplo, se Armando visse uma linda flor, parava diante dela, tomava-a com cuidado, sorvia o perfume, e a oferecia ao filho. E Júlio imitava seu pai com o mesmo entusiasmo. Depois, trocavam impressões.
Ora, como é natural, os irmãos às vezes combinavam de se encontrar em algum lugar, fosse para matar as saudades e colocar as conversas em dia, fosse para que os primos pudessem conviver e estreitar os laços de amizade. Por isso, em mais de uma vez Américo teve o desprazer de presenciar aquelas manifestações de amor. E em nenhuma delas fez questão de camuflar a zombaria que de seu espírito emergia.
Se Armando percebia a atitude do irmão – e não foram poucas essas vezes –, relevava, pois o compreendia e o amava.
Uma tarde, no entanto, marcaria Américo para o resto de sua vida; daí a pergunta que fizera ao sobrinho, sobre se ainda gostava de cheirar flores. Foi em um feriado de sete de setembro, em que, por ser de apenas três dias, ninguém se dispôs a pegar a estrada.
Os primos brincavam juntos de super-heróis e um pouco afastados do piquenique onde estavam seus pais.
Dessas aventuras passaram ao pega-pega, sendo que Júlio era quem fugia. Em determinado momento, ele, que já abrira uma boa vantagem sobre Pedro, viu à frente uma touceira apinhada de jasmins-do-poeta.
E como conhecesse essa planta, Júlio esquecia-se de correr e parava diante da moita, haurindo o máximo que podia da marcante fragrância.
Pedro parava também; menos pelo cansaço do que pela curiosidade em saber o que fazia o primo.
– Vem, Pedrinho, cheira. É uma delícia!
Não que Pedro nunca tivesse sentido um perfume… Aliás, sua mãe era fã incondicional dos franceses. No entanto, Américo sempre dissera que cheirar flores era coisa que nenhum homem deveria fazer, e, portanto, era terminantemente proibido copiar o comportamento do primo.
Mas aos perfumes das flores pouco importam as ameaças paternas. Dessa forma, à medida que Pedro se aproximava, aquele aroma inebriante mais e mais o envolvia, fazendo daquela proibição o mesmo que fazem os homens de gênio aos que não compreendem suas atitudes: Pede-se a Deus para que um dia cresçam.
Dessa forma, apesar do que aprendera com o pai, Pedro experimentava um ato simples, natural e muito prazeroso, e a ele se entregava sem nenhuma resistência.
Depois que se satisfizeram, Júlio pegou de umas flores caídas sobre a relva e disse que as levaria como presentes. Pedro gostou da ideia, mas preferiu arrancá-las dos ramos.
Bem diferentes foram as reações dos respectivos pais. Enquanto Armando e Dulce se encantaram com o gesto de Júlio, e passaram a sorver cada um a sua flor, Américo e Beatriz, entreolhando-se e deduzindo o que tinha acontecido, reprovaram com seus semblantes os presentes que Pedro trouxera, e fizeram sinal para que os jogasse fora.
– Você chegou a perceber essa minha atitude, Júlio? – perguntou o tio, com o coração opresso.
– Olha, tio, faz muito tempo… Eu não me lembro. Mas isso é passado; para que relembrar?
– Pois eu digo a você, meu sobrinho, que só há pouco tempo eu compreendi o enorme poder que está contido no singelo ato de tomar de uma flor, ter sensibilidade para apreciar-lhe a beleza, e ter o inefável prazer de sentir a delicadeza do seu perfume!…
Júlio compadecia-se ainda mais do tio. Mas não teve tempo para sequer ensaiar uma palavra de consolo, pois Américo continuava a relatar aquela tarde memorável, com voz pausada, braços largados e olhar perdido.
– E o episódio do sorvete? Com certeza você se lembra dele?
A comida que trouxeram já terminava, mas o apetite dos priminhos permanecia. Assim, Dulce sugeriu que se comprassem picolés. E nem se precisa dizer que a ideia foi aceita com clamor; e não somente pelas crianças!
Em determinado momento, Pedro, que escolhera o sabor uva, pediu ao primo para experimentar o que ele lambia, um picolé de abacaxi. E Júlio o ofereceu com a maior naturalidade.
Ora, é óbvio que Júlio quis provar o outro sabor.
– Lembra-se, Júlio, o que faltou ao meu filho quando deixou que você experimentasse o sorvete?
Não que Júlio não soubesse a resposta, pois ele também se lembrava daquele fato, bem como o de muitos outros em que as índoles dos primos foram postas às claras e se entrechocaram. Mas o momento exigia do sobrinho a caridade do escutar, deixando ao tio o alívio da confissão.
– Pois eu mesmo respondo, meu sobrinho. O que faltava em Pedro, e que em você havia de sobra, era a espontaneidade…
Américo ainda falou por mais uns quarenta minutos, tempo suficiente para que ele mesmo percebesse que era hora de parar.
Júlio pegou a bagagem do tio e ambos caminharam para a saída. E neste pequeno trajeto, se muitos foram os tapinhas nas costas que Américo recebeu, entremeados por sinceros desejos de felicidade, uma simples pergunta – feita de boa-fé, mas muito infeliz – repercutiria no gasto e ferido coração, e por todo o percurso até o novo destino:
– Aquele que é o filho do Américo?
Ao embicar o carro defronte ao portão de entrada do novo lar – um sobrado simples, confortável e bem conservado –, Júlio, como de costume, deu duas rápidas buzinadas, a fim de anunciar que tinham chegado.
Américo, que já sorria, estranhou a ausência de recepção e o completo silêncio. Afinal, e pelo que soubera de Júlio, Patrícia e os filhos estavam ansiosos por recebê-lo.
Fosse como fosse, atravessaram quietos o jardim. Júlio foi à frente, carregando os pertences do tio e se esforçando para não dar bandeira; Américo, um pouco atrás, caminhando devagar porque bastante envergonhado.
Júlio abriu a porta com a maior tranquilidade. Pôs as malas no chão e deu passagem ao tio. Américo entrava calado, de olhos baixos e com uma certa palpitação.
Mas quando Júlio fechou a porta, a deixa se verificou; e Patrícia e os filhos surgiram berrando de onde se tinham escondido.
Tamanha foi a algazarra, e tão desconcertante foi a surpresa com que o receberam, que Américo, profundamente impressionado, implorou por um sofá, pois que já não mais sentia as próprias pernas.
Acudido com abanos e um copo com água e açúcar, Américo conseguiu se restabelecer. Mas não por muito tempo, pois logo caiu em prantos, o que refletia a emoção que dele se apossara.
Júlio e Patrícia comoveram-se, e sorriram. As crianças também sorriam, por pouco que entendessem o que acontecia.
Passada a emoção, reaprumando-se Américo, e todos passaram às boas-vindas, o que deixou o mais novo integrante da família muito feliz, pois se sentia querido, respeitado, amado.
Logo depois, Júlio, Patrícia e as crianças conduziram Américo para o seu novo quarto. E quando abriram a porta, e ele pôde ver o aconchego que o aguardava, seu rosto se transfigurou de tal maneira, que nenhum adjetivo seria bastante para qualificar a alegria que irradiou, o que a todos emocionou e fez umedecer os olhos do casal.
Américo pediu para ficar um pouco a sós, a fim de que pudesse lavar-se, guardar a roupa, ajeitar-se. E foi atendido.
Mas como a tarde chegava, e já se ouviam um e outro barulhos vindos dos estômagos infantis, Patrícia avisou que iria preparar o lanche, hábito que cultivavam aos sábados, em substituição ao jantar. E assim que estivesse pronto, ela o chamaria.
Ele agradeceu com um terno sorriso.
Américo entrou no banheiro anexo, olhou-se no espelho, e suspirou. Abriu a torneira, e molhou-se demoradamente. Em seguida, e a cada enxaguada, a água como que o desintoxicava, carreando ralo adentro todos os erros que cometera em sua vida.
Depois, fechou a torneira, secou-se, e voltou a mirar-se no espelho. E via, e finalmente aceitava, o seu reflexo a lhe jogar na cara aquilo que ele nunca admitiu, sobretudo depois que Beatriz se foi: Tanto estimulou no filho a ambição e o egoísmo, que outro não poderia ter sido o seu fim, quando Pedro dele se cansou.
Américo saía do quarto antes mesmo que Patrícia viesse chamá-lo. E se andava circunspeto, caminhava também decidido, e o faria pondo uma pá de cal sobre o seu passado. Até porque, se sabia que Pedro mudara-se para o exterior, não suspeitava em qual país ele se fixara.
Ao lanche, pode-se afirmar que nunca um pãozinho com manteiga e uma xícara de café com leite foram tão saborosos, tão prazerosos quanto os que Américo comeu e bebeu – e repetiu! –, uma vez que o seu apetite vinha estimulado pelo verdadeiro carinho familiar.
Conversaram sobre diversos assuntos, tanto à mesa quanto na sala de estar; menos sobre o passamento dos pais de Júlio, o que ocorreria se e quando as crianças não estivessem presentes. Aliás, Américo ofereceu-se para contar histórias para os meninos antes que fossem dormir, o que deixou Júlio e Patrícia muito contentes.
Ora, como um tema seguia-se ao outro, os adultos nem perceberam que as crianças tinham sumido. E só se deram conta quando o mais velho, de oito anos, os interrompeu dizendo:
– A gente trouxe pro senhor. – Cada um segurava, nas pontinhas dos dedos, um jasmim-do-poeta recém-caído sobre a grama.
Bem que gostaríamos, mas até mesmo aos anjos seria impossível descrever a sensação que se apossou de Américo, assim que sorveu, pela primeira vez, aquelas pequeninas e delicadas flores.