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Em Busca do Amor

Quando o fogo tornou-se seu inimigo tirando de si sua família, de sua aparência não mais gostava, se escondendo da sociedade que ao olhar lhe rejeitava.
Sofrendo na pele a tragédia que em sua mente ficou, contando com o auxílio e sua irmã e de seu doutor.
Mas pela vida foi presenteada.
Aqueles olhos que enxergam a alma encontrou dentro da mulher amada a beleza que dentro dela estava.
Em busca do amor não mais estava, a pessoa amada encontrara, e também amou-se a partir dali.

(Ellen dos Santos)

 

As chamas consumiam as paredes da casa e a fumaça invadia os cômodos como um monstro feroz atrás de sua presa. Nora abriu os olhos e, pela janela,viu a lua que iluminava o céu escuro. Será que seus pais já voltaram? Levantou cambaleando de sono e, ao abrir a porta, começou a tossir violentamente, passando a mão pelos olhos que ardiam. Seu coração bateu rápido ao ouvir o grito choroso da irmã caçula. Abaixou-se e engatinhou até seu quarto. O corredor estava quente e a locomoção era complicada. As paredes de madeira pareciam evaporar com o fogo. Localizou a irmã agachada ao lado da cama, abraçada em seu coelho rosa com lágrimas nos olhos. O fogo atacava as paredes floridas e se espalhava pelo guarda-roupa rosa.

— Olivia, você tá bem?

A garotinha de cinco anos apenas balançou a cabeça em afirmativa.

— Está tudo certo, nós vamos ficar bem— sussurrou abraçando a irmã mais nova. Entretanto, ela mesma não tinha certeza disso. Afinal, era apenas cinco anos mais velha. Onde estava a tia que ficara responsável por cuidar delas?

O barulho de sirenes anunciou a chegada dos bombeiros. Nora correu até a janela e viu que alguns homens carregavam o que parecia uma cama elástica, indicando para que ela pulasse. Correu até o lado da irmã, que segurava apertado seu bichinho de pelúcia, e a puxou pelo braço até o parapeito da janela.

— Olivia, você precisa pular.

A caçula arregalou os olhos em sua direção. As duas se abraçaram assustadas ao ouvir o pedaço de madeira que se desprendeu da porta. Nora respirou com dificuldade e, com a visão embaçada, notou que não restava muito do quarto. Segurou o rosto da irmã que agarrava sua cintura, apavorada.

— Nós precisamos fazer isso, maninha. Lembra daquele brinquedo no shopping? É igual. Se você pular, ele vai te segurar.

A caçula concordou relutante. Em seguida, saltou da janela, sendo segurada pelos bombeiros no andar debaixo.

Nora respirou aliviada ao ver a irmã em segurança, em seguida foi abatida por uma nova onda de tosse. Ela segurou-se na janela, pronta para pular, porém o fogo já havia alcançado o local em que estava fazendo-a se desequilibrar e cair para dentro da casa. A última coisa que viu foi a fumaça preta que a engoliu para dentro da escuridão.

Nora acordou assustada, com a respiração acelerada e o coração a mil. Desorientada, fitou as paredes brancas. O cheiro do incenso e a prateleira de livros a fizeram recordar-se de onde estava. O senhor de cabelos brancos segurou seu braço, a acalmando.

— Está tudo bem, Nora. Você está segura.

— O que aconteceu?

— Estávamos relembrando o dia do acidente.

A moça de vinte e cinco anos passou a mão pelo rosto desfigurado e respirou fundo, se acalmando.

— Como foi dessa vez?

— Fizemos progresso. Você se lembrou do porque não conseguiu escapar no dia.

Nora balançou a cabeça em afirmativa, timidamente.

— Não fique triste, criança. Estamos indo bem. — Ajeitou os óculos, a incentivando.

— Obrigada, doutor.

— Infelizmente, nosso horário acabou. — Levantou-se guardando as anotações. — Me diga, teria como marcarmos a próxima consulta para sexta ao invés de quinta-feira?

A morena, que amarrava a echarpe vermelha, virou inquisitivamente para ele. Afinal, este era seu horário há mais de dez anos.  

    — Encontrei um rapaz com quem vou dividir o aluguel, — explicou envergonhado — e ele perguntou se poderia usar a sala na próxima quinta.

— Ah, entendo. Não tem problema — respondeu colocando o chapéu.

— Obrigado querida, e se precisar me ligue.

Nora saiu da sala, puxando o lenço até seu rosto a fim de esconder as cicatrizes que aquela terrível tragédia deixara em sua pele, só percebeu o homem quando esbarrou em seu peito largo.

— Me desculpe. — O homem ajoelhou-se para juntar seus óculos.

— Eu que lhe devo desculpas. — Ela abaixou-se também para ajudar e a mão dele pairou sob a dela em cima do objeto.

Nora sentiu uma estranha sensação de reconhecimento quando suas peles se tocaram e olhou para cima curiosa. O homem a sua frente era um belo exemplar masculino. Os cabelos pretos e lisos ainda estavam molhados e cheiravam a shampoo de camomila. A barba preta emoldurava seu rosto másculo, que exibia um sorriso de derreter corações.

— Eu sou Gustavo Cardoso — apresentou-se. — Vou dividir a clínica com o doutor Júlio.

A morena não conseguiu responder, pois estava hipnotizada pelo seu sorriso encantador. Então era ele o novo colega do seu psicólogo. Ao perceber que ele a encarava, rapidamente abaixou a cabeça, envergonhada, como sempre acontecia naquelas ocasiões. Provavelmente o homem estava horrorizado com sua feição.

— Gustavo, que bom que você chegou — o psicólogo cumprimentou ao ver o colega.

— Foi um prazer conhecê-la,senhorita…

— Nora — respondeu de cabeça baixa e os dois se despediram.

Ela caminhou até a recepção, onde Olivia a espiou por cima da revista que segurava. Remarcou sua consulta e a irmã, entusiasmada, enganchou em seu braço ao saírem do consultório.

— E então?

— Então o que? — perguntou chamando o elevador.

— Ele chamou você para sair? — Os olhos verdes da irmã brilhavam em expectativa.

— Não.

A irmã fez um muxoxo em consideração àquilo.

— Eu percebi o jeito que ele olhou para você. Tenho certeza de que estava interessado.

— Você deve estar maluca se acredita que um homem daqueles iria se interessar por alguém como eu — falou convicta arrastando a irmã pela rua.

— Não entendo porque você fala de você mesma assim. — Olivia acompanhava os passos apressados da irmã, que tentava escapar da chuva.

— Porque eu não sou burra Olivia.— O sinal fechou e ela encarou a irmã.

O vento soprou forte e o lenço que cobria o rosto de Nora caiu. A senhora que passou por ela arregalou os olhos, assustada, em seguida abaixou a cabeça e seguiu seu caminho.

— Eu sei o que as pessoas acham da minha aparência física — puxou o tecido vermelho, se cobrindo — e não as culpo por isso. Nem eu gosto de me olhar no espelho. Ele só conversou comigo, pois quis ser educado. Afinal, vai começar a trabalhar ali.

— Ele também é psicólogo? — a irmã perguntou curiosa.

— Sim. Ele e o doutor Júlio dividirão a clínica. Aliás, minha próxima consulta será na sexta-feira.

— Contanto que dê tempo de se arrumar para ir para a inauguração do bar do Cadu. Você é nossa atração principal, lembra?

— Não mesmo! — Nora olhou para irmã horrorizada com a ideia. — Só porque você e ele acham que isso é uma boa ideia, não quer dizer que eu aceitei.

— Mas sua voz é tão linda, maninha. Tenho certeza que o pessoal ia curtir muito — Olivia falou animada, lançando um olhar pidão para irmã.

— Sim, até verem a minha cara.

— Você pode até usar uma máscara se quiser, tipo uma dama misteriosa.

— Não, Olivia! — A irmã olhou triste para ela, que respirou fundo pegando em seus braços. — Eu agradeço muito a você e seu namorado, mas não vai rolar. — A caçula suspirou fundo, ela sabia da sua situação financeira e por isso não desistiria de tentar lhe convencer, então Nora emendou: — Aliás, sábado eu vou na “    Casa Renascer”, parece que encontraram algo para mim. — Sorriu confiante.

— Ok,você quem sabe, mas o convite está de pé. De qualquer forma, significaria muito se você estivesse conosco na inauguração do lugar. Você vem, né?

Nora odiava festas e aglomerados de pessoas, pois a faziam lembrar-se de sua horrenda cicatriz. Entretanto, ela nunca conseguia negar nada a irmã, então apenas concordou com a cabeça, recebendo um abraço e um sorriso em troca.

O final de semana chegou e Nora aproveitou para organizar a casa, encontrou alguns brinquedos antigos e os separou em caixas.

No sábado de tarde, pegou o ônibus e desceu na frente da Casa Renascer.Suspirou aliviada ao entrar no local, porque ali as pessoas a conheciam e não precisaria ficar se esquivando de olhares curiosos.

— Oi Nora,que bom que você veio! — cumprimentou uma moça grávida que estava na recepção.

— Claro que eu vinha, Suelen, e olha só. — Levantou um bicho de pelúcia de dentro da caixa. — Encontrei isso lá em casa. Será que as criançasvão gostar?

— É claro que sim. Eu vou levar lá para dentro — a grávida foi se abaixar para pegar a caixa, mas a morena não deixou.

— Eu posso levar, só me fale onde devo guardar.

— Eu agradeço — a outra falou aliviada, passando a mão pela barriga.

— É para quando?

— Daqui a duas semanas, estou ansiosa.

— Eu tenho certeza de que vai dar tudo certo.

— Obrigada. Você pode guardar os objetos na sala 3, é só seguir reto até o final do corredor e virar à direita. É na segunda porta à esquerda.

Nora estava feliz por Suelen, e imaginou por um breve instante se algum dia também teria uma família. Que besteira, quem iria querer se casar com ela? Perdida em seus pensamentos, esbarrou em uma pessoa ao virar no corredor.

— Me desculpe. —Abaixou-se para juntar os objetos da caixa que caiu no chão.

— Eu conheço você? — ele questionou e, quando ela sentiu a mão dele em cima da sua, teve a mesma sensação de dois dias atrás.

— Sim, do consultório do doutor Júlio — respondeu envergonhada.

— Nora,certo? Isso parece estar virando um hábito — ele brincou sobre o encontro e ela sentiu seu coração disparar ao ver seu sorriso maravilhoso. — Você trabalha aqui?

— Sim, eu cuido das crianças — comentou enquanto guardava o restante dos brinquedos na caixa.

— Que legal, eu vou começar hoje — falou entusiasmado. — Vou ajudar os pais.

— Com conselhos conjugais? — perguntou curiosa.

— Algo do gênero — respondeu e Nora notou que ele não correspondia seu olhar. Na verdade, parecia estar interessado em olhar por cima de seu ombro, algo devia ter lhe chamado a atenção. Como podia ter sido tão tola ao imaginar que estivesse interessado. Provavelmente não conseguia olhar muito tempo para seu rosto.

— Eu preciso ir. Boa sorte no seu primeiro dia — falou rapidamente e saiu apressada. Sentiu-se estúpida ao alimentar falsas esperanças sobre aquele assunto, pessoas como ela não foram feitas para o amor.

A tarde passou rápida, e ela acabou esquecendo o incidente, pois voltou toda a atenção para sua tarefa na Casa Renascer. Crianças eram sinceras, e apesar de no primeiro dia terem tomado um susto ao verem seu rosto, agora haviam se acostumado com ela. Brincaram e se divertiram muito. No final do dia, a direção convidou todos para um lanche comunitário no pátio. A mulher foi se servir de um copo de suco.

— Então, como foi sua tarde?

Nora não precisou virar-se para saber quem era o dono daquela voz.

— Muito divertida — respondeu sem encará-lo. — E a sua?

— Produtiva — comentou sério. — Essas pessoas realmente precisam de ajuda, espero conseguir auxiliar de alguma forma.

Ela sentiu que suas palavras eram sinceras e, apesar de estar com medo de se aproximar, sua curiosidade falou mais alto.

— Me desculpe a intromissão, mas você não é daqui, certo?

— Não. Eu mudei semana passada,estou me adaptando. — Os dois caminharam até perto de uma das árvores. — Então você gosta de crianças?

— Sim. Elas são sinceras. Eu gosto disso.

— Eu também — falou convicto virando de frente para ela.

Apesar de ser final de tarde, o sol estava forte e, ao erguer a cabeça para encarar o homem, Nora enrugou os olhos em sua direção. Seu cabelo preto parecia brilhar e a mulher teve que conter o impulso de passar a mão pelo seu rosto que transbordava tranquilidade. Os dois estavam próximos o suficiente e o cheiro de camomila a fez suspirar alto, teve uma sensação que há tempos não sentia com ninguém: segurança. Queria muito beijá-lo, mas sabia que aquilo era impossível, então apenas suspirou fundo quando ouviu uma das crianças lhe chamar.

— Tia Nora, o Maicon não quer me deixar brincar junto — a garotinha chorava segurando a barra do vestido. — Ele disse que sou pequena demais para montar um castelo de cartas.

— Pois eu acho que você seria uma bela princesa de um castelo de cartas. Que tal se eu e você montarmos um só para nós?

O sorriso no rosto da garotinha se iluminou e ela sentiu-se melhor.

— Eu preciso ir. — Nora virou para Gustavo se despedindo.

— Sem problemas — ele respondeu sorrindo e ela retribuiu. — Montem um por mim também! — gritou, enquanto a mulher era arrastada pela menininha.

No domingo, levantou se sentindo diferente. Olhou para o céu azul e decidiu fazer uma coisa que não fazia há anos.Colocou um tênis e foi até o parque. As pessoas a encaravam,mas hoje não daria atenção para isso, pois estava entretida na sensação gostosa de correr. Havia se esquecido de como gostava disso. Ao passar pelo lago, reconheceu Gustavo sentado e quase tropeçou nos próprios pés. Seu coração disparou e sentiu-se como uma adolescente. O que deveria fazer? Será que deveria conversar com ele?

Tomada de uma coragem que surgiu em seu íntimo, aproximou-se e viu que ele estava concentrado admirando o lago. Sua respiração acelerou, o homem era muito lindo. Passou distraidamente a mão pela face lembrando de como ela não condizia com a beleza dele. Chacoalhou a cabeça e virou-se para ir embora, mas um labrador preto latiu em sua direção, impedindo que ela se afastasse.

— Maya, vem aqui, garota! — ele chamou e, ao virar em sua direção,Nora sussurrou timidamente, trocando o peso entre os pés:

— Oi, Gustavo. — Puxou os cabelos para frente do seu rosto. — Você por aqui? — perguntou se sentindo uma imbecil.

Ela não tinha prática nenhuma com esses lances amorosos, o que conhecia era dos filmes e livros que tanto adorava. O homem demorou alguns segundos antes de responder.

— Nora? — perguntou surpreso e a mulher já estava pronta para cavar um buraco e enfiar sua cara feia dentro dele, mas ele abriu um sorriso em sua direção, o sorriso que ela tanto admirava e que parecia conversar com seu coração. — Tudo bem? Eu e a Maya decidimos vir conhecer o parque. Como comentei sou novo na cidade.

— Sim. Aqui e um ótimo lugar, principalmente para ela — se aproximou do animal, que passou por entre suas pernas quase a derrubando.

— Acho que ela gostou de você — Gustavo comentou e a morena abaixou-se passando a mão pela cabeça do bicho, que recebeu o afago de bom grado.

— Parece que sim.

— Quer se juntar a nós? — indicou o lugar ao seu lado.

— Acho que seria bom dar uma pausa. — Pegou um boné que trouxe e enfiou na cabeça, escondendo as cicatrizes que se estendiam pelo couro cabeludo. Em seguida, aproximou-se timidamente e se sentou ao lado dele. — Então, o que está achando da cidade?

— Parece um bom lugar. Infelizmente, eu e Maya viemos por motivos não tão agradáveis, mas agora parece que as coisas vão melhorar.

— Eu espero que vocês gostem daqui.

Ficaram sentados por algum tempo juntos, admirando a beleza do local e trocando amenidades. Conversar com Gustavo era simples, era como se ele conhecesse seus pensamentos e sentimentos. O sol do meio-dia estava se aproximando e Nora começou a sentir calor.

— Eu vou comprar uma água para mim. Você quer alguma coisa?

—Não, obrigado.

Ela se levantou e a cachorra a seguiu.

— Não. Não. — Abanou as mãos em negativa, enquanto o cão sacudia o rabo feliz.

— Acho que ela gostaria de dar uma volta também — Gustavo comentou tranquilo.

— Você não se importa?

— Não.Mas, por favor, traga ela de volta, pois não sei viver sem ela. —Sorriu e as duas saíram.

Nora caminhou até o outro lado do parque, pois lá tinha bares mais baratos e ela estava contando as moedinhas. Ao sair do local, Maya começou a latir descontroladamente e, quando Nora se deu por conta, a cachorra estava correndo alucinada atrás de um pássaro.

— Maya!

A morena correu desesperada atrás do animal, que parecia estar possuído. Era só o que faltava, perder a cachorra dele no primeiro encontro. Quer dizer, aquilo não era um encontro, mas o animal era dele. Que desculpa daria? A labradora atravessou a pista de corrida e se jogou dentro do lago. Sem pensar em nada a garota se atirou junto, porém esqueceu que não sabia nadar. Maya, percebendo isso, a resgatou. Nora deitou de barriga para cima na grama, colocando a mão sob o coração disparado.

— Maya, você está bem? — a labradora preta latiu feliz e caminhou em sua direção, lambendo seu rosto.

Nora tentou se esconder, enquanto ria muito com as investidas da nova amiga. As pessoas que passavam ficavam entre curiosas e horrorizadas com a cena, provavelmente pensando em como o cão tinha coragem de chegar perto de algo desfigurado como ela. A morena, ao perceber isso, chacoalhou a cabeça e levantou-se rapidamente. No caminho, sentiu-se culpada. Como explicaria suas roupas molhadas? E pior, como contaria que o cão estava lambendo seu rosto? Maya, ao ver o dono, correu abanando o rabo em sua direção. Nora, ao contrário, despediu-se de longe.

— Desculpe por tudo! — gritou e correu sem dar a oportunidade dele responder.

Gustavo devia achar que ela era uma maluca, mas o que poderia fazer? O que alguém como ele poderia querer com um monstro como ela? Estava sonhando e precisava acordar.

Chegou em casa e foi direto para o chuveiro, onde derramou várias lágrimas, algo que não fazia desde criança. Chorou por toda situação e por sentir que poderia ser normal novamente. Isso nunca aconteceria. Vestiu um pijama qualquer e seu celular tocou, pegou de mau-grado acreditando ser a irmã, não queria conversar com ela agora. Porém, ficou curiosa quando não reconheceu o número e decidiu atender.

— Alô?

— Alô, Nora? Sou eu, Gustavo — a voz masculina do outro lado fez suas pernas tremerem. — Você saiu correndo e eu fiquei preocupado.

— Como você conseguiu o meu número?

— Ah, bom — ele pigarreou timidamente.— Eu pedi para o Júlio, espero que não se importe.

— Não, tudo bem. Eu sinto muito por hoje.

— O que aconteceu?

— A Maya viu um passarinho e saiu correndo atrás dele e acabou caindo na água.

Gustavo começou a gargalhar.

— Eu sinto muito. Isso é minha culpa. Eu esqueci de avisar que ela não é fã de pássaros. Mas, você está bem?

— Sim. É que tem mais. — Nora suspirou fundo, era melhor contar tudo de uma vez. — Ela lambeu meu rosto.

— E?

— Eu achei que você ficaria bravo.

— Bravo? Na verdade,acho que ela teve sorte.

Nora ficou perplexa com o que ouviu.

— Gustavo, eu não quero que brinque comigo. Como já comentei, eu gosto de sinceridade.

— E como eu disse, eu também — respondeu sério. — Por isso, eu tenho que confessar uma coisa — começou a falar sem jeito. Agora ele admitiria que estava com pena dela. — Na verdade, eu gostei muito de conversar com você e gostaria que nos conhecêssemos melhor.

Dessa vez, foi ela que gargalhou de nervosa.

— Além disso, gosto de ouvir sua voz.Ela é muito bonita.

— Você acha? — comentou surpresa. — Minha irmã e meu cunhado insistem que eu vá cantar no bar deles.

—E porque você não vai?

— Eu não tenho certeza de que eles estão falando sério.

— Você se importaria de cantar algo para mim?

— Agora?

— Claro, por que não?

Nora lembrou-se da música do Jota Quest que escutou várias vezes durante os anos e começou a cantarolar baixinho.

Eu quero ficar só, mas comigo só eu não consigo.
Eu quero ficar junto, mas sozinho só não é possível.
É preciso amar direito, um amor de qualquer jeito.
Ser amor a qualquer hora, ser amor de corpo inteiro.
Amor de dentro pra fora, amor que eu desconheço.

Quero um amor maior, amor maior que eu.

O silêncio preencheu a linha, e seu coração disparou. Nora adorava cantar, mas nunca tinha feito isso para outra pessoa além da sua irmã e cunhado.

— Eu acho que você deveria considerar a opinião deles.

— Sério?

— Com toda certeza.

    Eles continuaram conversando sem ver o tempo passar. Encontraram vários assuntos em comum e quando viram a noite chegou. Foi estranho se despedir. Nora foi dormir e sonhou que cantava para uma grande plateia, porém seus olhos focalizavam apenas o homem de barba e sorriso encantador que parecia roubar seu coração a cada dia mais.

    Nas noites seguintes, Gustavo ligou para Nora. Ela falava sobre sua paixão pela música e Gustavo contou sobre sua vinda para cidade, ele também passava por problemas financeiros, pois não conseguia encontrar serviço, então, quando recebeu a proposta de Júlio, decidiu arriscar.

Na sexta, Nora o convidou para ir junto à inauguração do bar do cunhado e,quando deu a noticia para a irmã, quase ficou sem pescoço, pois esta lhe abraçou feito uma louca gritando que finalmente ela encontrou seu par perfeito.

Nora encarava seu reflexo no espelho, enquanto uma dúvida não saía de sua cabeça: será que ele ainda se interessaria por ela, depois de ver sua feição? Sentiu um frio no estômago ao pensar nisso, mas logo a irmã chegou e as duas saíram em direção ao bar.

O lugar estava lotado e a mulher tentava se esquivar das pessoas, acabou esbarrando em duas garotas que a olharam apavoradas. Mas, não conseguiu nem se desculpar porque a irmã lhe puxou pelo braço em direção ao bar onde Cadu e Gustavo estavam.

— Oi Norinha, que bom que você veio! —Cadu falou depois de beijar a namorada.

— Também estou feliz — respondeu tentando parecer confiante. — Você já conhecia o Gustavo?

— Na verdade, não. — Ele chegou cedo e aproveitamos para conversar, descobrimos que temos algo em comum.

— E o que seria?

— Nós dois conhecemos a futura cantora famosa daqui. — Piscou para cunhada que abaixou a cabeça, envergonhada.

— Obrigada por vir — falou virando sua atenção para Gustavo.

— Eu não perderia isso por nada — comentou sorrindo.

— Então, maninha, daqui a pouco é sua vez. — Olivia a abraçou, animada.

—Eu preciso ir ao banheiro antes.

Nora caminhou de cabeça baixa até o banheiro e, ao entrar, reconheceu as garotas com quem havia esbarrado anteriormente. Rapidamente se escondeu na primeira cabine e as ouviu comentando.

— Você viu aquela garota que anda por aí? A do rosto do Shrek?

— Sim, cruzes. Não sei como ela teve coragem de sair de casa.

— Se fosse eu, enfiaria um saco na cabeça e nunca mais tiraria.

As duas riram alto e saíram do banheiro.

Nora percebeu que lágrimas escorriam pelo rosto, limpou-as com raiva e saiu pisando firme até a saída da boate. Encontrou Olívia pelo caminho, mas passou reto.

— Nora? Espera, aonde você vai? — perguntou correndo atrás da irmã.

— Eu não vou mais cantar, Olivia.

— Como assim?

— Você me ouviu.

— Mas,porquê?

— Você por acaso é cega?! — Nora olhou com fúria para a irmã, que a encarava sem entender. — Olha para mim! — Apontou para si mesma com desdém. — Quem vai querer me escutar? — perdeu o controle e começou a chorar descontroladamente.

— Tudo bem, maninha. — Olivia aproximou-se devagar e Nora a abraçou. — Você não precisa fazer nada.

— Eu sinto muito. É minha culpa.

— Ei, que história é essa? — Olivia encarou a irmã, e então se deu conta que ela se referia a noite do acidente. — Nunca mais diga isso, você não tem culpa de nada, entendeu? — A irmã agora também chorava. — A culpa é minha por você ter se machucado.

— Não, Olivia. Nós éramos apenas crianças. Fizemos o que tinha que ser feito. — Ela segurou o rosto da irmã entre suas mãos. — Ei, eu não me arrependo um minuto sequer disso entendeu. Eu te amo.

— Eu também te amo, maninha, e espero que algum dia você consiga se amar assim também.

Nora balançou a cabeça desolada e as duas se abraçaram por alguns instantes.

— Eu preciso avisar o Gustavo que vou embora.

— Na verdade ele teve que ir mais cedo, disse que era algo importante e te ligaria depois.

— Ok,então vou chamar um uber.

— Eu levo você.

— Olivia, é a inauguração do bar do seu namorado.Você precisa ficar. Eu estou bem — a morena tentou demonstrar confiança. — Eu juro.

— Ok. Você me avisa se precisar então?

— Claro. Peça desculpas ao Cadu por mim.

Nora chegou em casa e pegou uma das poucas fotos que restavam da família. Todos sorriam felizes na frente da antiga casa. Aquela noite, além de tirar sua beleza, lhe tirara os pais. Assim como ela salvara a irmã, os pais lhe salvaram, porém, ao contrário dela, nenhum deles conseguira sair com vida. Isso era o que mais doía, porém, ao conversar com a irmã, percebeu que eles fizeram aquilo porque a amavam e ela devia começar a retribuir esse amor.

No dia seguinte, Nora acordou com o celular.

— Oi, Nora.Tudo bem?

— Gustavo?

— Eu acordei você?

— Não.

— Desculpe por ontem, tive um compromisso e não consegui ficar.

— Tudo bem.Você não perdeu nada.

— Como assim?

— Desisti de cantar e também acabei estragando nosso encontro.

— Tenho certeza que vão surgir outras oportunidades. Por exemplo, que tal eu preparar um jantar para nós aqui em casa hoje?

— Seria ótimo.

De noite, Nora estava nervosa ao chegar ao apartamento de Gustavo.

— Boa noite.

— Boa noite. —  A abraçou carinhosamente. — Tenho que confessar uma coisa. — Pegou em suas mãos. — Eu não sei cozinhar, então pedi umas pizzas para nós.

— Por mim está ótimo.

Gustavo foi aquecer as pizzas enquanto Nora foi recebida por Maya. Depois de brincar alguns instantes com a cachorra perguntou onde era o banheiro para lavar as mãos. Ao sair de lá, sentiu um cheiro familiar.

Caminhou até a cozinha e ficou paralisada quando se deparou com a fumaça que saía de dentro do micro-ondas. O fogo parecia se alastrar dentro do objeto. Sentiu seu estômago embrulhar e a cabeça doer trazendo a tona suas piores lembranças.

— Nora, você está bem? — Gustavo questionou se aproximando.

Ela apontou para o local, mas ele parecia não ver. Então, gritou a palavra que estava entalada na sua garganta há anos.

— Fogo!!!

Ele pulou assustado e começou a procurar desesperado, tropeçou na cadeira que estava no meio do caminho e antes de tocar o objeto em chamas, ela puxou sua mão.

— Onde fica a chave de luz da casa?

— Do lado da porta de entrada.

Nora correu até o local, desligou a chave de luz e pegou o extintor do corredor do prédio. Voltou até a cozinha e puxou o objeto da tomada. Abriu a porta e apagou o fogo.

— Você está bem? — Aproximou-se de Gustavo.

—Sim, e você?

— Você não viu… — Nora falou baixinho, enquanto a adrenalina diminuía. — Como você não viu? Você não viu o fogo! — gritou incrédula.

— Nora, calma, já passou. — Ela balançou a cabeça em descrença. — Você não percebeu?

Pela primeira vez desde que se encontraram, ela encarou seus olhos, que não corresponderam.

— Você é cego? — Colocou a mão sob a boca.

— Sim — respondeu sorrindo. — Eu achei que isso não teria problema para você.

— Como não teria problema?

— Foi muito bom te conhecer, Nora. — Gustavo balançou a cabeça em negativa, triste.

— Não é isso. — Ela o puxou pela mão. — Não é você. Sou eu. Eu não sou normal.

Ele deu um passo pra trás, incrédulo.

— Como assim?

Ela respirou fundo e guiou a mão dele até suas cicatrizes. Sua mão era macia e quente, assim como ela imaginou tantas vezes. Abriu os olhos, pronta para ver a expressão de nojo ou espanto, mas ao invés disso, foi recepcionada pelo sorriso iluminado.

— Você não está com nojo?

— Porque eu deveria estar? — Ele a puxou para junto de si. — Você tem problemas comigo? Por eu ser cego?

— Não.

— Que ótimo, porque eu também não tenho nenhum problema com você.

— Mas, você não consegue ver como eu sou realmente — disse quase chorando.

— O que eu consigo ver é uma mulher inteligente, caridosa e gentil. Que ajuda crianças carentes, que pula em um lago para salvar um cão que mal conhece e que é capaz de enfrentar o fogo para proteger as pessoas que ama. Isso é o que eu enxergo, e é com isso que eu me importo.

Nora sentiu as lágrimas caindo pelo rosto.

— Você poderia me apresentar essa mulher? Acho que eu me perdi dela em algum lugar.

— É claro que sim!

Ele a puxou para um beijo que prometia um novo começo, uma nova forma de enxergar a vida e uma nova forma de amar.

Um ano depois:

A boate do Cadu estava lotada e Nora ficou feliz por ele e sua irmã, os dois mereciam todo sucesso do mundo. Ela passou a mão pelo vestido branco com detalhes em prata e pela trança lateral que caía sob o rosto. Aguçou sua audição, assim como o noivo a ensinou. Conseguiu ouvir o tilintar dos copos, as risadas e a irmã que anunciava sua entrada. Caminhou confiante até o meio do palco e percebeu que as pessoas a encaravam, algumas curiosas, outras com receio. Seus olhos encontraram Gustavo sentado no bar,esboçando o sorriso que mexia com seu coração.

— Essa música é para todas as pessoas que estão em busca do amor. — Sorriu ao encarar seu reflexo no espelho do bar. — Ele está dentro de nós mesmos.

A música Amor Maior do Jota Quest começou a tocar, e ela cantou com todo seu coração. As pessoas, animadas com sua voz,a acompanharam. No final, Nora desceu do palco e caminhou em direção a Gustavo o beijando apaixonadamente. Ela finalmente encontrou o amor. O amor por sua irmã, o amor por seu noivo e, principalmente, o amor por ela mesma.

 

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  • Que conto lindo!! Parabéns Raquel!! Como sempre, leio atentamente para tentar descobrir o que acontece no final!!! Tuas histórias são apaixonantes!!!!!

  • Que conto lindo!! Parabéns Raquel!! Como sempre, leio atentamente para tentar descobrir o que acontece no final!!! Tuas histórias são apaixonantes!!!!!

  • Gente, que conto mais lindo! Raquel, você escolheu uma das melhores músicas do Jota Quest e ela casou perfeitamente com o conto. Um conto lindo, delicado, emocionante e com um tema tão necessário. Parabéns. Simplesmente amei!

  • Gente, que conto mais lindo! Raquel, você escolheu uma das melhores músicas do Jota Quest e ela casou perfeitamente com o conto. Um conto lindo, delicado, emocionante e com um tema tão necessário. Parabéns. Simplesmente amei!

  • Raquel, parabéns. Que magnífico o conto. Fiquei encantado com a história de superação da Nora. E realmente a música do Jota Quest foi a cereja do bolo. Perfeito!!

  • Raquel, parabéns. Que magnífico o conto. Fiquei encantado com a história de superação da Nora. E realmente a música do Jota Quest foi a cereja do bolo. Perfeito!!

  • Muito legal! Curto essas histórias com plot twist que te faz voltar e ler alguns trechos de novo pra confirmar as pistas! Parabéns pelo conto!

  • Adorei o conto Raquel! Parabéns! Que a Nora e o Gustavo tenham um futuro maravilhoso e promissor!

  • Nossa Raquel, muito bom mesmo, me arrancou uns “eita” e uns suspiros aq, parabens ..

  • Que lindo Raquel! Amei o conto. Você foi de uma delicadeza e de uma sensibilidade extraordinárias! Parabéns e é uma honra estar em sua companhia nesse projeto. <3

  • Muito legal! Curto essas histórias com plot twist que te faz voltar e ler alguns trechos de novo pra confirmar as pistas! Parabéns pelo conto!

  • Adorei o conto Raquel! Parabéns! Que a Nora e o Gustavo tenham um futuro maravilhoso e promissor!

  • Nossa Raquel, muito bom mesmo, me arrancou uns “eita” e uns suspiros aq, parabens ..

  • Que lindo Raquel! Amei o conto. Você foi de uma delicadeza e de uma sensibilidade extraordinárias! Parabéns e é uma honra estar em sua companhia nesse projeto. <3

  • Conto lindo. Parabéns, Raquel, por representar pessoas que não vemos muito em histórias de amor. Elas merecem amar, merecem ser amadas e você abordou isso de uma maneira sensível e bonita.

  • Conto lindo. Parabéns, Raquel, por representar pessoas que não vemos muito em histórias de amor. Elas merecem amar, merecem ser amadas e você abordou isso de uma maneira sensível e bonita.

  • Conto maravilhoso, realmente uma linda história de amor para encher nossos corações. Parabéns, Raquel!

  • Conto maravilhoso, realmente uma linda história de amor para encher nossos corações. Parabéns, Raquel!

  • Que lindo conto, Raquel. Você tratou o tema com muita sensibilidade. Parabéns pelo belo trabalho!

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