Romance que ultrapassou o tempo para ser vivido, para ser amado, para ser reconhecido.
Outras vidas, outros tempos. Ele esperava ansioso por sua amada, que, a cada vida que passava, era por ele mais amada.
Espera por seu grande amor, aguarda suas resoluções; o futuro os aguarda com suas respostas.
Nem todo o século os separou.
Pelo amor optou. Essa foi sua escolha.

(Ellen dos Santos)

 

1
Século XXII

— Ah, meu amor, quando vai voltar pra nós? — O homem encorpado de cabelos e olhos castanhos claros observava a amada, que no leito do hospital permanecia olhando para o nada.

— Ela não vai voltar, conforme já lhe falei — disse a médica, ajustando o Biotransmissor de ondas wireless, que monitorava o funcionamento dos órgãos da paciente.

— Estamos em 2120, com tanta tecnologia, e você me diz que não há o que fazer? — Encarou-a. — Nada explica o fato de ela não interagir com ninguém. — Ele apertou o pingente dourado, pendurado no pescoço.

— Lembre que somos mais do que um corpo físico e podem haver outras justificativas para alguém não voltar.

Ele respirou devagar.

— Ah, doutora, nós tínhamos tanto pra viver — desabafou, ao beijar uma das mãos inertes da namorada, contraindo o maxilar para não estilhaçar a aparelhagem ao redor. — Já que pode não ser nada físico, só me diga o que eu posso fazer pra ajudar.

A médica parou à sua frente e o analisou.

— Eu faço qualquer coisa para tê-la de volta.

— Qualquer coisa?

— O que for preciso. É só me dizer…

2
Dias Atuais

Lyse, com o seu notebook aberto sobre a mesa, examinava o simpático senhor à sua frente, que, sem saber, havia lhe tirado do bloqueio de escrita que enfrentava.

Divorciada há dois anos, conseguiu que Lauro, seu ex, fosse proibido de se aproximar através da exigência de distância mínima de duzentos metros, por tê-la ofendido, agredido fisicamente, e a humilhado em público. Esse desgaste minava o emocional de ambos, mas, por alguma razão que ela não entendia, ele não lhe dava paz. Por isso a aproximação do velho senhor lhe auxiliou da forma mais inusitada. Foi tudo por conta de um antigo pingente que caíra na areia, que o sr. Vyctor, no alto dos seus noventa e cinco anos e devido à cadeira de rodas, não pôde apanhar.

A chapa quadrada que ela juntara, com a letraE entrelaçada com oA em um trabalho delicado, mexia com ele, que pelo apego e sentimento demonstrou o desejo de eternizar, pela escrita, o romance ali representado.

— Seu Vyctor?

Ele contemplava o movimento das águas cristalinas de Bombinhas, em Santa Catarina, visto que a área externa da lanchonete, onde estavam, ficava de frente para o mar.

— Seu Vyctor? — repetiu em um tom de voz mais alto, mesmo com poucas pessoas ao redor, naquela ensolarada tarde de março.

— Hã? Ah, me desculpe.

— Podemos continuar ou prefere parar?

— Não, não. Vamos continuar. — O ancião afirmou com convicção.

Esses olhos me parecem tão familiares… Lyse divagou, devolvendo-lhe o olhar.

— Onde paramos? — Ele perguntou com sua voz rouca.

— Bem —, ela buscou o texto no notebook, com o indicador: — Aaron conheceu Elyse na praia e ficou encantado pelos seus cabelos lisos até os ombros, e pelo rosto simétrico com grandes olhos claros. Enquanto ela caminhava e a cadência das suas curvas o fascinavam, levou uma bolada tão forte na testa, que a derrubou. E ele não só correu para ajudá-la, como a acompanhou até o hospital, porque o calombo na testa da bela jovem começou a inchar, deixando-a atordoada.

— Certo, então vamos lá — o velho homem disse antes de tomar um longo gole de suco de uva. — Seguimos do ponto em que ela deixou o hospital.

Você está se sentindo melhor? — perguntou Aaron, ao estacionar o carro na frente da casa da Elyse, após a consulta médica.

Se comparar com o que eu sentia antes de ser medicada, a única diferença é que estou mais tranquila, já que foi uma pancada sem maiores consequências. — Fechou os olhos. — Mas ainda dói e a minha cabeça pesa — respondeu, fazendo careta.

É melhor você descansar um pouco.

É… — ela concordou, abrindo a porta e saindo do carro, mas com o sol forte e o mal-estar que sentia, piscou com força e se desequilibrou.

No mesmo instante, Aaron surgiu ao seu lado, como num passe de mágica. Com a leve tontura e o par de olhos hipnotizantes à sua frente, permitiu-se encostar a cabeça no peitoral largo e cheiroso do tão prestativo desconhecido que a auxiliava. Ele a segurou pela cintura, levando-a até a entrada da casa.

Passou?

Ela não sabia se queria, ou não, que tivesse passado.

Hum hum.

Quero te dizer que, apesar de ter acontecido esse pequeno acidente — ergueu o queixo dela com o indicador —, você coloriu o meu dia. Fazia tempo que eu não conhecia alguém tão interessante.

Lyse suspirou, voltando ao presente, ao pensar no quanto era prazeroso ouvir palavras assim.

— Ih, você não está bem… — O velho homem a examinou por cima dos óculos.

— Estou sim… — Sorriu sem graça. — Elogios fazem bem à alma.

— Sr. Vyctor? — Ambos se viraram para a moça esguia de cabelo preto chanel até o queixo, que se aproximava. — Peço desculpas por incomodar, mas está na hora do seu remédio.

— Ah, sim — ele falou, torcendo a boca. — Vou ter que ir, Lyse, mas continuamos amanhã, aqui, no mesmo horário, certo?

— Certo — confirmou, com o coração palpitando de ansiedade e alegria. Tinha voltado a escrever.

Na tarde seguinte, Lyse saiu do seu Hyundai Elantra com a mochila do notebook nas costas, ajeitando a blusa amarela justa, sem mangas e o short de cintura alta, azul-marinho e amarelo, largo nas pernas. No alto dos seus trinta e oito anos, não podia dizer que a sua beleza chamava a atenção, mas sentia-se bem com o conjunto “cabelos e olhos” castanhos, nariz bem definido e lábios médios.

Sua animação com o trabalho foi prejudicada pelas mensagens indecorosas, via WhatsApp, recebidas de um número desconhecido, abordagem usada pelo ex-marido, que a cada um bloqueado por ela, aparecia com outro na sequência. Por isso, ultimamente, maquiava-se apenas para garantir que o inchaço nos olhos, devido ao choro constante, fosse camuflado.

Como no dia anterior, o sr. Vyctor estava na última mesa da varanda da lanchonete, e outra vez, Lyse se impressionou com o olhar dele, que a perfurava. Seus olhos compunham a harmonia do rosto de nariz arrebitado e lábios finos, e ela os achava familiares. Deve ter sido um homem muito atraente quando jovem, pensou, imaginando o tom do cabelo de outrora, que hoje era branco.

— Boa tarde — o ancião falou e lhe estendeu a mão. — Você está muito bonita. Essa cor combina com o seu bronzeado e cabelo.

— Ah, obrigada. — Agradeceu sorrindo pela percepção aguçada, sentando-se à frente dele. — Boa tarde. — Dirigiu-se à mulher esguia de nariz proeminente, que, assim como no dia anterior, vestia uniforme e sapatilhas brancas.

— Boa tarde. — A enfermeira retribuiu o cumprimento com simpatia, dentre o murmurinho das poucas pessoas das mesas adjacentes. — Sr. Vyctor — continuou —, vou ajeitar algumas coisas e volto mais tarde. Qualquer problema, é só me ligar. Bom trabalho a vocês. — Virou-se para a jovem. — Nada como escrever sobre uma história de amor tão linda e forte, que transcende. — Olhou para cima e abriu as mãos no ar.

— Obrigada, Angélica — respondeu ele, enquanto Lyse sorria, já preparada para o início do trabalho.

— Ela conhece o romance? — perguntou, após a moça se afastar.

— Conhece.

— Legal. Podemos começar na hora que quiser.

— Certo — afirmou, enquanto tirava o pingente retangular do bolso da camisa azul-marinho de mangas curtas, e o acariciava.

— Fiquei pensando na Elyse. — Lyse comentou. — É quase minha xará.

— É… eu sei. — O sr. Vyctor a encarou por cima dos óculos.

— Conhecer a sua grande paixão por causa de uma pancada na cabeça é um começo difícil — ela comentou, enquanto ele tomava um gole do suco de uva.

— Essa é a magia do amor. Nada de fórmulas.

— Verdade… Ah, vou pedir algo pra beber.

Ambos levantaram o braço para chamar o garçom.

— O senhor é muito gentil.

— Todo homem deveria tratar as mulheres com gentileza.

— Pois é… — ela suspirou, sentindo o ar quente e abafado da tarde em seu rosto, com o cheiro salgado do mar.

Quando o garçom se aproximou, Lyse pediu uma água.

— Pelo visto não tem tido experiências muito boas.

— É que homens assim — apontou para ele — não existem mais. Vamos continuar?

— Claro, vamos sim.

Dois dias depois, Elyse caminhava novamente pelas areias da praia, agora em busca do homem que a auxiliara com tanta solicitude, a quem não tivera a capacidade de agradecer, tal o estado de torpor que a dominava.

Lembrava-se do nome, Aaron, mas nem pensara em pegar alguma outra informação para um futuro contato. Sua testa permanecia dolorida, mas havia desinchado e já apresentava a coloração normal. Procurara fazer a caminhada no mesmo horário do dia do acidente, pois, por mais que fosse meio de semana, ele poderia ter o costume de vir à praia nesse horário.

Dos poucos que corriam ou caminhavam ao seu redor, não o reconheceu em ninguém. Virou-se para o mar tranquilo e cristalino, parou para apreciá-lo e suspirou. Perdeu-se no tempo, absorta pelo vento no rosto e o movimento cadenciado das águas, decidida, de uma vez por todas, a resolver a relação com o seu namorado. O namoro já não era mais prazeroso há algum tempo, e nenhum dos dois tomara a frente para findá-lo.

— Por vezes me pergunto por que as pessoas complicam tanto as coisas? — comentou o sr. Vyctor, retornando ao presente.

— Ah, se estiver falando sobre terminar um relacionamento, isso pode não ser tão fácil — ponderou Lyse.

— Um rompimento nunca é fácil, mas, muitas vezes, necessário. — Ele tomou um gole do suco gelado, que descia de forma suave e refrescante.

Ela observou o velho homem, que, apesar da idade, a encantava com a gentileza, sensibilidade e comentários inteligentes, o que a fazia desejar ouvir cada palavra dele. Apoiou um cotovelo na mesa e o queixo na mão, imaginando como ele fora no auge do vigor masculino. Será que amou alguém? Ah, mas certamente foi amado… Será que foi casado? Como será que era na cama…? Aff! Devo estar louca mesmo… pensou ao se ajeitar na cadeira, mas o fato era que seu corpo esquentara pensando nele.

A expressão risonha do ancião, de que “sei o que está pensando”, tirou-a dos devaneios, e ela enrubesceu percebendo a cena cômica que propiciava. Estava hipnotizada por alguém que apenas lhe ditava um texto, trocando algumas palavras a mais. Só isso! Então, retornou rápido ao assunto.

— E quando não se consegue terminar? Quando um dos dois está tão cego, tão determinado a fazer da vida do outro um inferno?

— Você está nessa situação?

— Meu ex-marido está impedido legalmente de se aproximar de mim e mesmo assim não desiste de transformar a minha vida num tormento. Ele me cerca, me sufoca e seu ciúme é doentio. — Virou-se para o mar, apreciando um casal que passeava de mãos dadas pela praia.

O idoso apoiou os cotovelos nos braços da cadeira, aguardando o restante do desabafo, mas como ela permaneceu em silêncio, ele continuou:

— É triste quando um relacionamento não segue pelo amor…

Lyse passou as mãos no rosto, enxugando as lágrimas, que começavam a descer.

— Ah, seu Vyctor, me perdoe. Estamos aqui pra produzir uma narrativa profunda e eu falando de mim. Peço desculpas. — Escondeu o rosto com as mãos.

Ele tirou do bolso um pacote de lencinhos de papel e o ofereceu para ela, que aceitou, sem pensar.

— Obrigada. — Agradeceu enquanto escolhia um e o passava pelo rosto. — Nem sei por que falei nisso. Nossa, que vergonha!

— Fui eu que perguntei, e no alto dos meus noventa e cinco anos, o que posso dizer é que para todo o problema há solução; uma vez que se não há solução, não é problema.

— Então eu tenho um “não problemão”, já que não faço ideia de como resolvê-lo. Tudo o que me ocorreu, eu tentei, mas até agora nada.

— O que ele quer?

— Nada além de me infernizar, já que nunca se conformou com o término da relação. — Enxugou as lágrimas restantes e suspirou. — Eu não entendo… sei que ele sai com outras mulheres, mas sempre encontra um modo de me provocar. — Respirou fundo. — Tudo o que quero é voltar a viver em paz.

— E você corre algum risco?

Ela fez um bico com os lábios.

— A lei diz que ele deve manter distância, mas não tem como controlar se ele cumpre.

— Você tem medo dele?

— Pavor! Não quero machucá-lo, mas todas as tentativas para afastá-lo de vez foram inúteis. — Ela abaixou a cabeça.

— Isso é muito perigoso.

— Eu sei.

— E até quando acha que pode viver assim?

— Estou tão cansada, e já tentei tanta coisa, que às vezes penso só ter uma alternativa.

O sr. Vyctor apoiou os cotovelos na mesa e cruzou as mãos à frente da boca, perscrutando Lyse por longos segundos, com firmeza. Nem o cheiro da porção de batatas fritas quentes, entregue na mesa de trás, os tirou do incômodo silêncio.

— Não se arrisque — pediu com ternura —, por favor. Se estiver pensando na grande besteira de acabar com ele, saiba que nunca mais seria feliz. Já imaginou a culpa e o remorso? Eles nunca mais a deixariam, mesmo daqui a trinta ou quarenta anos, assim como a pergunta se não poderia ter seguido por outro caminho.

Ela pôs uma parte do cabelo para trás da orelha.

— Se escapamos da justiça que conhecemos, em algum lugar vamos responder pelos nossos atos, querendo ou não. E isso pode se refletir até nas nossas próximas vidas. — O ancião a encarou. — Não sei se acredita nisso…

— Que há vida após a morte, que estamos aqui só de passagem e que existe carma? Acredito sim.

Ele sorriu.

— Sempre há uma maneira — gesticulou —, e quero crer que você vai encontrar uma da qual não se arrependa pelo resto da eternidade. Por que não vai morar longe daqui?

— Porque não é justo eu deixar todos que amo por causa de um lunático.

— Talvez seja o sacrifício que precise fazer para ter um futuro.

— Está certo — suspirou. — O senhor deve pensar que sou uma louca psicótica. — Deu uma risada nervosa —, mas não sou. — Fez que não com uma das mãos. — É que estou exausta, quase sem forças pra lutar, e tenho certeza de que ele não vai me deixar em paz. — Esfregou os olhos com as mãos. — Puxa, acabei despejando toda essa podridão em cima do senhor. Peço, mais uma vez, que me perdoe.

— Sei que não é nada disso, Lyse — Ele abriu um sorriso genuíno —, fique despreocupada.

— E como é que o senhor sabe?

— Experiência de vida. — Ele ergueu o canto da boca. — É, menina, você aparenta ser bastante responsável.

— Tenho uma curiosidade: como é que sabe tanto sobre a Elyse também? Os dois foram, ou são, seus amigos?

O velho homem se encostou na cadeira e acariciou a medalha que descansava sobre a mesa.

— São bem mais que isso. Continuamos?

Ela assentiu, intrigada, e ele abriu outro sorriso antes de voltar a ditar.

Elyse sentara na areia sobre os chinelos e apreciava o mar, enquanto, em um movimento contínuo, pegava com a ponta dos dedos um punhado de grãos e os deixava escorrer.

Ah, então é mesmo você! Não tinha certeza de que já estaria bem — disse Aaron, ofegante.

Oi — ela respondeu com o coração acelerado, levantando-se e batendo a areia do corpo. — Já estou melhor, obrigada. Estava te procurando.

Opa! Isso é bom. Em que posso lhe ajudar, senhorita? — perguntou ele, limpando, com a camiseta, o suor do rosto, após a corrida diária.

Eu… — Ela tentava se lembrar do que precisava responder, mas o tórax largo, o abdômen reto, evidenciando o vaivém da respiração ainda irregular, e os braços fortes expostos sob a regata preta, dificultavam o seu raciocínio. — Eu queria te agradecer por tudo que fez por mim.

Imagine… — Ele retirou, com delicadeza, o cabelo dela que escondia o ferimento. — Já desinchou… que maravilha!

Com o coração na garganta, ela sentiu naquele toque a intensidade de um vulcão, pelo menos foi essa a temperatura que seu corpo alcançou. E junto com o olhar ardente e sedutor, a fragrância masculina cítrica amadeirada recendeu, mesmo com todo o suor do exercício. Era o quadro perfeito para ela se perder por completo.

Mas eu aceito discutir sobre a sua gratidão em um jantar, pode ser? — Os lábios perfeitamente desenhados e suados se abriram, evidenciando os dentes brancos.

Jantar? — Todos os alertas acenderam. E agora, o que é que eu faço? Elyse se perguntou, pensando no namoro mal resolvido. — Pode ser… qualquer dia — respondeu com um meio sorriso.

Que tal na quinta-feira?

Tudo bem, então.

Se ela esperava algum estímulo para sair da inércia e terminar o seu desgastado relacionamento, ele acabara de surgir. Tinha dois dias para terminar o seu namoro.

3

— Como está o andamento do trabalho?

— Confesso que não sei. — O sr. Vyctor apreciava e girava a taça de vinho que tinha em mãos. — Há alguns dias, eu provoquei o assunto e a Lyse se abriu comigo, chegando até a chorar. Então, aproveitei e falei o que precisava, mas depois disso ela se fechou e não comentou mais nada.

— Temos alguma chance?

— Ela está mexida e, de algum modo, ligada a mim.

— Isso comprova a força do elo entre vocês.

— Ah, Angélica, não vou desistir jamais. Se precisar fazer isso mil vezes, vou fazer.

— Talvez não tenha outra chance. — A enfermeira cruzou os braços e os pés ao se apoiar, em pé, na estante da sala.

— Sei disso. — Ele largou a taça e, com os cotovelos na mesa, juntou as mãos sobre a boca. — Mas tenho fé de que a Lyse não vai fazer nenhuma besteira.

— Tomara.

— Nunca duvide de que estou dando o meu melhor, mas ela está muito apreensiva. O ex não dá sossego.

— Cada um é o que é. Resta saber como ela vai reagir.

— Você podia ajudar.

— Já estou ajudando, afinal estou aqui com você, não estou? — Ela respirou e se aproximou devagar, apoiando as mãos na mesa onde ele estava. — Não posso tomar as decisões, nem por ela, nem por ninguém. — Angélica o encarou. — As escolhas são individuais e a responsabilidade também, uma vez que as consequências vêm coladinhas com o que se decide. Essa é a beleza da vida e só assim vocês, humanos, vão crescer.

Ele suspirou.

— Eu sei. É que o tempo está acabando.

— Vocês já evoluíram com o texto?

— Já chegamos ao ponto do acidente. Agora está nas mãos dela.

— Ela não percebeu nada?

— Eu adapto para o tempo em que ela vive, tudo o que é necessário, para não gerar nenhum tipo de curiosidade, como os medicamentos, a consulta e o tratamento. Lyse tem mais coisas com que se preocupar, do que saber que a história que estou contando já aconteceu, mas… no futuro. Ela ainda não tem o preparo para essa compreensão.

— Então, agora é ter paciência.

— E ele vai chegar em breve.

— Sabíamos disso desde o início, não é? — O velho homem assentiu com a cabeça e Angélica continuou: — Não é o que queríamos?

Ele apoiou o queixo nas mãos.

— Não foi pra isso que viemos? — insistiu.

O sr. Vyctor deixou as perguntas sem respostas porque esse seria o momento mais difícil. E a decisão da Lyse poderia mudar o futuro, o seu futuro.

— Ele acabou de chegar…

Lyse reorganizava o texto no hotel, como nas demais noites. Hoje, em particular, flutuava pelas palavras do ancião, e por estar, de novo, acelerada na escrita.

Seu ex-marido ligara duas vezes, mas ela decidira não atender. Não queria que a irritação e a raiva influenciassem na narrativa, por isso deixou o celular no silencioso.

Sentia que possuía muito em comum com Elyse. Por essa razão, vibrava a cada passo certeiro da protagonista, que depois que conheceu Aaron e marcaram de sair, encheu-se de coragem para terminar o relacionamento frustrante que vivia, visto que era o correto a fazer. Após outros encontros, a atração só aumentou, assim como as afinidades. Das diferenças, eles riram. Até que em uma balada, ambos se encontraram com o “ex namorado”, que perdeu a cabeça e partiu para cima do rival em uma briga, e era na cena seguinte que Lyse trabalhava.

Dói aqui? — Elyse perguntou, limpando a lateral do queixo do Aaron, que sangrava.

Ele riu.

Se eu soubesse que você cuidaria de mim com todo esse carinho, eu teria pedido pra conhecer o cara antes — comentou, fazendo uma careta de dor, enquanto ela tratava dos ferimentos com a leveza dos dedos delicados.

Ela o encarou, mas sorriu. Comparado com o ex, ele estava bem, mas com certeza, com o rosto doendo e prestes a inchar em alguns pontos.

Engraçadinho…

Ele também riu ao admirar a boca que tanto gostava de tocar, os cílios espessos tão próximos do seu rosto, e o olhar que o tirava do prumo… Respirou fundo.

O que foi? — ela perguntou sorrindo.

Havia planejado um lance mais romântico pra te dar um presente, mas, graças ao babaca do seu ex, vou te dar aqui mesmo. — Tirou uma caixinha do bolso da calça e lhe estendeu. — Ainda bem que não a perdi durante o show que demos.

Elyse desembrulhou o estojo e, surpresa, deparou-se com uma pequena medalha retangular, com as letras E ” e “A entrelaçadas.

Aaron, que lindo! Ah, meu amor, adorei. — Ela o abraçou. — Muito obrigada —, falou admirando a peça.

Ele, orgulhoso, pegou o pingente com doçura, e o pendurou na corrente que ela usava. E Elyse apreciou o seu brilho através da luz sobre o espelho, tocando-o.

Depois você o namora mais. Estou aqui nesse cubículo que você chama de banheiro, todo doído devido aos agrados daquele idiota, e o seu perfume está me tirando do sério.

Fique quietinho enquanto eu termino aqui — respondeu, voltando a limpar o outro lado do rosto machucado.

Você não entendeu. Essa fragrância doce me excita e estou com um esforço sobre-humano para não fazer voar todo esse seu arsenal farmacêutico — apontou ao redor.

É mesmo? — Com ar de riso, ela se aproximou mais. — Então deixa eu ver se ajudo sem algodão ou pomadas. — Deu-lhe um beijo leve no rosto. — Dói aqui?

Ele negou com a cabeça. Ela o beijou entre o nariz e a boca, largando sobre a bancada tudo o que segurava.

E aqui?

Não — respondeu, rouco, agarrando a beirada do tampo da pia com força.

Ela beijou-lhe o canto da boca, já sentindo a excitação dele no seu ventre.

E agora? — cochichou e ele apenas fechou os olhos.

Os corações de ambos dispararam.

Elyse então, mordiscou os lábios de Aaron, bem devagar, abrindo-os e ele, de imediato, buscou a língua que o provocava, com a sua.

Seus braços tocaram as coxas da amada e foram subindo devagar pelas costas até a nuca, onde a segurou com firmeza e aprofundou o beijo. Abraçado nela, desencostou-se da pia e caminhou lentamente até a cama larga no quarto, onde, em uma fração de segundo, separaram-se e se despiram, tendo em mente apenas a volúpia, ampliada pela intensidade da paixão que viviam.

Lyse estava tão quente quanto a sua quase xará, buscando nas lembranças, a última vez em que vivera algo assim. Relera esse trecho algumas vezes, apaixonada por Aaron e achando graça disso.

Esses poucos dias em que convivera com o sr. Vyctor, ouvindo-o contar essa história com o coração, foram suficientes para se apegar ao velho homem e a respeitá-lo. Inteligente, mais lúcido do que muitos jovens que conhecera, ele lhe dera a oportunidade, não só de quebrar o bloqueio criativo, como de enxergar a vida sob um prisma menos sofrido, fortalecendo-se para encontrar o caminho certo.

Ele não esclarecera qual o seu envolvimento com o casal principal do romance, nem concluíra a narração. Era como se dali para a frente tudo ruísse, ele sofresse com isso e ela, somente ela, tivesse o poder de mudar o futuro dos dois. “Lyse, o final está em suas mãos. Elyse vai visitar os pais na cidade vizinha, e na volta, sofre um acidente grave. Daí para a frente, é você quem decide o que vai acontecer”.

— Ah, seu Vyctor, é claro que quero um final feliz — falou para si.

Ouviu uma batida na porta e franziu a testa porque não solicitara serviço de quarto, mas se levantou e foi abri-la.

— Lauro? — Deu um passo para trás. — O que está fazendo aqui? Como foi que entrou?

— Ah, sua vadia, já que não atende as minhas ligações, tive que vir até você, minha querida.

A raiva e o medo invadiram o seu coração e a sua mente, ao ponto de ela ver apenas o abajur com a base pesada à sua frente. Se ele avançasse, não hesitaria.

4

— Nós temos que ir embora, Aaron.

— Você precisa ajudá-la.

— Já conversamos sobre isso.

— E se, em vez de ela o matar, ele o fizer?

— Nós dois sabemos que isso não acontece. Lauro tem atitudes agressivas, sim, mas não ao ponto de matá-la. É ela que vai decidir o futuro que vai ter, literalmente. Não só agora, mas quando vocês se conhecerem lá na frente.

Ele caminhou até a Angélica, já sem o disfarce da cadeira de rodas.

— Lyse nunca quis machucá-lo. Foi apenas para fugir, mas se ela pode mudar a conduta, ele também pode. E você é um anjo, então por favor, vá para perto dela.

— Você já cumpriu a primeira parte do seu acordo redimindo-se dos seus erros de diversas vidas. Agora precisa voltar à origem e esperar pra nascer no futuro, torcendo para que a Lyse tenha bom senso de não eliminar o ex-marido, porque só assim terão chance de vivenciar, lá na frente, esse amor tão bonito.

— Uma semana é muito pouco para se mudar alguém.

— Foi só o que você conseguiu.

— Então só vou saber o que houve, no futuro quando ela voltar da cirurgia depois do acidente? Não sei se vou resistir ao vê-la olhando o tempo todo para o nada. Por favor, não permita que eu passe por isso de novo.

— Se Lyse acertar a cabeça do ex com a base do abajur, mesmo ele sendo o traste que é, vai perder sim a lucidez lá na frente, vegetando até o fim dos dias da próxima vida, vamos dizer assim.

— E eu, como fico? Voltei pra essa existência, tentando cortar o mal pela raiz; a segunda parte do acordo é esperar mais um século pra poder viver com a Elyse, e nem posso saber se ela será capaz de se controlar? — Passou a mão pelo cabelo.

— É o trato. Mas quero te dizer que estou muito orgulhosa de você pela escolha que fez. Eu me pergunto quantos são capazes de voltar ao passado, ajudar a mulher que amam a não gerar débitos nem comprometer uma vida futura, além de aguardar um século pela chance de um recomeço. Esse é o verdadeiro amor.

— E mesmo assim, só vou saber o que vai acontecer na próxima existência?

— Sim. — Angélica lhe estendeu a mão. — Agora precisa ir e esperar. E quando nascer novamente, não vai se lembrar de nada, segundo combinamos.

5
Século XXII

Monitorada por diversos equipamentos, Elyse se recuperava, no hospital, do grave acidente que sofrera. Como de costume, Aaron dividia com a família da amada, desde a cirurgia, há dois meses, o seu horário de visitas, e, sempre entrava ansioso.

A aparência terna da jovem olhando para o nada, tocava o seu coração. Já virara rotina observar todas as luzinhas piscantes ao seu redor.

— Oi, meu amor, quando vai voltar pra nós? — Ele se sentou na cama, como fazia diariamente e pegou a mão dela. — Estou com saudade das nossas conversas, do seu sorriso, do seu corpo e — respirou fundo — de nós dois. Sou eu… Tenho vindo te ver todos os dias… — Mas ela não o ouvia.

Aaron passava a mão na testa da amada, enquanto ela continuava com o olhar perdido. A inquietude que sentia, desde que a namorada abrira os olhos, transformara-se em pânico. Abaixou a cabeça sobre o lençol, ainda segurando-lhe a mão e não viu quando ela piscou algumas vezes.

— Aaron? — ela chamou baixinho, olhando para ele.

E esse foi o momento em que ele, de alguma forma, que não conseguia explicar, renasceu.

— Ah, olá! Você acordou, Elyse. Sente-se bem? — perguntou a médica recém-chegada.

A jovem assentiu com a cabeça, enquanto o rapaz se recompunha do impacto.

— Vou pedir alguns exames — explicou, atenta aos equipamentos.

— Claro — ele concordou. — Qual o seu nome? Eu nunca a vi por aqui.

— Sou a dra. Angélica.

— Muito prazer, doutora.

Ela sorriu em resposta.

— Fico feliz que esteja bem a doutora falou para a acidentada. Esse rapaz te ama muito. Depois de tudo que passaram, agora é hora de viverem esse amor que transcende.

Ambos a fitaram, curiosos.

Vou solicitar os exames, mas estou certa de que não vão mais precisar de mim disse, com ar de riso, ao sair.

Tomara que não concordou Aaron, aproximando-se da amada e lhe acariciando a face.

— Há quanto tempo estou aqui?

— Dois meses. Você se lembra do acidente?

Ela negou com a cabeça.

— Tudo bem. — Ele se curvou beijando-lhe a testa.

— Você está com o meu pingente — ela sussurrou, ao observar a medalha dourada balançando na corrente ao redor do pescoço do amado.

Ele tocou a peça. E imagens desconexas de muito sofrimento surgiram na sua mente.

Não lembrava, mas cometera erros em outras existências, e com um século na reclusão, amando e esperando que a sua amada não contraísse dívidas semelhantes às dele, quitara os seus débitos. De algum modo, ela havia sido mais racional do que ele sempre fora, e agora teriam uma chance de viver esse amor. Alcançara o seu intento, e a conexão dos dois fora mais forte do que qualquer outro sentimento.

A certeza que lhe tomava o peito nesse instante era a de que a vida é o resultado das escolhas que fazemos. Então, Aaron sorriu e em algum local, por perto, seu anjo também.

 

FIM

 

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  • Nossa esse conto é muito bom, Eno merece virar livro hen <3
    Ou uma web série aqui na Cyber TV <3

  • Simplesmente amei o conto. O desenrolar entre o passado e o presente faz o leitor ficar curioso com o desfecho. Achei fantástico você abordar vidas passadas e os resgates que temos em cada uma delas. Simplesmente maravilhoso. Amei. Parabéns querida!

    • Muito obrigada, Raquel. Fico bem feliz por você ter gostado da história… ❤️

  • Que delícia de conto! A mistura de épocas, as consequências das escolhas, a possibilidade de mudar, de corrigir de recuperar…muito profundo, gostoso de ler. Eu só queria a continuação. Pode ser? ❤️

  • Nossa esse conto é muito bom, Eno merece virar livro hen <3
    Ou uma web série aqui na Cyber TV <3

  • Simplesmente amei o conto. O desenrolar entre o passado e o presente faz o leitor ficar curioso com o desfecho. Achei fantástico você abordar vidas passadas e os resgates que temos em cada uma delas. Simplesmente maravilhoso. Amei. Parabéns querida!

    • Muito obrigada, Raquel. Fico bem feliz por você ter gostado da história… ❤️

  • Que delícia de conto! A mistura de épocas, as consequências das escolhas, a possibilidade de mudar, de corrigir de recuperar…muito profundo, gostoso de ler. Eu só queria a continuação. Pode ser? ❤️

  • Pra variar, surpreendente. Que facilidade em brincar com passado, presente, ressignificar, evoluir e amar. Não exista nada que leia que não mexa profundamente comigo. Obrigada por aflorar sensações e sentimentos com narrativa que já é sua marca registrada.

  • Ai Enoizi que lindo. Demorei pra conseguir vir até aqui ler. Mas fiquei encantada. Agora vou imaginar uma vida longa e feliz para esses dois. Parabéns.

    • Ah, Gessyca, muito obrigada pelo carinho. Tomara que, agora, eles consigam se acertar, não é??

  • Simplesmente amei! Um amor sem barreiras do tempo. A chance de escolher o caminho que trará felicidade, mesmo que a resposta venha em outras vidas!

  • Pra variar, surpreendente. Que facilidade em brincar com passado, presente, ressignificar, evoluir e amar. Não exista nada que leia que não mexa profundamente comigo. Obrigada por aflorar sensações e sentimentos com narrativa que já é sua marca registrada.

  • Ai Enoizi que lindo. Demorei pra conseguir vir até aqui ler. Mas fiquei encantada. Agora vou imaginar uma vida longa e feliz para esses dois. Parabéns.

    • Ah, Gessyca, muito obrigada pelo carinho. Tomara que, agora, eles consigam se acertar, não é??

  • Simplesmente amei! Um amor sem barreiras do tempo. A chance de escolher o caminho que trará felicidade, mesmo que a resposta venha em outras vidas!

  • Ai que lindo Enoizi!!! Amei demais! Bem a sua cara mesmo essa ideia de transcender e voltar ao passado

  • Ai que lindo Enoizi!!! Amei demais! Bem a sua cara mesmo essa ideia de transcender e voltar ao passado

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