Conto: SOM DO AMOR
Autor:
Hugo Martins

 

 

Amaro, um velho padeiro que exalava de seus poros o som do amor, a música tomava-lhe a alma mesmo sendo criticado.

Não era o mais belo dos homens e vivia o seu Quase em quase tudo,mas tocava o céu como ninguém, ser divino e poético. 

Ele explodia em luz divina,tocando o coração de todos que o conheciam, e os que não conheciam também.

Isolou-se do mundo nem mesmo sua música o animou, mas um som divino de sua cama o levantou.

O velho padeiro renovou-se,cantou novas historias, hipnotizou corações antes mesmo de ir embora.

E seu QUASE tornou-se completo, deixando -se em nossas memórias.

Amaro amou mais que si, ele amou o mundo.

(Ellen dos Santos)

 

Havia música nos olhos de Amaro. Uma canção, somente uma canção que tocava a alma. Não tinha beleza que lhe tornasse atraente, mas seus olhos eram profundos. Como uma fênix que surgia dos mares recônditos, carregando ondas em suas asas, repousava seu olhar cansado sobre a humanidade e transmitia amor.

Andava pelas ruas molhadas de Roma. Um povo estranho, uma língua estranha. E ele, ainda mais estranho, no meio daquela gente. Era difícil enxergar na multidão, mas Amaro sempre procurava alguém pra enxergar. Queria transmitir o carinho que transbordava de si.

Maltrapilho e com andar triste, sonhava, olhando as estrelas da cidade. Podia abraçar-se e esquentar seu corpo do frio da Itália. Tão sozinho. Tão distante. “O que fazer quando todos estão longe?”, perguntava-se.

Um andarilho perdido em Roma. Era padeiro, velho e cansado. Um violino quebrado, jogado no canto da sala, embaixo de entulhos.

Na padaria, Amaro abençoava a existência. Servia os pães espirituais; aqueles que a alma anseia. Sorria, chorava, abraçava. Um homem de braços acolhedores. Abraços que acalentavam a criança interior dos clientes. Um frescor pela manhã, assim era ele. Um doce de ser.

Mas o espetáculo ainda não estava completo. Ao final do dia, cobria-se com sua melhor manta, um cachecol vermelho e um sobretudo negro. A alma vibrava. O melhor do dia havia chegado: a aula de canto.

Quando entrava no salão, sabia que estava entrando em um templo. Um lugar solene, em que uma aura inundava o ambiente. Uma luz invisível que perpassava os corações.

O mestre sentava-se diante do piano e tocava. Olhos brilhantes e esfomeados sorviam a maestria do professor. “Tão afortunados somos”, pensava Amaro. Diante da grandeza, do esplêndido, do intangível, seus olhos marejavam e seu peito ardia. Uma chama soprava daquelas notas e aquecia o âmago, aquele lugar inacessível que as canções trilham. Eram os timbres, os acordes, as melodias. Cada nota encaixada. O Fá, o Sol, o Lá. Elas dançavam dentro dele, carregando uma adaga. E perfuravam, e perfuravam, sangrando o coração, rasgando os sentimentos, expulsando tristezas e decepções, fazendo-lhe derramar a existência diante da canção. Era assim que ele sentia. E depois ouvia.

As aulas eram uma dança. Gritos, raiva, amor; tudo estava ali. O mestre exigia o máximo de seus alunos. Eles choravam de angústia, riam de euforia, rasgavam-se por dentro. As partituras eram carrascos cruéis. As notas, deuses inalcançáveis. Sempre distantes; sempre tão altas.

Amaro era um péssimo barítono. Sem nenhum talento, técnica ou futuro. “Orribile” gritava-lhe o mestre. Mas, ele continuava. Dia após dia o “orribile” entrava no salão e chorava, não com lágrimas, mas, com pesares. Um grande pesar escorria de seus olhos invisíveis. Todavia, ele amava. Amava o canto, as vozes, o piano e as melodias. Nascera para aquilo, mesmo que aquilo não tivesse nascido para ele.

Orribile viver. Orribile ouvir a rejeição. Ela explodia o seu ego. Pisava, despedaçava. Mas, ele continuava. Imparável, incansável. Ignorado por todos, ignorando a si mesmo. Uma voz bruta que rugia do nada, um nada cinzento e sombrio.

Ao voltar para casa, já na alta da noite, um sopro solene lhe carregava. Era levado até a cama e dormia um sono doce, lento e suave. Um só. Somente só, sem aplausos. Amaro morria.

Sua morte física não alcançava seu espírito, viveria na existência.

Uma bambina foi até a padaria, e em desespero clamou: “Minha filha está doente. Vai visitar lhe, certamente ficará melhor”, disse a voz da esperança ao velho padeiro.

Ele acatou com agilidade, indo visitar a menina em uma tarde chuvosa.

Aquelas mãos cansadas seguravam as mãos inocentes da singela Clarisse. Só um sorriso e o quarto frio; aqueceu. Ela sorriu com o coração, e o coração de Amaro correspondeu. Uniram-se antes mesmo de tocarem as mãos, quando sorriram com vida.

Clarisse não podia deixar de demonstrar a alegria que saltitava em seu peito. O velho padeiro fora visitar lhe, aquele que servia pães com alegria, que cantava uma música com o olhar. Câncer. Clarisse não queria morrer, não queria ficar mais naquela cama. Queria passear com o padeiro, dançar com ele entre os pardais, num jardim de acácias, sentindo o aroma das alfazemas, o campo de lírios e o sol de testemunha. Esses sonhos felizes sorriam para ela. E sorriram na presença do padeiro.

Naquela mesma tarde cinzenta, o céu de Clarisse e Amaro era cor de rosa. Aquele rosa que tem o algodão doce, com cheiro de açúcar e o sentimento de infância. Ele a carregou em seus braços, e reuniu todas as crianças do Hospital Infantil. Todos tinham olhinhos cansados, como se a flor da vida estivesse murchando.

Amaro bailava com eles. As enfermeiras sorriam com o padeiro. Era um sopro de vida que ele trazia; uma paz, um sorriso feliz. O feliz de felicidade, da infância. Das ruas carregadas de meninos, das pipas voando nos céus. Das meninas que pulavam cordas, dos meninos jogando bola, das velhinhas sentadas nas calçadas, olhando o movimento. Ele lembrava tudo isso, sem esforço, apenas com o seu olhar.

Aquela tarde, já colorida, seria coroada com os acordes de um piano. Amaro sentou diante do instrumento e, com a reverência de um súdito perante seu rei, tocou. Uma linda canção nascia daquele momento. As crianças, surpresas, estavam encantadas, todas concentradas no padeiro. Um som sobrenatural brotava daquele piano. Amaro derramava amor sobre o teclado, sua alma era visível diante de todos. Ela dançava lentamente, de um lado para o outro, como uma brisa de inverno.

O céu silencioso descia sobre a sala, enquanto o padeiro tocava. Ele passeava lentamente entre as crianças doentes, suas mãos tocavam o interior dos pequeninos. Esse céu solene agachava-se diante dos mais frágeis e, segurando suas mãos, enxugava as lágrimas dos abatidos e animava os aflitos. Era um céu divino que andava por ali.

E todos foram curados. Se não do corpo, mas da alma.

Um gigante saía daquele hospital. Não era um simples padeiro, mas um celeste que acessava os céus e suas nuvens, a lua e as estrelas. Que carregava as almas para o universo, lançando-as no meio das galáxias, no frio congelante do vazio. No brilho enervante dos luminares, onde se podia olhar a terra de longe, ver o globo vazio, sem forma e sem vida. Uma gota negra no universo perdido, carregada nos acordes do padeiro, um gigante celeste.

Ele chorou durante toda a noite. Podia sentir o câncer comendo sua carne. Ele sentia tudo isso quando se lembrava das crianças. “Havia um câncer dentro de todos, mas nas crianças? Elas nem odiavam ainda!”, pensava Amaro. O pior câncer era o ódio. Matava os vivos, matava os mortos. Um erro. Era melhor amar.

Levantou-se pela manhã. Perdera o emprego. Estava faminto, mas tinha vizinhos. Duas senhoras de sorriso fácil, envergadas pelo tempo. Amáveis pelo tempo, vivas por dentro. Laura e Laureta. Irmãs. Amigas. Viveram intensamente, tiveram filhos, netos e bisnetos. Acolhidas, amadas, reverenciadas, queridas na vizinhança. Receberam o ex-padeiro com alegria, sorriram ainda mais tomando o café da manhã. Deram atividades para ele, arrumaram o quarto de hóspedes, fizeram uma torta de amoras. Sorriram enquanto tomavam café pela tarde. Cochilaram e acordaram, jogaram milho para as galinhas do quintal, mandaram Amaro consertar a calha. Tornaram-se familiares. Ele não teve mais fome. Fora acolhido pelas irmãs, fora aquecido pelo amparo.

Ele voltou às aulas de canto. Quase perdera a voz por conta de uma tosse persistente. Aliás, com Amaro, quase tudo fora quase. Quase casado, quase pai, quase padre, quase rico. Nada nunca se concretizara em sua vida. Sempre um grande quase. Quase feliz. Quase…

E nesse embalo, foi regado de música. Voz, piano, violino. Uma orquestra inteira. Sentia em si um sonho que quase se concretizou, mas agora era tarde. Já era velho, não poderia ser mais um cantor de ópera. Quase. Vinte anos antes, quase ganhara uma bolsa para estudar em Paris, mas, sua mãe doente pedira que ele cuidasse do sítio, no interior do Brasil. E, Amaro, obediente, quase ganhara o mundo. Vinte anos depois, sua mãe morrera. Agora ele vivia parte do seu sonho. Ainda que sua voz fosse quase um fiasco.

Um som grave inundou a sala. Um rufar de pesar. “Adeus, Amaro. Não te queremos mais aqui”, disse o mestre do piano, dispensando o ex-padeiro. Agora, o quase padeiro, também era quase músico.

Outro acorde grave de pesar. Uma nota triste e solitária soou no coração de Amaro. “Saia do nosso país. Não queremos mais estrangeiros”, disse o governo italiano. E o homem teve que deixar Roma.

Sem dinheiro. Sem profissão. Sem música. Deixou a Itália como um piano mudo. Um teatro vazio. Uma viela deserta e sombria. Noites de angústia e tempestades.

Amaro desembarcou em uma capital do Brasil. Viajou, foi para um lugar menor. Viajou, chegou numa cidade menor ainda. Mais uma viagem até chegar ao interior do interior. Voltou para sua casa, vazia, abandonada, empoeirada. Voltou para um mundo esquecido por Deus e por todos. Trancou-se em si mesmo, calou sua voz, dormiu durante dias. Sem som e sem sentido, sem tempo para voltar. “Ah, se tivesse os meus quinze anos de volta. Se pudesse voltar no tempo. Mudaria tudo, viveria para a música, cantando com os passarinhos, voando para bem longe em busca de aprendizado”.

Quase feliz. Quase.

“Esse é o peso da covardia”, chorava. Estava numa cova escura, atolando em lamentos, sem ninguém para socorrê-lo. Esse poderia ser o seu fim. Os fins também podem ser tristes. Em mágoas, em soluços de arrependimento. Mas a vida dura pedia que Amaro levantasse. Os pássaros iam à sua janela e chamavam-no. Mas ele os observava e chorava. O céu que descera sobre o hospital havia esquecido Amaro. Estava sozinho, em completa e aguda dor. A morte no peito, na alma, no ser. Morte por dentro. Nada poderia levantar aquele homem. Só um milagre. E esse milagre não viria. Se demorasse mais, encontraria um QUASE vivo. Sem sonhos. Sem nada.

Um Dó. Uma nota. Uma melodia soou naquele frio da madrugada. Depois de semanas sem se levantar da cama, Amaro sentiu uma brisa conhecida. Aquela mesma brisa que sentira ao sair do hospital. Ele colocou um pé no chão, esforçou-se para apoiar o outro. Andou devagar até a porta e saiu no quintal. Olhou adiante e não viu ninguém. “Devo estar louco”, pensou. Já ia dando meia volta, quando ouviu a melodia novamente. Um som perfeito, como uma voz que não se pode ouvir. Ele ouviu aquela canção, tão profunda, íntima e bela que lhe fez chorar por dentro e por fora.

Sabia de onde vinha a canção. Vinha do céu. Divina, amável, amiga. Como uma mão de veludo, a canção acariciou lhe a face, e enxugou lhe as lágrimas. Sussurrou vida em seus ouvidos. Fez brotar, no íntimo, esperança. Uma chama de amor. Devolveu-lhe o sorriso. 

Pela manhã, pôs-se de pé. Vivo em espírito. Em paz.

Limpou toda a casa, consertou o encanamento, limpou o quintal. Fez uma refeição digna, aparou a barba, pôs um perfume, e sorriu. Tinha renascido.

Foi até a cidade mais próxima e entrou em uma loja de instrumentos. Com a mesma reverência solene, sentou-se diante do piano e tocou. Tocou como se fosse seu último dia de vida. E, enquanto tocava, derramava lágrimas. Lágrimas de gratidão. E, dos seus dedos, escorria um orvalho de fé e luz.

Os transeuntes entraram e olharam hipnotizados. Os vendedores choravam. A loja ficou repleta de famintos, a calçada cheia de curiosos. Alguém disse na rádio que um som dos céus tocava no centro da cidade. Todos correram para ver e ouvir. Todos foram tocados.

De toda dor, Amaro sugava vida. Beleza inalcançável. Um coro celeste estava com ele. Não estava só, com certeza. Havia uma presença espiritual que inundava aquele ambiente, tornando-o sagrado. E, mais uma vez, o padeiro lançou as almas no universo de amor. Um oceano de graça, perdão e gratidão tomou todos de assalto. Muitos caíam aos prantos. Vidas eram transformadas. O gigante operava mais um milagre.

Deram-lhe o piano. Ganhou alunos, de todas as idades. Dedicou-se a dar aulas. Jovens corriam ao encontro do Mestre Amaro. Sábio. Profundo. Verdadeiro.

Amaro abria a boca e exalava amor. Suas palavras eram doces, agradáveis. Seu olhar sereno, de um ser celeste. Sua face angelical, pacífica. Um homem de alma expandida, que cabia muitas vidas. E, todos queriam morar em Amaro. Todos queriam ser transformados por ele, por sua vida interior. Uma chama bruta, suave e viva, que aquecia a todos.

Um homem de muitos filhos espirituais. Um guia. Um mestre. Aprendeu a amar. A se amar, a amar o próximo. Um homem íntimo do céu.

Fez grandes músicos. Recebeu várias homenagens nacionais e internacionais. Nunca fora um grande cantor, mas havia nascido para cantar, para encantar. Fez com que outros cantassem por ele. E seus discípulos cantaram a voz de Amaro por onde passavam.

Clarisse cantou sobre Amaro. As crianças do hospital cantaram sua música. As enfermeiras falaram dessas canções. Os clientes da padaria. O mestre do piano. Os alunos. As irmãs Laura e Laureta diziam com orgulho quem fora Amaro. “Um grande ser”, “um grande homem”. Homem de dores, que tinha música no olhar, amor no coração e paz no falar.

Inesquecível. Ele não se deixou esquecer, ofereceu seu legado de respeito, suas palavras de consolo, seu sorriso amigo. Sua música celeste. Não era mais um QUASE.

No dia de sua morte, os céus se abriram. Amaro já não estava entre nós, mas, ele vivia na existência. Vivia no íntimo dos seus alunos, no íntimo dos seus vizinhos. Mesmo velho, desgarrou-se de si e entregou-se ao outro. Sem temer as dores, as decepções. Ele amou. E foi AMARO.

FIM

 

 


 

Nesta sexta, não perca o segundo conto da série: EM BUSCA DO AMOR – de Raquel Machado.

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  • Lindo demais, chorei e lendo de novo com esse fundo musical chorei novamente T_T
    Arrasou amigo <3

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  • Que bonito! Bem poético o texto. Abre para a reflexão de todos os quases de nossas vidas!

  • Linda a história. Especial para todos que amam a música e o bem que ela faz e sua capacidade de transformar vidas.

  • Obrigado por lerem e compartilharem o conto. Grato pelas palavras de apoio e incentivo! Sexta-feira tem mais

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