A fraca luz amarelada iluminou um porão sujo e bagunçado. O silêncio tomava conta do lugar. Nos alicerces carcomidos pelo tempo e pelos cupins se via as teias de aranhas povoando o ambiente com pequenos sacos de ovos. Pelas laterais diversas prateleiras com frascos menores contendo líquidos desconhecidos e frascos maiores com fetos e cabeças humanas. Uma escada íngreme levava até uma porta de metal fechada no topo. A fechadura moveu-se e a porta abriu. Imediatamente, uma mulher loira com os cabelos desdenhados e maquiagem borrada, apareceu chorando com as mãos amarradas à frente do corpo. Um estrondo da porta às suas costas fechando e um grito desesperado se ouviu e a mulher despencou até cair deitada no pé da escada. Algumas latas em um canto caíram e um pequeno roedor passeou por cima do corpo da loira.
A luz amarelada começou a piscar ao mesmo tempo em que passos pesados começaram a descer pela escada. Os sapatos pretos bem lustrados batiam calmamente pelos degraus. As calças sociais pretas bem alinhadas lembravam os trajes de gala. A camisa branca, o blazer preto e, no pescoço, uma gravata vermelha com o nó frouxo. O dono do traje digno de festa, parou de pé diante da mulher loira que gemia de dor. Em um surto de raiva com a luz que não parava de piscar, ergueu sua mão em direção ao suporte e apontou com o dedo indicador.
– Illuminum! – ordenou ele com uma voz imponente.
De imediato à sua ordem, uma claridade fora do comum tomou conta do ambiente. Foi então que revelou-se o rosto daquele homem. Bem aparentado, com seus olhos esverdeados e cabelos pretos, ele sorriu mostrando seus brancos dentes e se agachou próximo à mulher.
– E então ele disse: faça-se a luz! Gostou do meu poder? – disse o homem em tom sarcástico.
Ele agarrou os cabelos loiros e bagunçados da mulher e a ergueu do chão. Os olhos arregalados dela percorriam aquele lugar sombrio com aquelas coisas horrendas pelos frascos. Gemia e chorava. O homem a engravatou e colocou uma faca com uma carranca no cabo no pescoço dela. A lâmina afiada percorreu lentamente a sua garganta. O sangue começou a jorrar e, sem mais nem menos, a luz voltou a piscar. A mulher caiu sem vida. A faca foi ao chão. E o sorriso do homem paralisou quando uma lâmina atravessou lateralmente sua cabeça fazendo sair uma luz branca de seus olhos e sua boca.
– Malditos demônios! – disse uma voz rouca.
– Não chegamos a tempo de salvar ela. – respondeu uma doce voz feminina.
A ponta da lâmina voltou pelo mesmo caminho e o homem de gravata vermelha também caiu ao chão.
Wendy era uma mulher de pele clara e cabelos pretos, bastante atraente com seus olhos azuis e corpo escultural. Ela limpou a lâmina ensanguentada no blazer impecável daquele homem morto. Seu companheiro de voz rouca era Adam, alto, cabelos curtos e escuros e barba por fazer. Ele se agachou perto da mulher loira e lamentou sua morte.
– O cerco está fechando. – disse Adam.
– Está tudo tomado por demônios, fantasmas e criaturas. Não temos mais muito tempo. – respondeu Wendy enquanto verificava os frascos nas prateleiras. – Que lugar é este? – questionou ela.
– Eu vou ligar pro Reich. – disse Adam pegando seu celular e procurando um lugar no porão onde tivesse sinal.
Reich, um homem mais velho, de cabelos compridos e barba longa, estava em um carro preto dirigindo por uma rodovia deserta. O som do carro tocava um rock pesado e ele batucava com as mãos ao volante. Ele passou em alta velocidade por uma placa que indicava que ele estava entrando na rota 666. Seu celular em cima do banco do caroneiro começou a tocar. Tocou uma, duas, três vezes até que ele notou a chamada, baixou o volume do rádio e atendeu.
– Pronto! – disse Reich com o celular ao ouvido.
Ele escutou por alguns segundos.
– Já estou à caminho, Adam. Não façam mais nada antes que eu chegue. Tenho uma coisa que pode ser muito útil pra nós.
Reich desligou o celular jogando-o no banco ao lado e voltou a aumentar o volume do rádio. O rock pesado voltou a tocar. Ele acelerou e o carro preto ganhou velocidade nas curvas daquela rodovia. Enquanto o veículo ganhava distância, dentro do porta-malas um homem careca, de terno escuro e gravata vermelha estava amarrado e com a boca amordaçada.
O pôr-do-sol atrás das colinas jogava os seus últimos raios iluminando aquela casa velha de madeira já gasta e a estrada de terra batida entre arbustos. Wendy e Adam saíram na porta daquele casebre e ficaram observando o carro preto se aproximando. Enquanto Wendy ficou na porta segurando em mãos um machado velho, Adam desceu o lance de cinco degraus e foi ao encontro do carro que já estacionava.
Reich saiu do carro com seu “jeitão” espivitado e amarrando os cabelos compridos.
– Adam. – disse ele se aproximando e abraçando o mais jovem. – Como estão as coisas por aqui?
– perguntou na sequência em um tom mais preocupado.
Adam baixou a cabeça antes de poder responder.
– Não chegamos com tempo de salvá-la. Mas eliminamos mais um.
Reich olhou para as colinas e respirou fundo.
– Me ajuda tirar este desgraçado do porta-malas porque a noite será longa.
Reich abriu o porta-malas revelando no capô por dentro um pentagrama desenhado. O homem careca arregalou os olhos e, em seguida, recebeu uma coronhada na cabeça que o deixou desacordado. Reich e Adam retiraram aquele corpo e carregaram para dentro do casebre quando a claridade do dia dava lugar à escuridão da noite.
Uma porta dupla de metal vermelho com maçanetas pretas e carrancas demoníacas emolduradas, abriu-se revelando um grande salão iluminado por tochas de fogo nas laterais. Entre cada tocha acesa havia enormes esculturas com os rostos cobertos por panos pretos de seda. No fundo, um altar com velas pretas e uma poltrona dourada. Sentada nela estava uma bela e jovem mulher de cabelos lisos e pretos. Ela usava um terninho preto com uma camisa branca por baixo e mantinha os olhos fechados, parecendo bem à vontade naquela poltrona.
Dois homens negros e fortes usando terno escuro e gravata borboleta vermelha, adentraram o salão lado à lado. Eles carregavam uma grande e pesada caixa retangular que continha escritos enoquianos em suas paredes externas. Se aproximaram do altar, largaram a caixa no chão com cuidado e reverenciaram aquela mulher. Ela abriu os olhos negros como a noite e sorriu se levantando e batendo palmas.
– Ótimo saber que vocês reconhecem sua nova líder.
Ela desceu os dois degraus que separavam o altar do corredor do salão.
– Na ausência de Lúcifer, sou eu quem manda aqui! – disse ela.
Sem mover um fio de cabelo, os negros permaneceram em posição de reverência.
– Seu cajado, Lilith. Retiramos com todo zelo possível da jaula que Lúcifer escondeu. – falou um dos homens.
Lilith se agachou e afagou a caixa enquanto pronunciava em tom baixo aquelas escritas enoquianas. O feicho se desprendeu e ela abriu a caixa revelando o seu cajado, que mais se parecia com uma trombeta. Retirou-o da caixa e se levantou acariciando-o.
– Agora podem ir. Seus serviços não são mais necessários por hoje.
Os dois homens negros se levantaram, mas em momento algum se atreveram a encarar os olhos de Lilith. Se retiraram do salão sem proferir mais nenhuma palavra.
Wendy, Adam e Reich se desfizeram do corpo do demônio no porão do casebre e do corpo da loira que não conseguiram salvar. Fizeram um cerimonial de cremação na floresta que rodeava o local em que estavam, iluminados por uma lua cheia que enfeitava o céu escuro. Enquanto a fumaça dos corpos cremados ganhava os ares, gritos ensurdecedores vinham do interior do casebre.
Wendy fez menção de chorar e esfregou o dorso da mão nos olhos lacrimejados. Reich se virou para o casebre, passou por ela e parou ao seu lado.
– Tantos anos nesta estrada e ainda chora? Deixa disso, vamos entrar. Temos um caso complicado pra resolver lá dentro. – disse ele já pegando um cigarro e um esqueiro do bolso da sua jaqueta surrada.
Adam sorriu e fez sinal pedindo um cigarro para Reich. Este o jogou o maço e seguiu para o casebre. Adam acendeu-o usando o esqueiro que usou para pôr fogo nos corpos e parou ao lado de Wendy expelindo a primeira fumaça para o alto.
– Reich está certo. Temos mais com o que nos preocupar. Ou, em questão de dias, pode ser um de nós seguindo este mesmo destino.
No porão do casebre, o homem que estava no porta-malas do carro de Reich, era mantido sentado em uma cadeira velha no centro do ambiente. Ele tinha as suas pernas amarradas aos pés da cadeira e as suas mãos amarradas por trás do encosto de palha. Ele ergueu a cabeça quando a porta no topo da escada foi aberta. Sorriu o seu sorriso debochado e ficou a observar Adam, Reich e Wendy descerem a escada.
– Agora é nós e você, seu maldito! – disse Adam se aproximando e falando bem próximo do rosto daquele homem.
– Não aguentava mais esperar! – falou o homem mudando o castanho dos seus olhos para um preto amedrontador.
Reich parou mais atrás e tirou um pequeno frasco do bolso da sua jaqueta.
– Dá licença, Adam. – disse ele empurrando o companheiro para o lado e se parando em frente ao homem amarrado.
Aquele homem, que acabava de mostrar a sua verdadeira face de um ser demoníaco, fez pouco caso do cabeludo à sua frente.
– Água benta… é sério? Acha que vai ser o suficiente? – disse o demônio.
Wendy parecia assustada escorada no corrimão da escada, embora já tivesse presenciado muitas cenas parecidas. Reich abriu o frasco e jogou a água benta no rosto do demônio, que se contorceu por alguns instantes e começou à gargalhar.
– Não tô vendo graça nenhuma aqui, seu maldito. Diga-me o seu nome? – disse Reich.
– Acabou, caçadores! O mundo está tomado por criaturas, fantasmas, demônios…acham que vão conseguir exterminar com a gente assim tão fácil?
Wendy virou as costas e subiu as escadas se retirando do local. Reich estranhou a atitude da caçadora.
– Ela tá muito abalada. – disse Adam brincando com um esqueiro escorado em uma parede.
Reich sorriu e agarrou com força o pescoço do demônio à sua frente.
– Quem tá no comando no inferno, ein? É a maldita da Lilith, é? Pois bem, você vai voltar pra lá agora e dizer que nós estamos esperando por ela. Que ela venha até aqui pra resolvermos de uma vez tudo isso!
O demônio amarrado à sua frente gargalhava achando graça de tudo aquilo.
– Acho que é hora de eliminar mais um. – disse Adam jogando o esqueiro ao chão, pegando sua faca e se aproximando.
Antes do golpe fatal, o demônio fixou os olhos no teto e abriu a boca. Uma fumaça preta saiu de dentro do seu corpo e ganhou as alturas escapando por uma janelinha entreaberta em um canto no alto.
– Maldito! – exclamou Reich.
Assim que toda aquela fumaça negra se dissipou do local, o homem amarrado naquela cadeira pendeu seu pescoço para frente. Reich colocou os dedos na carótida conferindo os batimentos e confirmou que o ser humano que servia de casca para o ser das trevas havia perdido sua vida.
Enquanto isso, em um salão reservado no inferno, Lilith estava de costas para uma tumba. Nas suas mãos ela segurava o seu cajado. Ajoelhou-se e baixou o olhar erguendo as mãos com o cajado para além da sua cabeça. Pronunciou algumas palavras indecifráveis e uma chama alta surgiu da tumba às suas costas.
Lilith ergueu a cabeça sorrindo. Levantou e virou-se. Colocou a ponta do cajado na boca e um som suave como notas de um violino começou ecoar pelo salão. Uma a uma, almas negras subiam daquela tumba e sumiam pelos ares. Assim seguiu-se a canção por longos minutos até que a última alma negra saiu da tumba e rodeou o corpo de Lilith antes de sumir. Então Lilith cessou a canção. Apoiou seu cajado no chão e sorriu satisfeita.
– Vão meus demônios, vão. Tomem a terra. Tragam almas para o inferno e transformem os caçadores em seres para combater ao nosso lado.
Wendy observava a lua naquele céu escuro e fumava um cigarro na varanda quando Adam e Reich chegaram. Ela permaneceu imóvel na sua contemplação.
– Perdemos mais uma vida, não é? – disse Wendy dando uma tragada e expelindo a fumaça para o alto.
Adam parou ao seu lado e apoiou os cotovelos no parapeito da varanda.
– Tá cansada disso tudo, não é?
Antes que ela fizesse menção de responder, Adam se virou e ficou de costas para o parapeito da varanda. À frente um vasto gramado e mais adiante uma mata fechada. Reich acendeu um cigarro e ficou escorado ao lado da porta observando.
– Eu tô cansado, Wendy. Reich tá cansado. Nos cansamos de perder gente que não tinha nada a ver com nosso trabalho. Sentimos saudades de quem partiu e nos deixou. Mas não podemos desistir agora.
Um clarão surgiu no alto e estrondos feitos raios ecoaram pelo ar chamando atenção dos três caçadores que olharam espantados. Pequenas nuvens de fumaça preta caíam em diagonal no gramado. Em questão de poucos minutos o pátio estava coberto. Daquelas fumaças começaram se erguer sombras altas que logo se revelaram em cascas para criaturas, fantasmas e demônios, todos libertados das profundezas do inferno por Lilith.
– Ohhh, merda! – disse Adam.
Os três caçadores, mostrando esperança por um fio, respiraram fundo e seguraram firmes suas facas parados lado a lado. Logo tudo escureceu, como se uma nuvem escura tivesse tomado conta de todo o céu. Ouviu-se risadas amedrontadoras e estrondos que se seguiram por um longo período. De Adam, Wendy e Reich não se ouviu mais as vozes e, quando amanheceu naquele lugar, o mundo não era mais o mesmo. A casa havia vindo à baixo, o verde do gramado tornara-se cinzas e as cascas dos fantasmas, criaturas e demônios já não se faziam presentes. Em meio aos escombros se viu os corpos dos três caçadores. Feridos, machucados…sem vida.
Tudo estava envolto em uma densa neblina. Wendy abriu os olhos. Estava deitada e não sabia aonde. Tentou se mexer e todo o seu corpo doía. Tentou virar o pescoço para ver o que tinha ao redor, mas uma dor insuportável a impediu. Tateou com as mãos lateralmente à procura dos amigos.
– Adam? Reich? Estão aí? – disse ela com um tom de voz chorosa.
Escutou um gemido vindo de algum lugar e, logo em seguida, ouviu a voz de Adam lhe chamando. Suspirou aliviada.
– Você tá bem? – perguntou ela.
– Sim. Só não consigo me mexer daqui. – respondeu Adam.
– E o Reich? – perguntou Wendy.
Neste momento, Reich, se arrastando com dificuldade, se aproximou de Wendy. Seus cabelos compridos estavam cobertos de sangue e lama. Ele parou de frente para o rosto dela.
– Reich, você tá bem? Onde estamos?
Reich colocou o dedo indicador sobre a boca de Wendy pedindo silêncio. Um clarão de fogo tomou conta do lugar e, em um soco imediato, os três caçadores se viram lado a lado em frente à um penhasco. Apavorados, fitavam as chamas que se erguiam lá debaixo. Diante deles, em meio às chamas, apareceu Lilith com suas asas negras e olhar amedrontador. Ela parou no ar.
– Acabou, caçadores. Fim da linha! A escolha é única e exclusiva de vocês. Ou se juntam à mim ou jogo-os para o fim.
Os três se olharam e depois encararam aquela rainha das trevas…
… você acredita no céu e no inferno? Crê no Apocalipse?
E tudo silenciou e escureceu.
– Vocês humanos são seres credos… crêem no que é superior à vocês. No que está oculto e no que os impressionam. Vocês temem, adoram, reverenciam e se submetem. Se existe a luz, existe também as trevas. Se existe a altura, existe a profundidade. Existe a aceitação e existe a rejeição. Existe a liberdade e existe a prisão. Se existe o amor, também existe o ódio. Para tudo há um lado do bem e um lado do mal…
Tudo clareou.
Em um auditório enorme muitas pessoas assistiam atentas à palestra de três caçadores de seres sobrenaturais. Eram eles: Wendy, Adam e Reich. Todos vestidos formalmente e sentados atrás de uma bancada.
– …como nós vencemos aquela batalha? Bom, nós temos nossos artifícios e nem tudo deve ser revelado. Mas, uma coisa podemos dizer: foi apenas uma batalha. Lilith se “aventurou” no comando do inferno. Mas o verdadeiro Rei pode estar de volta à qualquer momento. – disse Reich.
Wendy o olhou e sorriu.
– Bom, finalizamos por aqui. – disse ela no seu microfone. – Alguma pergunta?
De imediato, as mãos foram levantadas. Metade da plateia tinha questões para os caçadores. Adam olhou para os companheiros.
– Acho que vamos ter que ficar um pouco mais! – disse ele.
Uma hora depois
Os três caçadores se dirigiam para além do prédio onde estavam. Caminhavam pelo estacionamento quando foram surpreendidos por dois homens que assistiam à palestra sentados na última fileira.
– Com licença. – disse um deles.
Os três caçadores se olharam sentindo a aflição dos dois.
– Meu nome é Alexandre. Este é meu irmão Caíque…somos…de certa forma, caçadores também…
Caíque parecia muito apreensivo. Cabeça baixa, mãos no bolso da jaqueta de couro.
– No que podemos ajudar? – perguntou Reich.
Alexandre se aproximou dele e retirou do bolso um pequeno exemplar de um livro. Abriu em uma página já demarcada e virou a folha para Reich. Naquela página um símbolo bastante peculiar e de grande relevância. Reich se virou para Adam e Wendy.
– A marca do primogênito! Estes dois precisam da nossa ajuda.