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Cartas de Jezrael – as primeiras páginas encontradas

22 de outubro de 2021

Caro amigo Melqui

Não me resta outra coisa neste lugar a não ser escrever nas páginas amareladas deste caderno velho. Na verdade nem mesmo sei se um dia estes manuscritos chegarão até você. Mas sozinho nesse vilarejo há três dias, sem poder retornar para a estrada que me trouxe aqui, sem ao menos ver uma alma viva nestas ruas estranhas e desertas, sem ouvir o zunido dos insetos ou o canto agudo de algum pássaro, isso é tudo que restou…escrever para você, meu amigo, e torcer para que um dia isso chegue até suas mãos. Olhei no meu relógio – que ainda está funcionando – e já passam das 23 horas. Lá fora a chuva cai intensamente desde o dia em que vim parar aqui, e só tem aumentado, e hoje um vento gélido e cortante me fez recorrer aos cobertores grossos que encontrei em um roupeiro velho de um dos quartos lá do segundo andar, inclusive um deles está sobre minhas pernas me aquecendo. Ahhhh, para que você saiba, neste momento estou sentado em uma poltrona aqui no que parece ser um escritório/biblioteca. Há prateleiras que vão do chão até o teto e estão cheias de exemplares de livros raros de tudo que se possa imaginar. Pelo menos é algo que eu posso me entreter, uma vez que a leitura é uma companhia perfeita para mim.

Poucos minutos atrás eu ouvi que o vento aumentou. Está, desde então, batendo abruptadamente contra as janelas laterais e o seu zunido percorre as ruas desertas deste lugar. Você não vai acreditar em como vim parar aqui. Estávamos eu, Angel, Giulia e o nosso felino Habib viajando por estas regiões, quando nos perdemos ao pegarmos um desvio e fomos parar no meio do nada. À medida que a gente seguia, a estrada de chão se tornava cada vez mais estreita até que não podíamos mais ir adiante e muito menos voltar. O carro simplesmente “morreu”. Giulia começou chorar, Angel ficou nervosa e o gatinho pulou a janela e sumiu. Dizem que os gatos pressentem as coisas. Pois é, Habib parece ter pressentido algo. Por mais que eu, Angel ou Giulia os chamasse, ele não obedecia e seguia estrada adiante. Era como se algo estivesse o puxando…o chamando para este lugar. Eu resolvi segui-lo. Mas, quanto mais eu me distanciava do carro, de Angel e da Giulia, mais o Habib acelerava seus passos me fazendo seguir atrás dele.

Foi quando senti que o clima foi mudando, o silêncio predominando e um ar gelado, congelante, começar a tomar conta de tudo. Olhei para trás e uma neblina densa começava subir e predominar por toda a região. Fiquei no meio daquilo e não conseguia nem mesmo ver para onde Habib tinha ido. Então senti pingos de chuva caírem sobre minha pessoa. Acelerei o passo, sempre adiante, pois por mais que eu tentasse retornar, algo me puxava para a frente naquela estrada estreita.

À propósito, este lugar se chama Jezrael do Sul. Vi o nome em uma placa empoeirada quando cheguei na entrada principal. Recorri às lembranças e me lembrei que Jezrael nos remete à Bíblia Sagrada. É o nome de uma cidade citada ainda no Antigo Testamento e de grande significado para o povo católico. Mas aqui, meu amigo, este significado parece não fazer nenhum sentido. Este lugar não transmite paz, não nos causa bons pressentimentos e o fato de estar sempre chovendo e cinzento só tem me deixado cada vez mais depressivo.

De tanto andar por estas ruas próximas e vazias, essa casa que estou acabou me chamando a atenção. Casa antiga feita de pedra, de dois andares, largas janelas e cômodos assustadoramente impecáveis. Aliás, a mobília aqui é invejável. Tudo nos remete ao passado e está tudo em perfeito estado de conservação, que fica difícil acreditar que alguém morou aqui e usufruiu destes móveis, enfim, deste lugar. Posso citar três coisas que mais me intrigam neste lugar: Primeiro, essa coleção gigantesca de diferentes livros e periódicos, algo realmente surreal. Segundo, os dois lustres enormes da sala principal, de ouro e prata, algo que deve valer uma fortuna, que se fosse minha eu conseguiria fazer com que até minha quarta geração pudesse ser contemplada. E por terceiro, um intrigante cômodo no final do corredor do segundo andar, que contém quadros de pinturas muito reais, de gerações que provavelmente viveram aqui nessa casa.

O que mais me intriga, meu amigo, é que tudo aqui nesta casa parece que nunca foi tocado. Não há vestígios de que alguém realmente habitou este lugar, que dormiu em alguma destas camas, que folheou as páginas destes livros, que desfrutou de um belo banquete servido na enorme mesa de carvalho da sala de jantar ou que apenas fechou os olhos e sentiu alguma paz no jardim dos fundos. Mas…ao mesmo tempo em que tudo isso me deixa desentendido, às vezes eu sinto não estar sozinho aqui. Uma áurea estranha acompanha meus passos em muitos momentos…talvez seja algo da minha cabeça, dos tantos filmes de terror assistidos ou de tantos contos e histórias que li…ou não, pois assim como eu, você sabe que estas coisas existem, que o mal existe e pode estar em qualquer lugar.

Olhei a hora novamente e já são 23:30 horas. Sempre vou dormir perto deste horário, nunca depois da meia-noite. Na verdade este é o horário em que essa casa parece ganhar vida. Mas, como te disse, pode ser apenas coisas da minha mente que não tem sossêgo. Vou até a cozinha tomar um copo de água e depois vou subir para o quarto que escolhi, dentre tantos que têm por aqui. Acho que minha Angel e minha pequena Giulia iriam gostar daquele aposento, confortável, espaçoso, uma cama enorme que, sem sombra de dúvidas, poderia comportar nós três juntos. Ahhh, sim, e mais o Habib, que adora dormir nos nossos pés. Aliás, eu estive à procura dele por algumas ruas aqui perto durante os dois primeiros dias que me perdi por aqui, mas infelizmente não o encontrei.

Um grande abraço meu amigo. Mande lembranças aos outros elementos e, se eu sobreviver, nos próximos dias volto a escrever.

25 de outubro de 2021

Caro amigo Melqui

Já fazem três dias que escrevi a primeira vez pra você. Por aqui as coisas nada mudaram, ou melhor, até mudaram. A chuva parou e o vento deu uma trégua, porém, o frio continua de cortar. Estranho porque nesta época do ano não devia fazer tão frio assim. Mas este lugar parece que parou no tempo e eu sinto à cada dia que passa que eu faço parte disso aqui agora. Já não encontro saída, já perdi algumas esperanças. Como a chuva resolveu deixar Jezrael por uns dias eu decidi que iria dar mais uma volta pelo vilarejo, porque até então eu só conheci algumas quadras próximas, algumas casas vazias e algumas mercearias intactas que eu precisei dar um jeito de invadir para “catar” alguns suprimentos.

Hoje pela manhã, depois do meu desjejum na companhia de um estranho casal pintado em um quadro na entrada da cozinha, vesti um sobretudo de lã que encontrei em um roupeiro de um quarto do segundo andar, um gorro preto e um cachecol grosso e comprido que precisei dar duas voltas no meu pescoço, e saí pelas ruelas desertas de Jezrael. Foi bom sentir aquele ar do lado de fora, porém, enquanto me distanciava da casa e percorria as calçadas de pedras e as ruas de paralelepípedos do vilarejo, eu sentia que o ar se tornava denso e carregado. E o silêncio, meu amigo, ahhh, o silêncio era assustador. Nem mesmo eu que sou adepto de ficar sozinho,estava me sentindo à vontade com aquilo.

Dobrei a esquina e avistei quatro quadras para baixo uma igreja de pedra. Uma construção invejável, uma estrutura complexa que eu confesso nunca ter visto nada parecido pelos lugares que já passei. Acredito até que no país não tenha nada que se compare àquela igreja. Posso afirmar que estava diante de uma catedral como aquelas vistas na Europa medieval. Uma visão esplêndida, meu amigo, de encher os olhos. Olhei as horas e passavam um pouco das 10:00 horas da manhã. Ajeitei meu cachecol, puxei a gola do sobretudo, coloquei ambas as mãos no bolso e desci as quatro quadras. À cada passo mais próximo daquela catedral mais era encantadora a imagem.

Ahhh, meu amigo, você também iria achar aquela catedral esplendorosa. Quando cheguei à sua frente ela se erguia gigantesca, uma nave inimitável com suas janelas de vidraças avermelhadas que pareciam intocáveis, e uma entrada de porta dupla com entalhes de cruzes e rostos desconhecidos, além de duas grandes maçanetas douradas. Subi um lance de cinco degraus de pedras rústicas e, antes de ficar bem próximo da porta, ouvi um murmúrio que parecia estar se aproximando de mim. Virei o rosto para trás assustado e então aquele sussurro se dissipou. Fiquei fascinado com a vista do vilarejo dali de onde eu estava. Tudo tão deserto e impecável que me senti um invasor naquele lugar. Mas eu não tinha culpa, meu caro, eu parei ali em Jezrael sem querer e agora a curiosidade pelo lugar só se despertava cada vez mais forte.

Pousei minha mão em uma daquelas maçanetas douradas e tive que forçar um pouco. Um dos lados da grande porta dupla se abriu fazendo um rangido no que pareceu ser a única dobradiça ainda intacta. Senti um odor fétido assim que a luz exterior adentrou aquele lugar. Uma verdadeira catedral como eu jamais tinha visto antes…também quem pudera…o que vou lhe descrever agora é de deixar qualquer um de cabelos em pé, meu amigo.

Sempre fui fascinado pelo interior das igrejas, catedrais, mausoléus…aquele silêncio, aquele sentimento único sempre me deixava incrivelmente maravilhado, mas o que estava diante dos meus olhos me causou uma náusea estranha. Além daquele cheiro que exalava pelo ar, a penumbra me gerou um embrulho no estômago. Os bancos de madeira estavam visivelmente carcomidos pelos cupins e se encontravam todos vazios, exceto as duas primeiras fileiras próximas ao altar. Estranhei quando avistei seres sentados nestes bancos com véus sobre suas cabeças que me impediam de ver se eram homens ou mulheres que ali estavam. Desconfiei pelo fato de nenhum deles se virar ao ouvir o rangido da porta quando entrei. Em um ato de impulso eu dei um bom dia com minha voz quase não saindo, mas não obtive resposta alguma, o que me causou maior estranheza ainda. Será que aqueles seres realmente estavam ali? Será que eles me escutavam, notavam minha presença?

Minha curiosidade aguçada fez minhas pernas trocarem passos por aquele corredor sem ao menos eu perceber. Quando me dei conta já estava próximo da fileira onde já se encontravam aqueles seres. Minha voz saiu rouca em um “ei” quase que imperceptível. É claro, não obtive resposta alguma. Então, estendi minha mão trêmula até o ombro do ser que se encontrava mais próximo ao corredor. Meus dedos tocaram o gelado do tecido negro que cobria seu corpo e…os ossos daquele ou daquela se espatifaram um a um pelas lajotas quadriculadas do piso daquela catedral. O tecido deslizante também foi ao chão e, então pude perceber que eram apenas esqueletos posicionados estrategicamente nas duas primeiras fileiras de bancos daquela igreja cobertos por tecidos que cobriam até os seus crânios. Antes que pudesse verificar mais alguma coisa, algo dentro de mim dizia pra sair dali naquele momento. Eu corri em direção à porta pela qual entrei, um pouco de costas até metade do corredor, quando tropecei em meus próprios pés e me virei correndo para sair depressa daquele lugar…

Já fora da igreja coloquei minhas mãos sobre minhas coxas com o corpo arqueado tentando respirar melhor. Te digo, meu amigo, o caminho de volta foi o mais difícil, pois parecia que à todo momento algo me seguia por aquelas ruelas vazias enquanto um vento começava a soprar gelado vindo do norte. Cheguei no alto da rua e me virei. Pude ver a catedral primorosa lá embaixo. Pressenti que devia retornar àquele lugar e descobrir o que mais se escondia no seu interior, porque…caro Melqui, quer você acredite ou não, há muitos segredos escondidos nas entranhas mais profundas deste mundo. Há algo que nenhum homem pode explicar, apenas sentir. Eu vou retornar lá. Mas não hoje, não amanhã. Eu preciso me recuperar do baque que passei.

Ahhhh, olhei as horas assim que cheguei em casa. Meu relógio parou às 11:59, e está sem funcionar até agora. E olha que a lua já ganhou os céus e as estrelas emitem seu brilho lá do alto. Parece que a chuva realmente vai dar uma trégua em Jezrael do Sul. Sabe, estranho. Estava pensando agora, e…eu não ouvi o sino no alto da torre tocar as doze badaladas do meio dia como já escutei todos os outros dias que estive aqui. Isso me deixou bastante relutante. Bom, preciso comer alguma coisa agora. Eu…eu volto a escrever…eu acho.

27 de outubro de 2021

Despertei e algo me impedia de virar o rosto para o lado direito, era como se mãos segurassem minha cabeça para que eu não olhasse pra o que quer que seja que estivesse ali. Virei para o lado esquerdo e estendi o braço alcançando meu relógio que estava sobre o criado – mudo. Esfreguei os olhos e olhei as horas. Ele tinha voltado a funcionar, embora a hora marcada provavelmente estivesse errada. Pelos meus cálculos e o meu senso de temporalidade já deviam ter passado dois dias desde que escrevi pela última vez. Por certo então, já era dia 27 de outubro e a data ali em cima não está errada.

Lentamente fui virando a cabeça para o lado direito e, por Deus, meu amigo, o que eu vi me gelou a espinha e me petrificou. Diante da minha cama havia uma figura masculina, um homenzarrão gordo com uma papada que mais parecia o traseiro de um porco e a sua barriga enorme saía da camiseta branca manchada de sangue e caía por cima da calça jeans surrada e rasgada. O seu sorriso amarelado foi se intensificando na medida em que erguia o braço direito para o alto segurando uma faca de açougueiro. Achei que este seria meu fim. Apertei os olhos com muita força na esperança de que tudo não passasse de um pesadelo…

Adormeci…nem sei por mais quanto tempo, mas eu dormi. E quando acordei novamente o sol entrava pelas frestas da janela que ficou entreaberta e fazia as cortinas grossas tremularem ritmadas em uma dança agradável de se ver. A lembrança daquele homenzarrão bizarro prestes a me atacar ainda me atormentava. Levantei e olhei em volta, mas nada dava sinal de que alguém estivesse entrado naquele quarto. Caminhei até a janela e abri as cortinas deixando toda a luz entrar. Por Deus! Lá no gramado, próximo da entrada da mata estava ele. Do mesmo jeitinho que vi mais cedo, sorrindo aquele sorriso amarelado e amedrontador e erguendo aquela faca de açougueiro para o alto. Então, um bando de urubus sobrevoou baixo passando pela janela e me desviou a atenção. Quando voltei olhar para a entrada da mata ele não estava mais lá. Apenas… apenas, uma mancha vermelha no gramado esverdeado. Sim, era a faca de açougueiro caída ali.

Bom…eu vou ver o que será dos próximos dias, mas estou ficando preocupado. Este lugar tá se revelando aos poucos e o que quer que seja que habita por aqui, parece não ser algo bom. Fica…bem, meu amigo, que eu vou tentar o mesmo por aqui.

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