Lucas – um adolescente à beira de um ataque de nervos

A adolescência é um período da vida de uma pessoa onde seus pais começam a dar trabalho

 

Li alguma vez, em algum lugar, que a adolescência é como uma massa de bolo que ainda não está pronta, que gruda nos dedos, na palma da mão, na parede, em tudo, transbordando sofrimento e ansiedade num ritual cruel, e que a infância é uma espécie de sono profundo, uma dimensão diferente, e que ao sairmos dela despertamos dentro dessa meleca toda, onde ficamos grudados, lutando bravamente para nos libertar.

Nome: Lucas 

Idade: 17 anos

Status: SEM PACIÊNCIA

A pergunta que não quer calar: como alguém, em pleno uso de suas faculdades mentais, vivendo dentro do mesmo planeta e respirando o mesmo ar, pode afirmar aos quatro ventos que a melhor fase da vida é a adolescência e que as preocupações desses seres humanos que não são mais crianças, mas também não são adultos, se resumem a ir para escola, tirar boas notas e CURTIR ?

Curtir o quê, pelo amor do Criador?

Qual é a curtição em não ter dinheiro para sair, pais e professores pegando no seu pé e não poder acessar a internet, games ou televisão durante a madrugada? E a escola? Partindo da premissa de que alguns conhecimentos são necessários para desenvolverem as propriedades cognitivas do cérebro, não podemos deixar de reconhecer que uma boa parte do que se aprende é inútil. E não digo isso, tipo, jogando conversa fora, querendo desmerecer a importância de se ter uma boa formação acadêmica, mas me convençam da relevância em aprender a distinguir dinossauros. Por acaso existe a mais remota possibilidade de esbarrarmos com algum fóssil perdido dando sopa por aí? E a famigerada matemática, com aquelas fórmulas absurdas, xis e ipsilons se multiplicando como coelhos e para quê? Se o seu ideal não for se tornar um matemático, um engenheiro civil ou um economista, em que momento da vida vai utilizar matrizes quadradas e determinantes?

Estou estressado, estou revoltado e muito, muito nervoso. Minha vida está mudando (ou já mudou) de uma hora para outra. Há um mês eu tinha uma família perfeita, morando em um apartamento show de bola, amigos, uma rotina, até que meus pais concluíram que a convivência entre eles  não era mais possível e decidiram vender nosso apartamento, dividir o dinheiro e seguir com suas vidas…

E a minha vida?

Nas últimas duas semanas eu estou tendo que me despedir dos meus amigos ao mesmo tempo que venho doutrinando o meu cérebro com a ideia de que deixar para trás a minha existência na capital carioca é o melhor a ser feito, e isso tomando por base a linha de raciocínio da minha mãe, que afirma de maneira entusiástica que apesar dos aspectos negativos e das perdas proporcionadas por este momento, há um mundo inteiro de descobertas pela frente.

Oi? Um mundo inteiro?

Estamos nos mudando para um lugar de nome Laranjeiras, onde mora minha avó, porque minha mãe acha que não terá forças para continuar habitando o mesmo apartamento (e cidade) em que viveu praticamente toda a vida de casada, só que esse tal lugar fica no interior de Minas Gerais, a 189 km de Belo Horizonte, ou seja, três horas e três minutos de viagem, e isso, claro, por terra, já que não existe sequer um aeroporto construído lá em NárniaSerá que ela, a minha genitora, consegue imaginar o impacto que essa mudança terá para um garoto de dezessete anos que passou toda a sua vida em uma metrópole e de repente precisa adaptar todo o seu mundo, suas referencias e suas diretrizes para se transformar em um Jeca Tatu, um Chico Bento, dobrando as palavras, com os pés descalços e um pedaço de mato pendurado no canto da boca?Claro que fui para internet pesquisar o modus vivendi da cidadezinha da minha avó, ate porque minha mãe só me levou lá uma única vez, quando eu tinha uns cinco anos de idade, para o enterro do seu pai, e até onde consigo lembrar, saímos do cemitério antes mesmo do caixão receber a primeira pá de terra; se algum dia eu tivesse sequer ousado nutrir o desejo de tentar criar laços com qualquer parente que viveu ou ainda vive naquele lugar, naturalmente teria me sentindo desmotivado… Enfim, juro que tentei seguir adiante com a minha busca, 

mas assim que acessei a primeira imagem de Nárnia e me deparei com a via principal dividida por um canteiro extenso, tipo aqueles da primeira metade do século XX que cruzavam a Rio Branco, e, como se não bastasse, também uma carroça estacionada com um cavalo ou burro engatilhado nela, não deu, desisti e fechei o note com uma vontade absurda de fazer minha mala e sair correndo pelo mundo ou ir para Curitiba, junto com meu pai, que aceitou uma proposta de trabalho por lá, mas ainda não pode ficar comigo porque precisa se estabelecer…

Curitiba ou Laranjeiras? Ó dúvida cruel. Laranjeiras tem apenas um shopping! UM SHOPPING! Como se não bastasse estar sem os meus amigos, não terei muitas opções para me divertir. Como sobreviverei sem as minhas festas, meus rodízios de pizza? E a minha saúde? Onde vou praticar minha natação, minha musculação e o judô? Netflix? Duvido, até porque a internet por lá ainda deve ser discada. E a escola?  Minha mãe disse que já conseguiu me matricular no novo colégio. Alguém avisou para ela que estamos em abril e que as aulas já começaram e que as provas do 1º bimestre já foram aplicadas?

Que mal eu fiz ao Criador?

O bom desse lance de mudança é que não estou precisando lidar com as ameaças e chantagens da minha mãe para manter meu quarto arrumado. Não que o meu espaço seja parecido com o covil de um arquivilão de HQs, mas é que o nosso conceito de organização segue caminhos muito, muito diferentes. Que mal tem em deixar alguns livros, alguns copos, meias, tênis, minha mochila e algumas peças de roupas espalhadas pelo chão? Ou “guardadas em grupo” dentro do meu armário? Um estudo recente de uma Universidade de Minnesota afirma que as pessoas mais criativas surgem da desordem. Albert Einstein, cuja genialidade é incontestável, levantou a seguinte questão: se uma mesa desarrumada é sinal de uma mente desarrumada, o que devemos pensar de uma mesa vazia? Bem, para dona Lúcia o que Einstein disse ou deixou de dizer pouco importa, ela quer, ou melhor, exige que o meu castelo esteja sempre arrumado, e vez por outra abre gavetas, armários, vasculha bolsos de calça, mochila… Como é que de uma hora para outra nossos pais parecem não entender uma palavra do que falamos? Em que momento eles se tornaram tão chatos?

Minha melhor amiga, Gabriela, sugeriu que eu extravasasse as frustrações e fosse para a internet escrever para outros adolescentes, ou até mesmo para os pais deles, relatando as diferentes fases da experiência pela qual estou passando, entre elas a diversão, a aventura, as descobertas e os conflitos, exatamente nesta ordem. Perguntei se ela estava consumindo algum tipo de substância pesada ou ilícita ou as duas coisas ao mesmo tempo, porque, tirando a parte dos conflitos, só tenho esbarrado em devastação e desespero, mas de tanto que insistiu, acabei cedendo e mergulhei no universo das Fanfics e até mesmo em algumas histórias “originais” no Wattpad para ver no que isso podia dar e definitivamente não foi uma boa ideia.

De dez fics/histórias escritas, onze falam sobre um adolescente que vê seu mundo de pernas para o ar ao ser obrigado a se mudar para outra cidade, e como se não bastasse, uma grande parte do texto dessas histórias quase sempre comete um verdadeiro “genocídio” contra a nossa gramática. Larguei várias pelo caminho. É mais fácil tentar entender um hieróglifo do que conseguir decifrar uma frase onde 95% das palavras estão abreviadas no pior estilo internetês e isso sem falar no excesso de repetição de algumas (muitas) expressões. E a overdose de adjetivos? E os parágrafos onde se encontra de tudo e com tamanhos absurdos? E o samba do crioulo doido alternando a primeira com a terceira pessoa? E os enredos?

Essa minha geração está abusando da velha máxima do nada se cria, tudo se copia. Quantas fics/histórias com a premissa “Fulana é uma garota comum, com uma vida comum, um emprego comum, mas essa não é só mais uma fic sobre uma garota comum”, ou então, “Mas algo acontece que vai mudar a vida dela para sempre” ou “Vamos ler e ver o que acontece”, ah, sem falar que quase todos os futuros casais acabam se conhecendo no meet and greet e tornam-se perdidamente apaixonados em apenas um segundo, casam-se após três parágrafos e no capítulo seguinte estão grávidos. Também não pode faltar a mocinha deixando os materiais caírem no chão, o mocinho emergindo do nada para ajudá-la, os olhares se cruzando e um sorriso se formando nos lábios de ambos e a paixão florescendo…

E o que falar dos enredos “hot” e seus traços de “50 tonificação”, onde é lugar comum esbarrar com um mocinho e sua cueca box, porque em algum momento da trama ele ficará sem roupa e decerto estará de cueca box, e as mocinhas, claro, na sua vez sempre vão estar de calcinhas e sutiãs belos e combinados, ah, e o jovem será experiente e dominante enquanto a pobre coitada não passará de uma inexperiente e insegura, e tudo isso com muito calor, choques e erupções vulcânicas no intuito de maquiar uma história pífia.

TÉDIO!

O curioso nisso tudo é que muitos desses seres humanos que criam essas pérolas desejam carregar o título de escritores ou já se acham, daí faço outra pergunta que não quer calar: será que investem nesse campo? Existe uma piada que circula entre os editores que resume bem toda essa pretensão: se todo mundo que diz que quer ser escritor lesse o tanto que precisava para escrever, os problemas do mercado editorial brasileiro acabavam. Então, como um autor espera que as pessoas leiam e comprem seus livros se ele mesmo não fomenta o mercado pelo qual deveria se interessar? Como sabe que está sendo original se não tem base para comparação? Acontece que a melhor maneira de se familiarizar com esses aspectos tão caros à escrita é justamente ler. E ler textos bem construídos, que tenham algo a ensinar em termos de “fazer literário”.

Citando o imortal Carlos Drummond de Andrade: Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.

Para não dizer que estou sendo preconceituoso ou até mesmo parcial, também dei uma olhada nas fics/tramas/romances yaoi (sim, sou gay) e as histórias com conteúdos homossexuais, além de carregadas de clichês mal usados, são desconcertantes e fogem da realidade de uma maneira irritavelmente utópica.

Na realidade alternativa-cor-de-rosa em que a maioria dessas narrativas acontece, o casal de meninos/rapazes se pega entre amigos, nas ruas, em um jantar de família, no metrô e ninguém se incomoda. Chega a ser ofensivo. A utopia, nesses casos, soa tão inverossímil que se torna patética. E a associação (estereotipada) homem/mulher que os autores submetem seus protagonistas em relação à postura sexual? Um dos dois tem que ser o machão, que jamais derrama uma lágrima, não demonstra seus sentimentos nem sob a mais terrível das torturas e quase sempre faz a linha troglodita; o outro é super, hiper, mega emotivo, um docinho, tímido sempre e sempre, chora de se afogar nas próprias lágrimas e suspira apaixonadamente. Não seria melhor escrever uma fic heterossexual? Ainda assim, pintar uma mulher com todas essas características de donzela indefesa é duvidar da capacidade emocional feminina. E por falar nelas, fiquei surpreso com o fato das mulheres praticamente não existirem nessas histórias yaoi, e quando estão lá são para causar, assumindo o papel da vadia que vai atrapalhar o casal de garotos, verdadeiras Marias Purpurinassendo odiada eternamente por tudo e por todos: uma tipíca vilã à lá mexicana, completamente ensandecida, disposta a qualquer coisa para alcançar o seu objetivo. Ser gay não tem nada a ver em enxergar o sexo oposto com rivalidade. Chega a soar um tanto radical, preconceituoso e até mesmo sexista.

E o gostosão, pivô da disputa amorosa? O carinha simplesmente fica confortável, em cima da corda bamba, arrotando sua bissexualidade, sem de fato se decidir. Além de acomodado, é um canalha. E por falar em canalhas, meu celular está tocando e adivinha o número de quem está no visor? Meu ex. É claro que eu não vou atendê-lo. Ainda não me recuperei do chute na bunda levei. O David me dispensou há pouco mais de três semanas, praticamente quando o meu inferno astral estava começando. Ele sabia de tudo. Da separação dos meus pais, da minha mudança para Laranjeiras, do apartamento que vai ser vendido, e ainda assim, três dias depois do Armageddon ter caído sobre a minha cabeça, o patife simplesmente avisou que não ia dar para continuar, pois o que rolou entre a gente o fez ter a certeza de que preferia as meninas… Perguntei pra ele se a desculpa esfarrapada tinha que ser encarada como um elogio.

Um escroto, isso que ele foi e é. Nos quatro meses em que namoramos o David nunca mencionou que estava em dúvida em relação à sua orientação sexual, e quando ficávamos suas investidas e preferências não lembravam nem um pouco as de um macho alfa, pelo contrário…

Pronto. Desistiu. Será que o ser humano achou que eu ia largar tudo para falar com ele? O imaturo nessa história deveria ser eu. O cretino tem 21 anos e não consegue ter a hombridade de assumir que não tá mais a fim de um relacionamento? Para alguém que se descobriu hétero, ou sabe-se lá que nome dar para essa epifania de gênero, frequentar boates gays seria um dos primeiros lugares que deveria manter-se afastado, não?

Meu celular de novo. É a minha amiga Gabriela.

– Fala!

– O David acabou de me ligar – ela dá a notícia um tanto temerosa – Ele disse que quer se despedir…

– Como é que é?

– Antes de você se mudar…

– Tem certeza Gabriela?

– Eu também não acreditei quando ouvi isso, Lucas, mas ele disse, e foi firme nas palavras: não vai deixar você ir embora com esse mal entendido que ficou…

– Não vai me deixar ir embora? Mal entendido? – explodo gritando no celular ao mesmo tempo que me jogo sobre a cama, caindo de costas no colchão – Qual parte do fora que ele me deu que não ficou claro? E como ele pretende elucidar essa questão? Vamos sentar amigavelmente no Starbucks, pedir um capuccino e conversar como duas pessoas civilizadas?

– Eu sei e tentei argumentar, demovê-lo dessa ideia, mas foi como se eu estivesse falando com um pedaço de pano…

– O idiota ligou pra você agora, não é isso?

– Acabei de falar com ele…

– Ele me ligou antes e eu não atendi… – meneio a cabeça bem devagar, sem desviar os olhos do teto. A respiração da minha amiga no outro lado está tão pesada como a minha.

– Não queria que você fosse pego de surpresa Lucas.

– Se esse ser humano tentar se aproximar de mim, você anota aí Gabriela, vou virar assunto do New York Times, do O Globo, do Le Monde

– Pois eu acho que se ele te procurar, você deve se mostrar superior…

– Ainda não alcancei esse grau de elevação espiritual, e não me peça para me portar como uma mosca morta…

– Não estou pedindo isso… – ouço minha amiga inspirar, forte. Parece cansada, e com toda certeza, afinal foi ela quem segurou minha barra nos primeiros dias de bad e acho que não está preparada para uma nova temporada de “Todo mundo odeia o David” – Só quero que você mostre que está inteiro depois do fim do namoro e que ele e um pedaço de merda no chão são a mesma coisa.

Essa é uma das peculiaridades de Gabriela: conseguir enxergar um problema de forma racional, sabendo colocar os devidos pingos nos is.

– Gabriela – meu tom de voz, desta vez, apenas beira o descontrole – Ainda que Justin Bieber aparecesse na minha frente, nu, com todas aquelas tatuagens, me prometendo horrores, eu não ia permitir que o David viesse trocar meia palavra comigo. Você sabe muito bem o quão covarde ele foi. Com toda certeza deve estar com a consciência pesada e quem sabe até querendo voltar…

– Ele tá namorando…

– Oi?

Projeto o meu corpo para frente até conseguir ficar sentado sobre a cama e em seguida dou um salto, postando-me de pé. Todos esses gestos realizados na velocidade da luz.

– E quem é a pobre coitada? – não consigo esconder meu recalque disfarçado de curiosidade mórbida – Eu conheço?

– É um homem, Lucas – minha amiga hesita antes de continuar – Dizem que é um cara mais velho e não deve ter mais do que 30…

Não consigo e tampouco faço questão em conter minha indignação. Dou um berro, e desta vez bem parecido com aqueles que as pobres vítimas dos filmes de terror soltam segundos antes de serem assassinadas.

– Mas o veado disse que descobriu que gosta de meninas…

– Bom, pelo jeito ele continua em dúvida…

– Eu tô meio que sem ar, Gabriela – sinto o quarto começar a girar ao meu redor – Depois a gente se fala.

– Ok, mas o David não merece que você deixe sua autoestima embaixo do pé.

– Tá.

Desligo o celular muito puto da vida. Não tô acreditando que o David está namorando um homem… Eu sabia que ele estava mentindo. Ordinário. Filho de uma puta…

Corro para a escrivaninha e abro o meu notebook com uma veracidade e impaciência tamanhas ao passo que vou xingando todos os palavrões que conheço. É claro que irei me vingar desse frizek metido a garanhão…

Batidas na porta…

– Lucas, querido, preciso falar com você.

É minha mãe. Quem mais poderia ser? Não tô em condições de conversar com ela nesse momento, mas como sempre minha opinião não vale um real sequer; dona Lúcia já está invadindo o meu quarto. Não sei pra quê bate antes de entrar se não espera a minha resposta…

– Precisamos conversar querido.

Respondo um “tá” entre os dentes, permanecendo de frente para o meu note. Um instante de silêncio. Detesto quando isso acontece, pois tenho certeza que dona Lúcia está sentada na minha cama, parada, olhando para mim, esperando que eu me vire para que possa começar um dos seus discursos, mas dessa vez vou resistir o quanto puder. Não posso deixar passar essa oportunidade em que minha raiva alcançou o pico máximo do Monte Everest para acabar com o David nas redes sociais.

– Lucas – o chamado de dona Lúcia soa bastante ameaçador – Eu não tenho o dia todo para ficar esperando você acabar seja lá o que for nesse seu computador. Precisamos conversar agora.

Minha muralha cai tão logo meu exército decide bater em retirada e eu me viro, a contragosto, mas me viro, e faço questão de deixar isso claro em cada linha de expressão do meu semblante. Como havia previsto, dona Lúcia está sentada na cama, com as costas eretas, encarando-me com uma expressão quase inabalável dentro do jaleco de microfibra bege que comprou para usar enquanto encaixota coisas para a mudança…

Segundo uma análise computadorizada do sorriso de Mona Lisa, ele expressaria 83% de felicidade, 9% de desgosto, 6% de medo e 2% de irritação. Pois bem, se Da Vinci pintasse o rosto de minha mãe, neste momento, deixaria registrado para a posteridade 50% de pura irritação e os outros 50% de completa impaciência.

– O que a senhora quer? – deixo os meus ombros caírem – Já está tudo decidido e explicado, não? Depois de amanhã estamos indo para Nárnia

– Deixa de ser sarcástico – ela cruza as pernas no melhor estilo Miranda, em O diabo veste Prada, e pousa as mãos sobre a coxa – Houve uma pequena mudança de planos.

– Mudança de planos? – me projeto para frente da cadeira num movimento quase involuntário – Como assim mudança de planos?

– Querido, você vai para Laranjeiras antes de mim.

– Como assim?

 

 

Entrego a passagem e minha identidade para que o funcionário da empresa aérea faça a devida conferência. Com seus gestos rápidos e frívolos não demoro a receber de volta o meu documento e uma parte do ticket destacado, observando-os por alguns segundos antes de guardá-los para logo em seguida começar a percorrer o trajeto que me levará à entrada do avião.

Decido não olhar para trás. Me recuso a ver minha mãe e Gabriela acenando e se debulhando em lágrimas. Detesto despedidas, ainda mais desse tipo, no pior estilo ítalo-mexicano de ser: carregada de drama, e no caso de dona Lúcia, não quero me sentir ainda mais culpado do que já estou depois da discussão que tivemos ontem, quando eu lhe disse coisas horríveis numa última tentativa de não ser exportado para Nárnia, inclusive sobre ela estar me mandando para um lugar que evitou estar quase a vida inteira…

Continuo o meu trajeto e a cada passo que avanço me sinto como se estivesse sendo escoltado para minha execução sumária; logo um tique nervoso começa a tomar conta do meu rosto, sinto minhas veias saltarem das têmporas, minha mão esquerda tremer e a garganta ficar seca até que faço a curva no fim do corredor e visualizo as comissárias de bordo sorrindo na porta do avião.

Vou morrer antes de alcançá-las.

Agora palpitações no peito e falta de ar. Invoco o auxilio de São Luís Gonzaga, padroeiro dos adolescentes, para que não me deixe ter um ataque.

Um ansiolítico, pelo Criador.

Respiro fundo e caminho como se nada estivesse acontecendo. Preciso me controlar ou então pedir ajuda diante da minha incapacidade. Escolho. Não vou chamar a atenção e daí, coberto de orgulho, sigo para o meu destino e tão logo cumprimento as duas funcionárias impecavelmente vestidas em seus uniformes, ganho um fone para os ouvidos e algumas balinhas e uma breve troca de sorrisos para depois me dirigir ao meu assento, onde graças aos anjos ninguém está ocupado as duas cadeiras (a do corredor e a do meio) até esse momento, e se tudo der certo vai ser assim até o avião aterrissar em Belo Horizonte.

Atiro-me na poltrona junto à janela e fixo meu olhar na asa do avião, no asfalto, no diabo a quatro, mas logo sou interrompido com o anuncio da chegada de um whats… Merda. É o David. Está desejando que o avião despenque. Deve estar possesso por eu tê-lo ignorado nas suas tentativas de despedidas… Penso em responder alguma coisa, qualquer coisa, mas desisto. O ser humano não vale as impressões digitais que deixarei sobre o teclado do meu telefone.

De pronto desvio o olhar da minha janela e o estaciono sobre as duas poltronas vazias ao meu lado. Pareço hipnotizado. Preciso de alguns segundos para colocar minha mente em ordem e saber realmente o que devo fazer quando chegar lá, no Sítio do Pica-pau Amarelo, aonde minha avó, tia e uma prima sonsa vão estar me aguardando… 

Cruzo os braços e respiro fundo e começo a tamborilar os dedos nos braços da poltrona enquanto meu cérebro se revira de todas as maneiras possíveis até que retorno o olhar na direção da minha janela e logo o som de outro whats chegando invade os meus ouvidos. Apanho o telefone na certeza de que vou encontrar mais uma mensagem desagradável de David, mas me surpreendo: é de dona Lúcia… Engulo em seco antes de abri-la.

 

Já que você, meu querido menino, insiste em dizer que está indo para “Nárnia”, te deixo com uma passagem deste livro encantador: “Nem tudo está perdido como parece… sabe. Coisas extraordinárias só acontecem às pessoas extraordinárias. Vai ver é um sinal que você tem um destino extraordinário, algum destino maior do que você pode ter imaginado”.

Sou sua mãe e nunca se esqueça de que te amo mais do que qualquer coisa nesse mundo. Nos vemos daqui a dois dias. Um beijo, meu amor.

 

Ok. Sei que meus olhos estão marejados, mas não vou me permitir chorar. Não mesmo. Nossas mães têm esse poder e essa intenção, porém, aqui, agora, não vou me derreter como uma manteiga jogada na frigideira. Guardo o celular de volta. Não posso responder nada nesse momento à dona Lúcia. Quando chegar lá, em Nár… em Laranjeiras eu agradeço. Fecho os olhos e faço uma oração ao Criador e sinto uma lágrima, UMA, escorrer pelo meu rosto.

Merda.

O avião decola finalmente. Adoro a breve sensação de vertigem somada ao prazer de estar deixando o chão sem me locomover. A visão da baia de Guanabara é sempre inspiradora, chegando ou saindo da Cidade Maravilhosa…

– Relaxa, Lucas…

Recordo as palavras de minha amiga Gabriela disparadas sempre diante de um desses conflitos que só a adolescência consegue criar. 

– Essa fase da vida é muito complicada. Na verdade não sabemos o que realmente queremos… Em alguns momentos estamos felizes, mas com uma rapidez absurda ficamos tristes, porém somos assim mesmo. Vamos esquecer as preocupações e recarregar as energias!

 

É isso aí minha amiga… Estou com saudades. Precisamos nos rever.

Capítulo 01

“Li alguma vez em algum lugar que a adolescência é como uma massa de bolo que ainda não está pronta, que gruda nos dedos, na palma da mão, na parede, em tudo, e que a infância é uma espécie de sono profundo…”

 

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