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Miniaturas de Terror

Eu nunca vi um caixão, quanto mais dois. Eu sei que meu avô morreu semana passada, mas mamãe não deixou que fôssemos ao enterro. Então posso dizer que não conhecia a morte. Agora sei que ela tem cheiro de flor de jabuticaba.

As pessoas caminham pelo cemitério encurvadas. Algumas esfregam o lenço no nariz; outras apertam minha mão. Ana dorme no colo do Tio Gustavo – o filho ingrato do vovô John.  Meu primo André diz que sou um babaca por gostar dele (porque nosso tio é um policial da Civil).

Meu Avô morreu de derrame num dia chuvoso. Sua língua ficou pendurada na boca e os olhos dobrados em dois palitos. Quando contaram isso para o meu pai, tive pesadelos. Só que sou um rapaz corajoso, e viajei com minha família para o seu funeral. Não esperava me divertir naquele lugar. Sentia minha espinha gelar só de lembrar dos olhos brancos de Tia Berenice.

Não foi diferente quando desci do carro. Os empregados nos esperavam na varanda, e Tia Josephine consertava seu rabo de cavalo. Ela me beijou no rosto, raspando aquele queixo seco na minha bochecha.

_ Nosso menino cresceu. _ Dissera para meu pai. Uma ova! Continuava com os mesmos 1,32 do verão passado.

Ela pegou Ana no colo. Alguns primos brincavam de futebol nos fundos da casa; outros chupavam jabuticabas direto dos pés. Eu me mantive sisudo. Não dei bom dia para ninguém.

Assim que instalados, mamãe e papai seguiram no nosso carro para o velório. Ficamos com a prima Mary – uma solteirona que cheirava a Leite de Rosas. Eu fui brincar com André e seu coice de mula. Logo me cansei do futebol e me sentei na varanda. Os primos mais velhos caçoaram da minha falta de fôlego. Dei de ombros. Não gosto de confusão. Preferi assistir televisão no quarto. No entanto, uma criança sozinha e como faísca no palheiro. Não demorou para que  me lembrasse das “coisas especiais” do Vovô. Elas ficavam trancadas numa sala. Pensei que talvez estivesse aberta. Ele havia morrido, certo? Quem sabe tinha esquecido de trancá-la? Vovô estava com a memória fraca (graças ao tal do Alemãozinho).

Decidi entrar.  Minha nuca gelou só de pensar na Prima Mary me pegando com a mão na massa. Antes não tivesse pisado naquele chão maldito (desculpe o palavrão se você é religioso). Se hoje estou aqui, com a morte me lambendo a cara, é por causa do que peguei lá dentro. Se pelo menos à porta estivesse trancada. Não se deixa coisas perigosas ao alcance de crianças. Não mesmo.

O cheiro de flor de jabuticaba vindo do quintal me fez espirrar. Havia todo tipo de arma lá dentro. Todas trancadas em armários de vidro. Meu pai dizia se tratar de uma coleção; mamãe nunca soube explicar qual era o trabalho do vovô. Ele vivia numa cadeira de rodas, com cicatrizes de queimadura pelo corpo e o rosto marcado por pequenos furinhos. Não vou dizer que era bonito, mas também não era assustador. O Vô John tinha lá o seu charme.

Uma caixa de sapato estava fora dos armários. Ela fazia um som conhecido, de brinquedos fora da embalagem. O que tinha lá dentro me fez escancarar a boca em um o maiúsculo. Sei que não é certo pegar as coisas dos outros, mas o vovô estava morto. Se eu não o fizesse, André o faria. Levei-a para o meu quarto e enfiei-a na mochila. Depois voltei para os fundos. Eles ainda jogavam futebol. Fiquei de goleiro. Meu coração batia menos quando André era o atacante.

Quando voltamos para casa – na tarde chuvosa do outro dia – coloquei a caixa debaixo da cama. Se descobrissem o meu segredo, teria muito o que explicar. Só sei que me esqueci dela. Quando se tem 10 anos, se interessar por algo além do videogame é bem complicado.

Percebi quando Churchill – nosso gato – entrou no quarto. Ele sempre procurava um lugar escuro para dormir. Assim que ouvi seu ronronar peguei no sono também. A viagem de volta tinha sido cansativa.

Acordei com um barulho no armário. Provavelmente, Churchill mexia nos brinquedos. Não me importei. Ele era acostumado a revirar minhas coisas quando entediado.

Ele começou a arranhar o carpete, como se estivesse caçando. Os arranhões ficaram mais fortes. Puxei o cobertor sobre a cabeça para tentar abafar o som. O seu miado agudo arrepiou meus poros (impossível não escutar). Através do pano pude ver pequenos feixes de luz na parede. Churchill se arrastava pelo quarto, com miados abafados de dor. Ruídos estranhos o perseguiam, fazendo se esgueirar para debaixo da cama. Comecei a tremer, meu coração batendo no pescoço. Algo subia em mim, me amassando de leve. Não era Churchill. Não mesmo.

As coisas caminhavam como baratas sobre o cobertor. Quis gritar. Mas quando me lembrei do malfeito, engoli o medo. Se mamãe e papai descobrissem que roubei algo da coleção do vovô, seria um deus nos acuda.

Fiquei parado, respirando só um pouquinho para não morrer. Eles sumiram assim que Churchill silenciou. Tirei o cobertor da cara, puxando ar para os pulmões. Estava muito escuro. Tive medo de deixar a cama. Continuei deitado, atento a qualquer movimento no quarto. Acho que adormeci por um tempo, porque só voltei ao mundo dos vivos com o grito da minha mãe.

Churchill estava morto ao pé da minha cama.

***

Olhei para mamãe e depois para o papai. Eles me acusavam com os olhos. Comecei a chorar assim que Churchill foi levado embora. Mamãe me abraçou, disse que ficaria tudo bem, para eu não me preocupar. Engoli às lágrimas segurando-a com força. Havia pequenas marcas no nariz do gato, parecidas com as que o vovô tinha no rosto. Não contei isso para ninguém. Era muito sinistro.

Tio Gustavo veio ter comigo. Fez um monte de perguntas sem respostas. Como contar que a coisa que matou Churchill fora roubada por mim na casa do Vovô John? Viveria pelo resto da vida sem meu Videogame.

A noite fomos ao Shopping. Papai comprou um monte de coisas gostosas para mim e Ana. Assistimos um filme em 3D e voltamos para casa. Minha irmã ficou na sala, assistindo novela com mamãe. Papai foi para a cozinha. Precisava tomar o seu café preto do coador. Eu subi para o meu quarto. Havia coisas para resolver. 

Pensei em enterrar a caixa de sapato no quintal; ou quebrá-la com meu bastão de Baseball. Mas isso tinha que ser feito no sábado, quando estivesse sozinho em casa. Então fui ao escritório pegar um rolo de barbante. Amarrei-a para que ninguém lá dentro pudesse fugir. Tremia do dedão do pé ao último fio de cabelo só de pensar aqueles pezinhos frios em cima de mim de novo.

Depois de feito, joguei-a dentro do armário. Que ficasse por lá até o final de semana. Desci para a sala. Mamãe tinha estourado pipoca para Ana.

Que novela chata! Subi para o meu quarto pulando alguns degraus da escada. Sentia falta de Churchill, mas não comentei com ninguém. Engoli o choro, porque homem não chora. Uma luz iluminava o corredor. Ela vinha do meu quarto; exatamente do meu armário. Mesmo tremendo como um boneco de posto de gasolina, entrei devagarzinho para não fazer barulho. Algo remexia lá dentro, como um cardume de piranhas prestes a atacar. Peguei meu travesseiro no canto da cama (Eram só miniaturas, merda!  – Desculpe o palavrão se você é religioso). Com as mãos de Mohamed Ali, abri o armário. Lá estavam eles, olhando para mim com seus olhinhos vermelhos de fogo.

Dois helicópteros do tamanho de uma vespa avançaram sobre mim. Coloquei o travesseiro no rosto, desviando de seus voos rasantes. Soldadinhos de plástico lançaram granadas no meu pé, estourando parte do meu chinelo. Corri para a porta, trancando-a. Aquele assunto era meu. Eu os colocaria de volta na caixa.

As miniaturas de guerra pularam do armário e se reuniram em tropas. Com meu bastão de baseball acertei um dos helicópteros. Ele se estatelou na parede como um ovo, deixando uma meleca verde pelo caminho.

-Bingo! – Corri para debaixo da cama.

O outro helicóptero planou na altura dos meus olhos. Ele lançou um pequeno míssil na minha direção. Eu desviei para o lado, deixando que o minúsculo artefato atingisse meu ombro. Doeu pra caralho! (Desculpe o palavrão se você é religioso)

Eles continuaram avançando com suas escopetas. Corri para o guarda roupa – um dos meus edredons serviria como barricada. Três jipes quase me derrubaram no chão. Tinham o tamanho de um besouro.  Chutei dois de encontro à parede. Um dos soldadinhos do outro jipe apontou sua bazuca para a porta – ela tinha o tamanho de uma agulha. A explosão me jogou para o lado. Eles atravessaram o corredor como um enxame de gafanhotos.

Quando desci, vi meu pai tentando se livrar das miniaturas que cuspinham balas em Ana. Me juntei a ele jogando algumas na televisão.

_ Desculpa, pai. Eu sinto muito.

Ele pareceu não me ouvir. Continuou afastando-os com uma das almofadas do sofá. As miniaturas se agruparam com a velocidade de um beija-flor, cercando minha mãe com o jipe e o helicóptero. Subi na mesa, impedindo seu voo rasante. O Jipe lançou um míssil que atingiu uma das cadeiras.  A explosão assustou Ana, que começou a chorar.

-Leve-a para um lugar seguro, Michael! Vê se fica lá com ela.  

Corri pelas escadas com minha irmã nos braços. As balas acertaram meu pescoço como picadas de abelhas. Tranquei à porta. O barulho que vinha da sala me fez tremer como o velho boneco de posto de gasolina. Joguei as coisas do armário de aço no chão e me enfiei lá dentro com Ana. Podia ouvir os rasantes do helicóptero, as estocadas de seus mísseis, os gritos de papai e mamãe. Abracei minha irmã para que nada pudesse atingi-la. Um estrondo balançou o armário. Senti uma tontura estranha. Desmaiei com Ana escorada no peito.

***

Minha irmã tentava me acordar com suas mãozinhas babadas. Pedi silêncio para poder abrir a porta do escritório. Um cheiro de queimado vinha da sala. Mamãe e papai estavam esmagados no que havia sobrado das pilastras.

-Ô-ôu. Deu merda! (se você é religioso, desculpa aí.)

Os bombeiros chegaram alguns minutos depois. Fui para o telefone. O número do Tio Gustavo estava na agenda. Fiz a ligação. Ele me atendeu sonolento.

-Alô.

Disse que precisava dele; que papai e mamãe estavam mortos. Não demorou para que chegasse. Ele me levou para o quarto. Deitei no seu colo. Me fizeram um monte de perguntas; todas sem respostas. Disseram que o botijão de gás havia estourado por causa do café de coador do meu pai. Assenti com a cabeça, concordando com eles. Se contasse a verdade para alguém, seria um deus nos acuda.

Nunca pensei que veria dois caixões, quando mais os dos meus pais. Ou que pelo menos demoraria para ver gente sendo enfiada numa cova de sete palmos. Mas a vida é assim, nos prega peças.

Vou passar alguns dias na casa do Tio Gustavo. Perguntei para ele se poderia levar alguns dos meus brinquedos. Ele disse que sim, que levasse o que quisesse. Não tive dúvidas em quais escolher. Peguei a caixa de sapatos e enfiei-a na mochila. As miniaturas do Vovô John são radicais! Melhor do que qualquer videogame que alguém possa me dar.

 

 

Conto integrante da Antologia King – Poe – Lovecraft: do terror ao horror.

Inspirado no Conto “Campo de batalha”, de Stephen King.

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  • Nossa! Que profundo…Seu texto beirou a poesia de tão intenso. Pude vivenciar as emoções dos personagens, o que é um mérito incrível. Parabéns! Um conto extraordinário!

  • Nossa! Que profundo…Seu texto beirou a poesia de tão intenso. Pude vivenciar as emoções dos personagens, o que é um mérito incrível. Parabéns! Um conto extraordinário!

  • Amei! Esse garoto tem um alto grau de psicopatia, acredito eu. Muito legal a repetição de algumas frases, dá uma sensação de intimidade com o personagem. Conto foda! (Desculpe o palavrão se você é religiosa hahaha)

  • Amei! Esse garoto tem um alto grau de psicopatia, acredito eu. Muito legal a repetição de algumas frases, dá uma sensação de intimidade com o personagem. Conto foda! (Desculpe o palavrão se você é religiosa hahaha)

  • Texto bem escrito, personagem cativante e história envolvente. Adorei o conto, Sylvana. Parabéns! 🙂

  • Que conto incrível. Tocante. E dá pra sentir os mesmos sentimentos do personagem. Outro ponto interessante é o desenrolar da história e a escrita perfeita. Mais uma vez, parabéns!

  • Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

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