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O Acordo — Memória Sórdida

Havia terminado.

Certamente havia terminado. Era o que minha intuição dizia, embora eu não soubesse exatamente o quê.

Eu estava respirando normalmente. Sentia a vitalidade em cada célula de meu corpo. “Meu corpo”, como soava estranho saindo desses lábios. Lábios que não pareciam os meus, não os sentia como antes. Algo havia mudado em mim, sim, certamente. Mas eu não sabia o que era. Desde que depertara neste espaço sórdido, frio e caliginoso, não me lembrava das coisas direito. Minhas memórias estavam estranhas, nubladas eu diria. Faltava algo. 

Algo importante.

Com a mesma dificuldade com que me levantara, pus-me em frente à porta que quase desaparecia camuflando sua cor escura no breu do quarto. Um cheiro forte me causou náusea e recuei alguns passos, batendo de costas em uma superfície de vidro.

Um espelho.

Estava aqui antes?

Senti-me tonto e segurei a cabeça com as duas mãos. Depois, uma delas limpava o líquido escuro que escorria pelas minhas narinas. Não era sangue. Não sangue humano. Não precisava de iluminação para perceber o quanto a substância era escura. Quase negra em contraste com minha pele branca.

Outra tontura. Mais forte desta vez. Precisei apoiar a mão suja no espelho. O que estava acontecendo comigo?

Eu estava doente?

Uma dor quase insuportável atacou minha cabeça. Gritei, agoniado. O eco de minha pergunta reverberou em minha mente.

 Eu estava doente?

    Eu estava doente?

        Eu estava doente?

Cada vez mais baixo, até que parou. Como que em resposta, li “Não mais, Caled” no vidro sujo do espelho. Dessa vez era sangue ou algo de cor muito semelhante, pois a mensagem iluminava-se num tom rubro vivo. Aproximei-me para ler mais de perto e notei letras menores, as palavras mais distantes umas das outras.

Terás tuas memórias novamente assim que estiveres fora do alcance de meu poder

A dor aguda pareceu intensificar-se atrás de minha sobrancelha esquerda. Meus batimentos cardíacos tomaram um ritmo frenético. E minha respiração sôfrega quebrava o silêncio do quarto escuro. Conseguia ouvir perfeitamente o som de minha saliva descendo a garganta. E então aconteceu…

Marcas estranhas brilhavam na parede escura, tão vívidas quanto sangue. Cintilavam como neon. E por vezes, vacilavam, como se sofressem algum tipo de curto. A súplica cansada do garoto ao meu lado me despertou de meu vislumbre.

— É… assim… — Engolia a saliva com dificuldade, soltando um gemido contido. — É assim que vou… ajudá-lo, C-Caled? — Ele forçou um sorriso, mas a dor em seu rosto era evidente.

Toquei a lateral de seu cabelo, sentindo o sangue molhar a ponta de meus dedos. Ele parecia feliz, ainda que estivesse sofrendo. Seu corpo imóvel preso à cadeira enferrujada, incapaz de se defender, suava muito. E tremia às vezes em leves espasmos.

— Tudo vai ficar bem, Nan — tranquilizei. Seus olhos marejados brilhavam vermelho, reproduzindo as inscrições nas paredes. — Logo estaremos longe daqui. Sãos e salvos. Nunca deixaria nada de ruim acontecer com você, eu prometo. 

 Tudo bem… — Respirou fundo, e depois sorriu deixando uma lágrima escapar de um dos olhos tristonhos. — Confio em você. Nós… Nós nos a-amamos, certo?

— Certo. Nós realmente nos amamos, nunca esqueça isso.

       Nunca esqueça isso…

Nunca esqueça isso…

               Nunca esqueça isso…

Como antes, as palavras ecoaram em minha cabeça trazendo-me de volta ao quarto. Fora… fora uma lembrança?

Sim, certamente fora uma lembrança. Os símbolos na parede, o garoto machucado, tudo aquilo aconteceu. Aconteceu aqui! Este era o lugar. Este…

Crack!

O espelho trincou! Sangue escorria por entre as rachaduras e formava uma poça logo abaixo. Um som metálico veio de um dos cantos do lugar e depois um pesado farfalhar de pano. Um corpo tombou perto do espelho, amarrado a uma cadeira que rangeu ao riscar o chão de concreto.

Esgueirando-me dei um passo à frente, depois outro.

Parei em um sobressalto ao ter a impressão de ver a cabeça mexer.

O espelho partiu-se derramando estilhaços pelo chão.

Retomei o fôlego.

— Você est…

Engoli em seco. Estava movendo-se. Não o corpo, mas o sangue. O líquido vermelho e brilhante aproximava-se do corpo inerte. Quando pareceu ter tocado a cabeça, que estava virada para baixo, foi sugado rapidamente, um som desagradável de sucção me fazendo contrair a face. Tive tempo de ver um último filete de sangue entrar no nariz, o que me lembrou a cauda de um rato escondendo-se em uma toca, quando a cabeça ergueu-se rapidamente acompanhada de um ruído, algo como ossos quebrando.

Meu coração acelerou assim que aqueles olhos vermelhos e incisivos me encararam, cheios de ódio. A boca abriu-se ruidosamente deixando uma baba escura escorrer. Então, um dos braços avançou sobre a cabeça de uma maneira mecânica e pausada. Soltando um grito, aquela coisa gemeu:

— De… Dev… — Parecia clamar por algo. Lembrei-me do garoto da lembrança, Nan, se não me engano. Mas não era ele, porque… porque aquela coisa tinha o meu rosto.

Um fraco tilintar me fez olhar para baixo. Cacos do espelho voaram perto de meus pés e em um deles estava escrito, na mesma cor avermelhada, o seguinte:

Foje! Esta é a última etapa

E então a porta rangeu às minhas costas. Mal tive tempo de virar-me para correr e já estava no chão, sentindo o peso daquele rapaz que compartilhava a mesma aparência minha. Me contorci no chão áspero e gelado, provocando ruídos cristalinos. Eu estava em cima dos pedaços de espelho. Num átimo, peguei o primeiro caco que senti em meus dedos e cravei na têmpora dele. Sua boca rasgava-se num grito lamurioso e o corpo caía para trás, agoniante.

Levantei-me desajeitadamente e corri para fora do quarto, trancando aquele ser bizarro lá. Logo que virei a chave, a porta tremeu fortemente com um estrondo.

Ele queria sair.

Queria me matar…

Por quê?

De onde nos conhecíamos?

Por que tinha o mesmo rosto que eu?

Por que…?

Li “Nahan Salah” em uma plaquinha branca na porta. Meu sobrenome também era “Salah”. Eu… eu não entendia.

Uma nova tontura. Ainda mais forte que as anteriores. Parecia que aquele corredor girava ao meu redor, fazendo-me sentir no interior de um redemoinho. Involuntariamente comecei a sussurrar algumas palavras:

— Porque… nós nos amamos… Porque é isso… isso que quem ama faz, c-certo?

Minha cabeça latejava. Era como se minhas memórias quisessem se libertar de uma caixa propositalmente trancada. Trancada por alguém.

Ou por algo.

Senti que aconteceria de novo. E, de fato, aconteceu.

Eu estava de pé em frente a uma cama, onde um garoto repousava, o som característico de aparelhos médicos preenchendo o silêncio. Não conseguia encará-lo por muito tempo, sentia vergonha pelo que estava prestes a fazer. Cogitei a possibilidade de desistir de tudo e me entregar ao meu destino. Sentia algo preso em minha garganta. Como podia ser tão desprezível? Apertei com força a xícara que segurava em minhas mãos. Mas a voz dele se fez presente, circulando o quarto de hospital como um sussurro. Sussurro que só eu era capaz de ouvir. Meus ombros caíram. Não havia volta, como ele dissera.

— Não queres desistir agora, queres? — A voz infantil, mas nada inocente, perguntou-me.

Olhei para o espelho ao lado da janela. Minha pele estava ainda pior. Algumas ataduras estavam manchadas de um tom escuro de vermelho. Senti um arrepio ao ver que meu reflexo ria para mim. Para me provocar, começava a desenrolar algumas das faixas, deixando trechos de pele apodrecida à mostra. Não consegui conter as lágrimas que o reflexo não deixou de espelhar.

— Paaaaare! — gritei, deixando gotas do líquido da xícara respingarem no chão. Sem nenhum cuidado, coloquei-a na cadeira de ferro ao lado da cama. Queria que minhas mãos estivessem livres para se certificarem de que as ataduras ainda envolviam minha cabeça. Sim, tudo estava no lugar, o que me deixou mais calmo. Nan não acordara para meu alívio também.

Uma gargalhada veio do espelho.

— Vês por que não podes desistir? — meu reflexo disse com um esgar. Em seguida, apertava o próprio rosto, fazendo sangue e pus escorrerem por debaixo das faixas. Senti vontade de socar o espelho, mas me contive. Nan acordaria. — Se não fizeres morrerás, garoto Caled, e não queres morrer. Sei que não queres. Estou errado?

— Me… perdoe. Eu… eu… sinto muito… — Peguei a xícara novamente e a aproximei da boca de Nan, o peito subindo e descendo num sono tranquilo. Fechei os olhos com força, não conseguia ver o que eu estava fazendo com ele. — Você me disse que me amava. Acho que essa… essa é uma chance de me provar isso, não é…?

Outra gargalhada vinda do espelho.

— Tua maneira de pensar é curiosa, no mínimo. — Aquela maldita voz de menino me deixava irritado. — Amarre-o na cadeira para que possamos começar.

A risada infantil continuava. Tão intensa que achei que a garganta da minha própria imagem se rasgaria.

Fechei os olhos e respirei fundo.

Quando os abri, estava de volta no lado de fora do quarto de hospital. O nome “Nahan Salah” bem em frente aos meus olhos. O poder dele não me alcançava do lado de fora. Por isso, sentia minhas lembranças preencherem aos poucos o vazio em minha mente.

“Primeiro, dê a ele o seu sangue para beber.”

“Segundo, amarre-o firmemente para garantir que não te persiga depois do processo.”

“Terceiro, beba um pouco do sangue dele.”

Essas foram suas instruções. Ele me avisara que eu perderia parte de minhas memórias quando terminasse. E que elas só voltariam fora do círculo que desenhara no quarto, onde seu poder se alimentaria dos meus pensamentos. E esse era um dos motivos para não me demorar lá.

A última etapa: deixar o local da cerimônia. Uma vez do lado de fora, o processo não poderia ser desfeito. Gelei ao lembrar do que me aconteceria caso tivesse sido pego.

“Se ele, como tu, pegar-te, tua alma não irás nem para o céu nem para o inferno. Servirá de alimento para minha fome insaciável.”

Mas eu consegui. Sim, consegui. Não precisaria mais morrer. Não agora. Tudo graças ao amor de meu irmão gêmeo, Nahan.

Uma brisa gelada passou entre mim e a porta onde meu irmão estava. Sentir toda a minha pele eriçar me deixou, de certo modo, triste. Aquela sensação, vazia. Mas precisava ser assim. Certamente, sim.

Vi a sombra dele se aproximar e senti sua respiração em minhas costas. O “garoto” estava aqui.

Sua mão segurou a minha. E deixou nela um revólver.

Um revólver dourado.

— Sabes o que fazer.

Sim, eu sabia. Destranquei a porta e em poucos segundos ela abriu-se num estrondo. Nan estava lá dentro, os olhos vermelhos vidrados nos meus. Ou eu poderia dizer… vidrados “nos seus”?

— Dev… de… volv.. aaa! — Não sabia se estava gemendo ou chorando. Acho que os dois. Ele me encarava com um ar de acusação, como se esperasse arrependimento ou algo do tipo.

— Devolver? — Soltei uma risada mais seca do que gostaria. — Por que eu faria isso, irmão? — Tateei meu próprio peito, meu braço e por fim minha bochecha. — Esse corpo não dói. Não como o meu, que agora é seu.

A boca dele se deformou ainda mais quando soltou um urro choroso, as palavras ininteligíveis. 

— Sei que parece traição, Nan. Mas veja bem… Desde criança eu vinha sofrendo daquela doença maldita. Eu ia morrer. Você sabia que eu morreria? — Vi lágrimas descerem de seus olhos e depois se misturarem com o sangue das feridas do rosto. — Mas graças ao seu amor – seu amor, Nahan! – não precisarei mais. Acho que era para ser assim, sabe. Primeiro, a doença; depois, o demônio. Acho que estou sendo recompensado. Você sabia que recebi a ajuda de um demônio, irmãozinho? Ah, nem me pergunte o nome dele porque nem eu sei. Ele não quis me dizer.

— Eu tenho muitos nomes. A forma pela qual dirigem-se a mim não importa. Preocupo-me apenas com a minha parte do pacto. Aquela que ainda não recebi, devo lembrar-te. — O garoto em roupas antiquadas colocou-se ao meu lado, um sorriso pseudo infantil nos lábios. — Estou com muita fome.

 Ele tinha razão. Era a hora de pagar a minha parte do acordo com o demônio.

— Nan, você é inteligente, então não será difícil entender. Nada é de graça nesta vida, sabe. Em troca de ter nossos corpos trocados eu devo oferecer uma alma ao demônio.

— Duas! — corrigiu-me o menino com escárnio.

— O quê?! Não…! Não foi o que combinamos… Você disse…

— Sei muito bem o que eu disse, garoto Caled. Mas não percebeu por que teu irmão não atacou-te ainda?

Era verdade. Nan podia ter me sobrepujado há vários minutos atrás e eu perderia tudo, mas não o fez. Olhei para ele com mais atenção e vi que seu corpo estava preso ao chão por uma enorme cruz invertida que o atravessava as costas. O objeto era negro e se camuflava com o interior caliginoso do quarto.

— Depois de tudo que fizeras, achei que não poderia deixar-te perder tudo – por um pequeno preço, é claro. — Suas feições infantis não conseguiam esconder sua expressão demoníaca, que parecia zombar de mim. — De qualquer maneira, tu morrerias e me alimentarias. Tua alma seria minha de qualquer modo.

— Salvou-me por que então?! — bradei. — Morrerei de qualquer jeito! Está jogando sujo, seu…!

— Calma. Não precisas pagar-me tudo agora. Façamos o seguinte: me alimento da alma de teu irmão agora. E quando tu morreres, só quando morreres, me alimento da tua.

Esse demônio maldito estava jogando sujo. Como eu queria atirar nele, mas sabia muito bem que era estupidez tentar matá-lo com um objeto que ele mesmo me entregara. Sabe-se lá o que aconteceria, então me contentei em apenas assentir à proposta. Melhor depois do que agora. Talvez conseguisse pensar em um modo de dar a volta por cima.

— Então faz as honras, garoto Caled. — Estendeu a mão pequenina para Nan deformado, como um palhaço fizera para uma aberração que meu irmão e eu vimos em um circo uma vez. — O que estás esperando? — Arqueou a sobrancelha ao perceber minha hesitação. — Não me…

Calei-o com um tiro.

O tiro que disparei contra a testa de Nan.

Sua face chocou-se pesadamente com o concreto e sangue formou uma poça em volta da cabeça explodida.

O garoto começou a rir escandalosamente. Riu tanto que, desta vez, sua garganta rasgou-se. Uma enorme boca circular e repleta de dentes afiados terminou de partir seu rosto. Logo estava de joelho ao lado de Nan, os dentes arrancando e mastigando sua carne. Também percebi uma névoa alva deixar o corpo de meu irmão e ser sugada por aquela boca asquerosa. Era a alma de Nan?

Assim que ele faria comigo quando chegasse a minha hora?

Senti vontade de vomitar, mas felizmente não passou de vontade. Soltei a arma no chão e abandonei os dois que, junto do cenário sombrio, evaporavam. No lugar, paredes brancas e limpas apareciam; ao fundo, conversas paralelas entre médicos, pacientes e enfermeiras; nenhum vestígio do sacrifício de meu irmão. Antes de deixar o prédio, virei-me buscando a janela onde fizera o ritual. Sorri quando a encontrei.

— Você provou-me seu amor, irmão.

 

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  • Parabéns! Que conto angustiante, bom de se ler. Escrita exemplar. Desfecho perfeito! Grande abraço!

    • Primeiramente, obrigadão pela leitura, Marcos! E em segundo lugar, fico feliz que o conto tenha conseguido despertar algo em ti, mesmo que seja angústia. Rs
      Agradeço pelo feedback, amigo. Abraço!

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