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O poncho que me abriga

Recortes do Diário de Mariana Neves

18 de Julho de 1840

A guerra estava longe de ter um fim. Os homens partiam e nós mulheres ainda sentíamos a mesma angústia, o mesmo aperto no peito de como se fosse a primeira vez. Lembro-me bem daquele amanhecer chuvoso. Gaudêncio Sete Luas preparou o chimarrão do meu tio, vestiu o poncho de lã encarnado e saiu debaixo daquele aguaceiro para encilhar os cavalos no galpão. Deixou a cuia e a chaleira sobre o parapeito da varanda, onde eu fui a primeira a chegar. Fiquei sentada, enrolada no xale que a tia Catarina fez pra mim, observando os pingos da chuva caírem sobre o gramado da frente e ouvindo o canto tímido dos pássaros nos topos das árvores.

Ouvi passos que se aproximavam da varanda, virei o rosto e vi meu tio Antônio Neves, com seu ar imponente de general, parado e sorrindo pra mim. Já estava galante no seu traje e ostentando suas medalhas penduradas na farda do exército farroupilha.

“Vosmecê já está de pé, minha sobrinha?”, Me perguntou ele já enchendo a cuia para o seu primeiro mate matinal.

Sorri e me levantei indo se aconchegar nos braços do meu tio. Ele se tornara um pai para mim, para meu irmão Caetano e para minha irmã Lorena desde que esta maldita revolução levou nosso paternal já no primeiro ano. Senti seu acalanto por alguns segundos e depois levantei o olhar encarando seus olhos sorridentes.

“Vosmecês estão partindo para dar um importante passo nesta guerra, meu tio. O cerco à Porto Alegre pode ser o ponto de partida para isso tudo acabar.”, comentei.

O general Antônio apenas encarou o aguaceiro e o negro Gaudêncio Sete Luas que preparava os cavalos no galpão mais adiante.

“Mas também é um cerco traiçoeiro. Os imperiais invadiram Porto Alegre, montaram acampamento por todos os cantos da República Rio-grandense e nossos exércitos já parecem não ter mais força o suficiente para enfrentar estes malditos”., respondeu-me ele em um tom preocupado e irritado.

Não demorou muito para que a frente da casa da Estância Santa Helena ficasse cheia de homens e seus cavalos. Alguns fardados como meu tio, homens importantes do exército farroupilha. E outros, usando trajes maltrapilhos honrando o nome daquela maldita guerra que já durava cinco anos. Gaudêncio Sete Luas voltou para a varanda e ficou ao nosso lado. Era um negro de quase sessenta anos de idade, barba rala e branca e alguns fiapos de cabelo branco na nuca. Um homem de confiança do meu tio Antônio. Alguém que nós, mulheres da família, podíamos confiar de olhos fechados enquanto nossos pais, irmãos e maridos lutavam pela nossa causa.

Foi neste mesmo instante em que a varanda recebeu as outras mulheres dos Neves: minha tia Catarina, elegante em um vestido branco e xale escuro de lã, minha mãe Maria Teresa e o seu luto eterno usando um longo vestido preto e com sua expressão sempre fechada, minha irmã Lorena, espevitada sorrindo e procurando a sua paixão em meio aos homens dispostos no gramado e Donana, a matriarca dos Neves e minha avó paterna com sua dificuldade para andar e enxergar.

Era lindo e inspirador ver o amor, a paixão, a cumplicidade e a ternura que meu tio Antônio e minha tia Catarina expressavam um com o outro. Ela sorriu e o abraçou com tanto carinho e desejo que poderia causar inveja em qualquer um. Minha mãe, fria como sempre, esnobou a cena e desceu o lance de cinco degraus não se importando com a chuva e se aproximando do meu irmão Caetano que, pela terceira vez, se juntaria ao exército farroupilha para ir à linha de frente no combate. Após a trágica morte do meu pai em combate ela sempre desejou que Caetano nunca precisasse seguir este caminho. Mas para os homens maiores de idade era tudo que restara nestes anos difíceis.

Meu coração disparou parecendo que ia sair do meu peito. Aconteceu quando Leôncio apareceu em frente à varanda. Leôncio era um índio garboso e imponente, cabelos negros e compridos e olhos verdes brilhantes, uma beleza única em meio ao rubro sangue derramado nos campos riograndenses. Todos já sabiam que estávamos de caso, ele tinha vindo ao baile da última semana na grande casa e pediu minha mão para meu tio. Minha mãe não aceitava este meu destino, mas eu fui talhada para ser de um único homem, e serei dele eternamente. Mesmo que a guerra ou a ironia do destino leve ele para longe de mim, eu permanecerei esperando-o até quando for necessário, até a eternidade.

Ele apeou do seu tordilho e subiu os degraus vindo até mim. Tirou o chapéu da cabeça em sinal de respeito ao meu tio e seu general que ali se encontrava e também a nós mulheres.

“À vontade, soldado”, disse meu tio Antônio para ele e dando total atenção para sua esposa.

Leôncio parou a minha frente com as mãos fortes sobre meus ombros e encarando meus olhos. Sorriu e deu-me um beijo na testa. Um beijo de respeito, com toda ternura e paixão que aflorava em nossos corações. Retirou seu poncho e o vestiu em mim. Suspirei e fechei meus olhos tentando absorver o máximo daquele momento.

“Cuide dele, minha prenda. E reze para Santa Tereza todas as noites para que possamos voltar o quanto antes para a Estância”.

Eu prometi rezar. E assim fiz por todas as noites que se sucederam. Naquela manhã vi meu Leôncio, meu tio Antônio e meu irmão Caetano partirem com todos os outros homens para uma importante batalha. O cerco à Porto Alegre seria ponto crucial nesta guerra e também foram os dias mais demorados para nós na Estância. Dias que pareciam não querer passar. Todas as manhãs, depois do desjejum eu via minha mãe chorar diante do túmulo do meu pai. Aquilo era algo que partia meu coração. Era um luto interminável e, por mais que já fizesse quatro anos que o perdemos para esta maldita guerra, para minha mãe parecia ter sido ontem. Não posso dizer que superei, mas aprendi a conviver com esta dor. A gente aprende, a vida ensina. Pelo menos até agora.

24 de Julho de 1840

A chuva deu uma trégua pelas bandas da região sul do Rio Grande. Um sol tímido apareceu no céu nesta manhã, mas o vento ainda estava de cortar. Levantei cedo como de costume e, quando cheguei na varanda, Gaudêncio Sete Luas já estava com o mate pronto. Me serviu uma cuia e sorriu sentando em uma velha cadeira de palha no canto.

“O tempo não passa, não é menina?”, perguntou-me.

“Chico Carreta não passou pela Estância com alguma notícia do cerco à Porto Alegre?” perguntei para Gaudêncio.

“Acredito que antes do sol se pôr ele passe por estas bandas com alguma notícia”.

Chico Carreta era um mascate que andava pelo Rio Grande trazendo e levando mercadorias de um lado pro outro. Se dava bem com os imperiais, assim como era muy estimado por todos do exército farroupilha. E ele, mais do que ninguém, era quem poderia trazer alguma informação sobre a batalha de Porto Alegre.

Nesta tarde pedi para Gaudêncio encilhar um dos mouros e parti campo afora em direção à lagoa. Levei junto à anca e a paleta o poncho armado do meu Leôncio. Apeei quando me aproximava da lagoa e deixei o mouro pastando o pasto verde daquelas colinas. Vesti o poncho me protegendo do vento forte que soprava e sentei-me diante das águas claras da lagoa da Estância. Fiquei ali concentrada naquele silêncio e absorvi cada segundo daquele momento.

Aquele poncho que me cobria fazia falta para meu Leôncio. Por onde será que ele andava neste mundo de frio? Beijei-o e fechei os olhos tentando descobrir onde ele se encontrava. Pelo cheiro das pitangas ele poderia estar em alguma ponta de restinga. Ou talvez estivesse em alguma canhada florida, devido ao aroma das manhãs. O certo é que nestas fragrâncias sentidas, entre poeira e picumã, ainda agarrado na lã, estava o perfume das nossas vidas. Aquele poncho que me abrigava trazia aromas de banhado, de macela e de alecrim. Cheirava a mel de camoatim e a melão de cercado. Aromas doces e suaves que me faziam questionar onde andaria meu Leôncio. E tudo que eu tinha certeza era que por onde cruzaste meu amado, aquele poncho falaria pra mim.

Já chegava o anoitecer quando me dei por mim. O mouro começou encarar as coxilhas desertas e relinchava inquieto. Um vento minuano soprou mais forte que o habitual e folhas amareladas de alguma árvore vieram pousar diante dos meus pés. Senti um arrepio percorrer todo meu corpo como nunca havia sentido e enrolei-me no poncho do meu Leôncio. Parece que naquele instante o cheiro do nosso amor impregnado na lã se tornou mais evidente e, quando dei por conta, lágrimas já brotavam em meus olhos. Encarei o horizonte e vi nuvens carregadas rodeando toda a coxilha. Lá adiante o gado enfileirado começava se aconchegar debaixo de algumas árvores, provavelmente prevendo nos seus instintos que a tormenta se aproximava. Ahhh, a tormenta, onde andas meu amado? Será que onde cavalga e batalha o tempo também escurece? Nestes momentos sem poncho ninguém aguenta no fundo das invernadas.

Os primeiros pingos caíam quando cheguei cavalgando na Estância. Gaudêncio Sete Luas veio ao meu encontro pegando as rédeas para levar o mouro para o galpão e me preveniu da preocupação das outras mulheres com o meu sumiço à tarde toda. Entrei no casarão e minha mãe, minha tia, minha irmã e nossas criadas Josefa e Matilde aguardavam aflitas na grande sala.

“Onde vosmecê esteve a tarde toda, minha filha?”, perguntou minha mãe com seu ar autoritário.

“Calma”, respondi tentando manter a serenidade. “Me perdi no horário na lagoa e só me dei por conta quando a chuva começou.”

Então reparei nos olhares de todas e notei que estavam mais aflitas e preocupadas do que o normal. Tudo aquilo não poderia ser somente por causa do meu atraso para voltar.

“Não encontrou com Chico Carreta pelo caminho, não?”, perguntou minha irmã.

“Não. Eu vim pelo mato pra chegar mais ligeiro. O Chico esteve aqui? Trouxe notícias de Porto Alegre?”

Todas se olharam. Notei um ar de preocupação naquela troca de olhares. Chico Carreta trouxera sim, notícias do cerco à Porto Alegre. O exército farroupilha sofrera um grande massacre e estava há um dia de chegar de volta à Estância. Ao certo não se sabia quantas baixas, quantos homens feridos, mortos. Chico não soubera dizer se os homens da família estavam vivos. Senti então, um aperto no peito e tive que ser amparada por Josefa. Será que meu Leôncio estava vivo? Apertei forte o poncho dele entre meus dedos ao mesmo tempo que um trovão cortou o céu e a chuva tornou-se mais forte. Aquilo não era um bom sinal.

26 de julho de 1840

O exército do meu tio Antônio Neves sofreu naquele caminho de volta. Trazendo seus feridos sobre os cavalos e os mortos sobre carretas improvisadas, levaram mais do que o tempo habitual para retornar. A chuva insistia em cair naqueles pampas e o frio estava de renguear. Com lanças e espadas nas mãos, lenços atados à meia espalda, alguns homens com vichas ensanguentadas nas melenas esgadelhadas, a tropa de soldados farroupilhas cruzou as coxilhas temendo não conseguir chegar, mas ainda com a esperança de ver o sol brilhar naqueles campos mais uma vez.

Estávamos tomadas por nossos afazeres na grande casa quando ouvimos o sino na torre da capela tocar. Era Gaudêncio Sete Luas anunciando a chegada do exército farroupilha. Passava das dez horas de uma manhã fria onde o minuano gelado insistia em soprar. Corremos aflitas para a varanda e, lá longe, avistamos a tropa chegando à passos lentos. Maltrapilhos, ensanguentados, por certo com fome e com sede, nossos homens estavam de volta à Estância. Não como desejavam retornar e, muito menos, como gostaríamos de os receber.

Tio Antônio, com a farda oficial toda estraçalhada e o braço direito enfaixado, apeou do seu cavalo e caminhou com dificuldade para a varanda. Minha tia suspirou e desceu as escadas indo ao seu encontro. Lhe abraçou com ternura, sem palavras, apenas sentimento. Gaudêncio Sete Luas tratou logo de reunir os outros peões da Estância para que ajudassem na chegada do exército e não demorou muito para que o gramado da frente ficasse tomado pelos soldados republicanos do meu tio Antônio. homens que estampavam em seus rostos o horror de uma batalha e lamentavam a morte dos seus.

Mais ao fundo, o meu irmão Caetano, com o traje todo esfarrapado, conduzia uma carreta puxada por dois gateados. Logo notamos que estirado na carreta e coberto por pelegos, jazia o corpo de alguém importante. Meu coração gelou neste momento. Apertei o poncho sobre minhas costas e nem reparei nas lágrimas que escorreram pelo meu rosto. Meu irmão desceu com dificuldade e não conseguia encarar meu olhar. Senti o que não gostaria de ter sentido, vi parte do braço caído sob os pelegos e reconheci. Era o meu Leôncio.

“Nãaaaaaaaaaao!” , desci gritando e correndo as escadas não me importando com mais nada.

Caetano me segurou e eu lhe dei alguns tapas descontrolada. Ele me segurou forte e me abraçou enquanto eu chorava em seu ombro. Desde então, eu não lembro de mais nada.

Recorte do Diário de Lorena Neves

03 de agosto de 1840

Maldita guerra. Malditos imperiais. Levaram meu pai e fizeram com que minha irmã enlouquecesse. Aqui na Estância nos últimos dias tudo parece mais calmo. Também, depois de tudo que passamos com a volta do exército farroupilha do cerco à Porto Alegre. O tio Antônio recebeu anteontem em nossa casa o famoso Bento Gonçalves. Ficaram horas conversando na biblioteca. Tem que haver uma maneira de sairmos vitoriosos nesta guerra. Deus há de querer que o Rio Grande possa lutar por seus direitos e nosso povo ser livre em suas escolhas.

Há cinco dias atrás meu irmão Caetano levou nossa irmã para o convento na cidade de Rio Grande. Ela já não tinha condições de ficar conosco depois da morte do seu Leôncio. Já não falava coisa com coisa, só queria ficar agarrada ao poncho dele e olhando a coxilha à sua espera. Ela não aceitou sua morte, seu destino. No enterro do bravo índio ela até brigou e culpou nosso tio Antônio pela morte dele.

Faz duas horas que chegamos de Rio Grande. Gaudêncio Sete Luas levou eu e minha mãe para visitar Mariana no convento. Foi muito triste ver ela daquele jeito, sem dar atenção pra nós, sem querer se cuidar, sem ter intenção de voltar aqui para a Estância.

Quando a madre abriu a porta do quarto que Mariana estava eu só pude sentir tristeza no ar. Ficamos algumas horas com ela, mas era como se não estivéssemos ali. Mariana sequer olhou pra nós, tudo que ela fazia era ficar olhando pela grande janela as campinas adiante e repetir a frase: “vem meu amor, vem buscar teu poncho”.

Saímos de lá aos prantos e as palavras de Mariana mirando as coxilhas vão ficar para sempre guardadas na minha memória. Sentada em uma velha cadeira de balanço com o poncho do seu Leôncio sobre suas pernas, ela olhava fixo para fora.

“Volta essa madrugada meu amor. Vem buscar o teu calor. Eu te espero…você vai levar bem mais que uma flor na baeta perfumada. Nestes fios da lã entranhada, vai junto o cheiro do nosso amor.”

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  • Belo conto, Marcos! Ele apresenta uma reflexão sútil de como as pessoas reagem diante a sentimentos fortes e intensos. A dor de ser perder alguém que se ama mais que tudo na vida, pode ser um peso e tanto a se carregar sozinho. Parabéns, meu companheiro! Um conto regionalista e poético para encerrar o ano!

  • Belo conto, Marcos! Ele apresenta uma reflexão sútil de como as pessoas reagem diante a sentimentos fortes e intensos. A dor de ser perder alguém que se ama mais que tudo na vida, pode ser um peso e tanto a se carregar sozinho. Parabéns, meu companheiro! Um conto regionalista e poético para encerrar o ano!

  • Obrigado pelo comentário, meu amigo. Que bom que gostou e sentiu a verdadeira essência da história!

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