1a. Ed. – Goiânia / Goiás

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***

Não sei como vim parar dentro deste taxi. Só me lembro da cara do assassino quando me deu o tiro. O homem me acertou no peito. A dor que senti foi insuportável. Minha mãe veio correndo do quarto, tropeçando nos tapetes do corredor e batendo os braços nas paredes ao lado. Entorpecida pelo estrondo da arma, apertou meu tórax na tentativa inútil de estancar o sangue.

“Chamem uma ambulância!  Chamem uma ambulância!”

Ela ainda consegue discernir; pensei enquanto morria.

“Rápido, por favor …” , sussurrei para o vigia do sanatório.

Pelo visto a ambulância demorou mesmo para chegar, porque estou dentro de um táxi retrô com um esqueleto como motorista. Ele me olha com seu globo ocular furado, um sorriso perfeito e quepe de taxista. Se não fosse assombroso, diria se tratar de um personagem de George Romero.

Por incrível que pareça não estou com medo. Deveria, já que me encontro dentro de um livro de Stephen King. Talvez quando tocar o chão, algo saia da bruma e me engula pelos pés como em O Nevoeiro. Apesar de morto, não deixo que o mau humor me congele, tento manter um pouco da minha humanidade (ou daquilo que me trouxe para cá).

O esqueleto me olha pelo retrovisor. Não sei se está rindo ou chorando. A cara dele é sempre a mesma. As mãos no volante são longas com falanges de dar medo. Aquilo não fora humano. Ninguém têm mãos daquele tamanho, nem mesmo os jogadores de basquete.

“Aonde estamos indo?”

Perguntas são desnecessárias, argumentou a caveira.

Todo mundo sabe o que acontece quando morremos: ou se vai para o Céu; ou para o Inferno. Tudo vai depender das sementes que plantou pelo caminho, como dizia meu pai. O único problema de morrer é que você perde um pouco da memória, um tipo de Alzheimer celestial, entende? Não consigo me lembrar do que fiz para dividir um taxi com uma caveira e muito menos os motivos que me levaram a fazer o que fiz. Ufa! Que confusão. Só sei que estou definitivamente morto.

Não sinto o taxi trepidar. Se aqui é mesmo o Inferno, o Diabo tem investido na infraestrutura das coisas. O chão é uma mesa de bilhar e os táxis me lembram os de Londres. Talvez não seja tão ruim passar uma temporada por aqui. Pelo menos não vou ter problemas com o trânsito.

O esqueleto desligou o motor. Ele não me deixou descer. Apenas abriu o porta-malas e puxou uma mochila com suas mãos monstruosas. Fiquei olhando pela janela, procurando por conhecidos. Havia outros táxis no estacionamento, com motoristas-esqueletos tão grotescos como o meu. As mochilas que puxavam dos carros tinham tamanhos variados, mas a mesma cor e estrutura. A minha era uma das maiores; tão grande que emborcou a coluna do meu saquinho de ossos. Ele finalmente abriu a porta e me puxou pela camisa. Via-se o furo no meu peito. O ossudo me entregou a mochila.

“O que é isso?” Perguntei enquanto a colocava nas costas.

“O peso dos seus pecados.”

A voz da besta ecoou pela penumbra. Todos olharam para mim, com medo de encarar o tamanho de suas mochilas. Assenti com a cabeça seguindo-o pelo estacionamento.

Meu Deus! Isso é pesado. Que malditos pecados são esses?

Segui o esqueleto até uma porta de vidro. Ela se abriu assim que me aproximei com a mochila. O que vi me deixou com o queixo escancarado em um o maiúsculo. Havia todos os tipos de etnias naquele aeroporto. Gente correndo de um lado para o outro, esbarrando nas coisas, arrastando seus pecados. Vi algumas mochilas maiores que a minha. Suspirei profundo. Não estaria sozinho naquele voo.

O Esqueleto me entregou uma passagem. Nela o número 2109. Acenei para ele assim que o vi saindo pela porta. O saco de ossos não se preocupou em se despedir, continuou sacudindo aquele esqueleto rumo ao táxi. Rezei para que o Diabo não me colocasse como motorista. Não gostaria de passar minha eternidade carregando almas penadas.

No papel pardo havia o meu nome e o número do voo. Procurei pela plataforma indicada nas placas de aviso. Encontrei-a no final de um corredor escuro e silencioso. Se eu fosse o único passageiro borraria nas calças. Não estava preparado para ser o maior pecador do mundo.

Mesmo com o peso da mochila me acusando das coisas que fiz, mantive a esperança de não ser o único. E graça a Deus não era. Havia tanta gente na fila que me senti decepcionado. Por um tempo acreditei ser importante aos olhos do Inferno, mas creio que me enganei. As mochilas se mostraram diminutas perto das malas de alguns passageiros. Eles não conseguiam carregá-las, apenas arrastavam seus fardos pelo salão sem auxílio das rodinhas. O que tinha dentro delas? Não me atrevi a perguntar. Se na minha tinha uns pecadinhos, imagina as deles?

Continuei me enfiando pelos muxoxos dos mortos sempre de olho nos esqueletos que organizavam as filas. O peso que sentia nas costas me queimava a nuca. Nunca pensei que sentiria dor depois de morto. Mas sinto. Tudo veio de uma vez me acusando de coisas que não lembro. Talvez o voo me faça recordar. Talvez se eu me arrepender do que fiz vou poder pegar um paraquedas e pular do avião. Duvido.

Um homem de estatura mediana carregava uma mala maior que ele. Fiquei atrás, olhando para aquilo que parecia ser os seus pecados. Ele me viu observando e ficou louco para começar uma prosa.

“Você tentou abrir sua mochila?” Perguntou assim que o esqueleto se afastou da fila.

“Não.”

“Por quê?”

“Tenho medo.”

O homem mediano suspirou.

“Aposto que não teve medo de pecar.”

“Nem você” fiquei irritado com ele. “Olha só o tamanho da sua mala.”

“O que acha que tem aqui dentro?”

“Seus pecados.”

“Foi o que me disseram. Mas não creio que pular a cerca seja um pecado tão grave assim.”

“Foi isso que viu na mala? Suas amantes?”

“Não. Pedaços dos seus corpos. Eu os escondi bem, mas nada passa despercebido aos olhos do Demônio.”

Minha boca ficou do tamanho do mundo. Havia cadáveres naquela mala? Meu Deus! O que tinha dentro da minha? Comecei a senti-la mais pesada, me apertando as juntas dos ombros. Um suor frio escorreu da minha testa e orelhas. A fila finalmente começou a andar e os esqueletos ficaram agitados. Um avião enorme cortou a penumbra e pousou na pista. Não havia nada de diferente nele. Parecia um A380 da Boeing. Fiquei aliviado. Pelo menos sentaria em algum lugar, deixando por um tempo o peso dessa mochila.

 

***

Um esqueleto cumprido como um varapau me recebeu com uma lista de nomes nas mãos. Checou a passagem e o número da minha mochila. Depois outro esqueleto anão grudou na minha roupa o número 17. Procurei pela poltrona indicada preocupado com quem sentaria ao meu lado. Veio uma mulher idosa com seu sorriso de cigarro e voz rouca.

“Tá quente, né?” Quis ser educado.

“O que você esperava? Neve?  Estamos indo para o inferno. Dizem que a temperatura por lá é bem alta.”

Dei graças a Deus por ela não esticar a prosa. Seu mau humor me manteve afastado.

“Só não entendo por que estamos dentro de um avião. O senhor tem medo dessas geringonças?” Perguntou segurando sua mala

“Eu as evitava quando vivo. Mas creio que depois de morto não tenho alternativa.”

“Eu sabia!” Ela sapateou como uma mocinha de 18 anos. Um dos esqueletos mandou que ficássemos quietos. “Acredito que todos aqui dentro tenham medo de avião.” Sussurrou no meu ouvido. Ainda bem que mortos não tem mau hálito. Caso contrário, estaria encrencado aqui. “Uma pegadinha do Demônio, certo?”

“Tem toda a razão, senhora. A ovelha negra de Deus tem senso de humor.”

As portas do avião foram fechadas. Não houve aquelas instruções sobre segurança de voo. Estávamos mortos. Morrer duas vezes não fazia sentido. A decolagem foi tranquila e não se via nada pela janela além da escuridão.

“Será que vamos ter serviço de bordo?” Perguntou um homem gordo em outra poltrona.

“Sente fome mesmo morto?” Perguntei.

“Não. Mas algo me diz para comer. Não sente vontade de repetir alguns excessos da vida? Alguma coisa que te deixava ligado?”

Pensei antes de responder.

“Sinto vontade de estrangular minha mãe.”

“Então, viu?” O homem arregalou os olhos quando decodificou minha resposta. “Você matou a sua mãe? Por isso está aqui?”

“Claro que não. Eu nunca toquei nela.”

A velha do meu lado também sorriu.

“Melhor assim. O Demônio não é simpático com assassinos de mães.” O homem lambia os lábios.

“Como sabe? Já esteve no Inferno?”

“Essa é minha quinta vez. Eu não tomo jeito. Sou um desastrado.”

Os esqueletos balançaram quando atravessamos uma turbulência. O aviso para colocar o cinto foi ligado.

“Como é o Inferno?”

“Não sei. Eu nunca atravessei a porta”

“Mas essa não é sua quinta vez?”

O homem apenas piscou para mim.

Os esqueletos avisaram sobre o pouso. Ficamos apreensivos. O avião desceu tranquilo às margens de um mar de lava.  Minutos depois descemos por um túnel até o subterrâneo. Parecia uma alfândega para turistas ou algo parecido. Passamos pela revista e fomos levados para um emaranhado de salinhas. Fiquei naquela de número 17, a mesma da minha mochila.

Assim que entrei a porta foi fechada. Havia uma mesa e uma cadeira. Um abajur vermelho iluminava o ambiente. Na parede dos fundos uma outra porta, bem maior do que aquela por onde entrei. Um ser com pés de bode e chifres de búfalo entrou com uma papelada nas mãos. Tinha óculos e cara carrancuda. Parecia cansado, enfastiado.

“Muito bem, Senhor Muller” ele leu alguma coisa na prancheta. “Vamos falar sobre os seus pecados”.

***

 

O Demônio olhou para mim como se me conhecesse. Depois sentou na cadeira a minha frente, colocando a papelada em cima da mesa. Ele acendeu o abajur virando-o para minha cara. Uma luz vermelha iluminou o ambiente. Senti um cheiro forte de enxofre, da época em que era criança, de quando mamãe untava minha cabeça com um emplastro feito daquilo para matar os piolhos.

“Coloque sua mochila em cima da mesa, Senhor Muller.”

Puxei-a com dificuldade do chão. Quando a coloquei sobre a mesa senti que algo balançava lá dentro.

“O Senhor a abriu?”

“Claro que não” franzi a testa. “De que me adiantaria ver o que tem aí dentro?”

“Em nada. Nada que fizer mudará o seu destino.”

A voz da besta era calma, como de um atendente de telemarketing. Ele remexia os papéis com os óculos no meio do nariz. Vez ou outra olhava para mim, como se buscasse algo na memória.

“Me confirme alguns dados, por favor.” Eu assenti com a cabeça. “O senhor se chama Richard Muller, certo?” Fiz que sim com os olhos. “É filho de Anabela Muller e Wagner Muller.” Dessa vez não esperou pela resposta. “É casado com Rachel Ward” Ele largou a papelada sobre a mesa. “E não tem filhos.”

“Não sou mais casado com Rachel, se é que me entende.”

“O que Deus uniu o homem não separa. Lembra-se disso?”

Não sei por que gargalhei. Só sei que o fiz na frente do Demônio. Ele não gostou nada de me ver sorrindo e a luz do abajur ficou mais quente.

“Não penses que podes desfazer de Deus estando no Inferno, Senhor Muller. Mantenha o respeito, se é que me entende.”

Engoli o riso e me encolhi na cadeira.

“Abra a mochila, por favor.”

            Fiz o que me pediu. Minhas mãos tremiam como as de Mohamed Ali.

“Muito bem.” O Demônio buscou algo no bolso da frente. De lá retirou um maço de cigarros. “Esse é o seu primeiro pecado. Vamos conversar sobre ele?”

Olhei para o maço de Marlboro. Lembrei do tempo em que fumava dois enquanto escrevia. No entanto, não atinava para o motivo de encontrar cigarros na minha mochila de pecados.

“Sempre me disseram que o fumo é coisa do Capeta. Mas eu nunca imaginei que fumá-lo me levaria para o Inferno num voo econômico.”

“Percebo que o Senhor tem senso de humor. Isso é bom.”

“Eu não entendo.” Remexi na cadeira. “O que tem de tão assombroso assim nesse maço de cigarros?”

“O Senhor não entende? Tem certeza?”

“Escuta aqui, Senhor Demônio, vamos acabar logo com isso. Me mande para o Inferno ou sei lá o que. Estou ficando cansado dessa conversa fiada.”

“Não é assim que as coisas funcionam, Senhor Muller.” O sorriso da besta tinha dentes afiados. “Não podemos acelerar o processo.” O Demônio pediu para que eu me aproximasse da mesa. “Eu perderia o emprego se fizesse o que o senhor me pede.”

Dessa vez foi ele quem gargalhou. Fiquei olhando para o seu pescoço. Ele regurgitava o som, com urros estridentes.

“Tudo bem, tudo bem. Então vamos acabar logo com isso. Me conte sobre o maço de cigarros.”

“Só mais uma pergunta, Senhor Mulher.” O Demônio mexeu nas papeladas e aprochegou os óculos aos olhos. “Qual foi o número do seu voo?”

Revirei os olhos. Se o Inferno é burocrático, imagina o Céu?

“2109.”

Ele anotou o número numa folha.

“Senhor Mulher, vamos ao maço de Cigarros?”

***

 

“O senhor teve uma filha com Rachel, certo?”

Meu Deus! Por que estão me fazendo lembrar de Mariana? Por quê?

“Isso.” Não consigo parar de balançar as pernas. “Tivemos uma menina chamada Mariana.”

“Que morreu aos seis meses, não é mesmo?”

“Se sabe de tudo por que me pergunta?”

“Para ter certeza. Não queremos cometer injustiças.”

“Sim, sim, ela morreu ainda bebê. Foi um acidente. Um acidente bobo.”

“Chama aquilo de acidente bobo?”

“Do que mais chamaria? De destino?”

“Não.” A luz do abajur ficou mais vermelha e quente. “Aqui chamamos aquilo de pecado.”

“Não, não, eu sei o que estão tentando fazer. O que aconteceu fora um acidente. Eu sofri o suficiente, não preciso passar por aquilo tudo de novo.”

“Precisa sim, Senhor Mulher. Faz parte do seu pacote de viagem.”

“Por favor, vamos acabar logo com isso. Eu só peço para que ande logo com sua papelada.”

“Como eu disse, isso não será possível. Nossos relatórios vão para o Céu. Não quero nenhum anjo me enchendo o saco porque não fui minucioso.”

Meu suor veio em gotas escorrendo pela testa e sujando minha camisa. Uma pontada no peito me fez regurgitar alguma coisa na barriga.

“O Senhor queria o divórcio, mas Rachel engravidou.”

“Foi um acidente, um acidente.”

            Minhas mãos tremiam, os lábios também.

“Então Mariana nasceu e o senhor se viu preso naquele casamento.”

“Não! Isso não é verdade. Não é verdade.”

“Num dia quente em que tentava escrever seu décimo livro, foi até a cozinha e buscou algumas cervejas.”

As imagens daquele dia surgiram na parede da sala. Tentei fechar os olhos, mas minhas pálpebras estavam congeladas.

“Rachel foi até o mercado e deixou Mariana aos seus cuidados.”

“Foi um acidente. Eu juro que foi.”

Nunca pensei que voltaria a chorar por minha filha. Mas o fiz na frente do Demônio.

“O Senhor pegou um cigarro desse maço, acendeu-o e foi até o berço da menina. Me corrija se eu estiver errado.”

            Sim, Demônio. Você tem razão. Não foi um acidente. Eu precisava me livrar dela; daquele casamento, da mulher que empatava minha vida. Então peguei as cervejas da geladeira e fingi tomá-las (na verdade joguei-as fora na pia do banheiro. Tomei apenas a última, para enganar a polícia quando chegasse). Depois fui até o quarto de Mariana e coloquei fogo no seu berço. Não demorou para que as chamas se alastrassem. Eu me arrependi. Tentei tirá-la de lá, mas era tarde demais. Pensei que Deus tivesse me perdoado, mas creio que não.

“Não perdoou, Senhor Miller. As coisas não são tão simples assim.”

Que bom que pode ler meus pensamentos, assim não preciso ouvir minha voz. Admitir que somos merda é difícil. Tão difícil quanto enfrentar seu exército de esqueletos. Eu amava minha filha, só não sabia o quanto até vê-la nas chamas. Seus olhos eram iguais aos da mãe; de um azul profundo. Olhava para Mariana e via Rachel. Posso dizer que odiava minha esposa. Eu não sei quando isso começou, só sei que passei a odiá-la. Talvez fosse pelo jeito desgostoso que olhava para mim, sempre me cobrando uma vida melhor, uma casa maior.

Ouço a pergunta que faz, tão nítida quanto esse cheiro estranho de enxofre. O que Mariana tinha a ver com nosso desamor? Já me fiz essa pergunta várias vezes e sempre chego na mesma resposta. Atingi-la foi o jeito que arranjei para fazer Rachel sofrer.  Gozei ao vê-la destruída no velório de nossa filha. Eu sofri também, admito. Mas o prazer que senti ao vê-la em pedaços abrandou minha culpa. Foi fácil para mim seguir em frente. Quanto a ela? Duvido. Sei que se casou de novo e teve outros filhos. Só que Mariana tá lá, gravada no seu peito como tatuagem.

“Seus problemas com sua mulher não são da nossa conta, Senhor Muller. Seus atos sim. Vamos cuidar apenas do que tem dentro da mochila. Terás muito tempo para remoer suas outras culpas.”

O Demônio esperou alguns minutos para puxar o outro objeto da mochila. Enxuguei os olhos para ver o que tinha lá dentro. Uma caixa de remédios foi colocada na minha frente; de tarja preta e nome esquisito.  Olhei para o diabo com a testa franzida. A mesma lereia do maço de cigarros. Eu não me lembrava de nada.

 

***

 

“Não me olhe desse jeito, Senhor Muller. Sabe que não posso acelerar o processo.”

“Nem pensei nisso. Estou cansado demais para argumentar sobre qualquer coisa.”

“Melhor assim.” O Demônio continuou mexendo nos papéis, os óculos escorregando do nariz. “O que tem para dizer sobre isso?” As unhas enormes da besta apontavam para a caixa de remédios.

“O de sempre: nada.”

O demônio gargalhou seu urro estridente. Dessa vez jogou a cabeça para trás, se divertindo com a situação.

“Os humanos são assombrosos.” Disse ainda rindo.

Uma lufada de enxofre chegou até mim. Talvez esse emprego seja mesmo engraçado, pensei com meus botões.

“Faça um esforço, Senhor Muller. Tenho certeza que vai se lembrar.”

“Não quero me esforçar, entendeu? Não quero me lembrar.”

“Mas o senhor vai, tenha certeza disso.”

Por que não me lembro? Se isso tem a ver com minha estadia no Inferno. Por que não consigo me lembrar?

“Qual é mesmo o nome de sua mãe?” O Demônio puxou um dos papeis de sua prancheta colocando-o em cima da mesa.

“Você saber o nome da minha mãe. Checou isso comigo minutos antes. Por que me pergunta?”

“Me esqueci, Senhor Mulher, sou um Demônio muito velho.” A besta pegou numa das gavetas da mesa um lápis jogando a caneta no lixo. “Por favor repita o nome da sua mãe?”

“Anabela. Minha mãe se chama Anabela.”

“Muito bem, podemos começar por ela. O que o senhor acha?”

“Por que preciso me lembrar da minha mãe? Sabe muito bem que eu não gosto dela.”

O demônio cruzou os braços sobre o peito.

“Sabemos disso, Senhor Muller. Mesmo assim não foi lhe dado o direito de decidir sobre a vida dela.”

“Eu não matei minha mãe.”

“Não do jeito como fora feito com tua filha. Tu és um mestre na arte de enganar.”

“Não sei do que está falando, Demônio.”

“Olhe para caixa. Acho que vai se lembrar.”

Minha mãe nunca foi minha amiga. Nunca leu meus livros, me negou seu carinho. Sempre deu razão para Rachel, me culpando pela morte de Mariana. Sei que sou culpado, mas ela não sabia da história. Não me viu ateando fogo no berço. Por que duvidou do que eu disse para polícia? Mães prestimosas protegem seus filhos. Ela me conhecia muito bem. Disso não tenho dúvidas. Por isso fiz o que fiz. Cansei de correr atrás do seu afeto. Passei a correr atrás do seu dinheiro.

Sim, sim, Demônio, eu troquei os remédios de mamãe para que surtasse. Há muito vinha sofrendo da memória, eu só acelerei o processo. Um plano ousado, mas bem funcional. Que idiota eu sou tentando enganá-los. Vocês sabem de tudo. São como urubus a procura de carniça.

“Sua comparação é um tanto quanto deselegante, Senhor Muller. Mas vou deixar passar essa porque fui com a tua cara.”

“Isso é bom ou ruim.”

“Indiferente quanto ao seu futuro, meu rapaz.” O Demônio escreveu algo de lápis no papel. “Vamos terminar o seu processo. Quero que confirme para mim os seus pecados.”

“Como assim?”

“Diga para mim o que fez, para que eu possa anotar no seu dossiê.”

Que saco! Passamos a vida sofrendo com a burocracia e quando morremos ‘olha ela aí!’ nos enchendo com suas anotações em papeladas.

“Ok.” Suspirei. Tanto faz se fiz ou não fiz. Estou no Inferno e creio que não vou sair daqui tão cedo. “Eu matei minha filha e dopei minha mãe para que fosse internada num sanatório. Talvez vocês não saibam, o que duvido muito, mas roubei o seu dinheiro também.”

“Não me diga, Senhor Muller?” O Demônio deu uma de Deadpool, fazendo aquela cara de espanto e colocando as mãos no rosto. Ele remexeu a mochila, puxando de lá um papel. “Olha o que achei? É a assinatura de sua mãe nesse contrato?”

“Sim. São os rabiscos dela. Eu roubei o dinheiro da velha. Coloca mais esse pecadinho na minha conta.”

“Por que não gosta de sua mãe, Senhor Muller?”

“Pergunte para ela quando o voo dela aterrissar aqui.”

“Sua mãe não será condenada ao fogo do Inferno. Já pagou os seus pecados quando o colocou no mundo.”

“Muito espirituoso, Demônio.” Remexi na cadeira. Não de nervosismo, mas de cansaço. “Terminamos com a mochila?”

“Creio que sim.”

“O que acontece agora?”

“O de sempre.” O Demônio juntou toda a papelada. Depois carimbou e assinou cada uma das folhas. Num envelope pardo lacrou-a com o sangue que escorria de seus dedos. “Olhe para essa parede, Senhor Mulher. O que vê?”

Havia duas portas atrás dele: uma na cor vermelha e outra verde. A fechadura era escura com um tom de ferrugem.

“Vejo duas portas.”

“Isso. São bonitas, não acha?”

“Assustadoras.”

“Nem tanto, nem tanto.”

O Demônio ficou de pé. Um esqueleto limpou a mesa, levando o envelope e minha mochila. As portas ficaram maiores. Nos aproximamos devagar, com as mãos dele nos meus ombros.

“Lembre-se que o Inferno obedece às leis do Paraíso. Vão chamá-lo assim que for possível.”

“Posso ter a esperança de que um dia me perdoarão?”

“Claro que sim. Deus é misericordioso.”

A medida que nos aproximávamos das portas, o cheiro do enxofre ficava mais forte.

“Vamos lá, meu rapaz? Escolha uma delas.”

As garras do Demônio apontaram para as portas.

“A vermelha.”

“Uma sábia decisão.”

A besta puxou uma chave do bolso.

“Lembre-se que no Inferno nada é tão ruim que não possa piorar.”

Um clarão forte vinha lá de dentro. As lufadas de enxofre quase me derrubaram. Minha alma tremia, o buraco do meu peito sangrava como se eu ainda estivesse vivo. De onde eu estava não enxergava nada. Como a menina de Poltergeist, caminhei para luz que emanava dela. Minha pele pegava fogo, assim como minhas roupas. Olhei pela última vez para o Demônio. O que vi me trouxe esperança. Corri para tentar salvá-la.

 

***

O Senhor Muller remoeu sua culpa de forma obstinada. Todos os dias, no mesmo horário, olhava para trás, encarava o Demônio na porta e corria para tentar tirá-la do berço. Quando perto de alcançá-la, as chamas consumiam o corpo da menina, assim como o dele. O homem que negou sua culpa ouvia os gritos de menina, o fritar dos seus ossos, a pele se transformando numa massa disforme. A dor que sentia era como se estivesse vivo. O cheiro de queimado e enxofre impregnava o ar com o sombrio. Quando o sofrimento atingia o ápice da sua existência, ele voltava para a porta e revivia tudo de novo num ciclo sem fim; dia após dia, sem trégua ou descanso.

Muito, muito, muito tempo depois olhou para a porta – como sempre fizera – e viu o Demônio. Diferente das outras vezes, a besta fera acenou para ele se despedindo.

“Terás uma nova chance, Senhor Mulher. Aproveite-a dessa vez.”

Quando Richard se virou para encontrar Mariana, havia uma luz no lugar do berço. Ele caminhou até ela mal enxergando o que tinha pela frente. Não teve medo de entrar nos feixes que o cegavam. Aprendera muito durante todo esse tempo. Se arrependeu da vida que levou, aceitou seus fardos e desejou a presença da mãe. Sentia-se aliviado.

Lembrando-se da filha – do que ela representava para ele – se embrenhou mais na luz para aparecer do outro lado, como um bebê nas mãos de uma mulher.

“Vais viver tudo de novo.” Disse o Demônio. “Aproveite para se redimir dos seus pecados. Não quero vê-lo por essas bandas de cá tão cedo, Senhor Muller.”

Os olhinhos da criança se abriram para uma mãe de seios fartos e olhar carinhoso.

“Como vai chamá-lo, querida.” Perguntou a enfermeira.

“Richard.”

O sorriso de Anabela era do tamanho do mundo. O pequeno Rick se aconchegou ao corpo dela. Dessa vez seria diferente. Ele aprendeu a amar.

 

Goiânia, 25 de janeiro de 2018.

Sylvana Camello

 

 

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