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Quando fala a Noite

I: Eram os ventos

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A noite não tinha alma nem fim. Aquele vento frio era cruel e penetrante, perseguindo e mordendo cada centímetro de São Paulo em carne viva. As ruas de pedras, bueiros e pedintes de papelão fediam à última esperança humana: sobrevivência a todo custo. Eram os selvagens, os bravos e os feios que dominavam a Praça da Sé, roubando cobertores, roupas, comidas e dignidades dos mais fracos — isso, quando não flertavam com toda sorte de canibalismo. 

Dentre suas presas favoritas, estavam os hipnotizados de pó e pedra, dependentes da dopamina rápida e cachimbos incandescentes. Os feios os batiam. Os bravos, estupravam. E os selvagens lhes comiam a alma, bebiam seus corpos e arrotavam felicidade. Esse tipo de gente têm na alma uma espécie de piche pegajoso, resultante da fuga de Lúcifer dos céus à Terra ou de qualquer anomalia de caráter. Essa gente crua, que mata por prazer e gozo, escapa de qualquer tipo de misericórdia. É o desejo de morte pela morte. A tortura pelo riso. 

Eu, que passava a noite dentro da Catedral da Sé fotografando parte de seu acervo de obras de arte para estudos posteriores, saí uns segundinhos para fumar, tomar meu chimarrão de garrafa térmica e fotografar a noite paulistana. Em uma das torres da Catedral havia um fumódromo seguro, cuja vista rondava em si mesma a Praça da Sé e arredores. Tirei fotos lindíssimas: dos prédios, dos quartos azulados de televisão acesa, invasões irregulares, gente de toda sorte nas ruas, calçadas e bares. Era eu a “janela indiscreta”, registrando de lente e óculos o pulsar do sangue da cidade, seus cidadãos. Acabei, porém, virando testemunha de um crime brutal. De lente, óculos e minha alma, também. 

II: José da Silva Estrada Domingos, sangue ruim: 

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Zé Domingos, procurado pela Justiça em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul, queria saber se podia se tornar manchete da principal cidade do Brasil. Seu ego queria o caos, a desordem e o riso fácil. Os ventos do sul só estavam começando a abraçar os esquecidos de Deus e seus papelões. Cachaça barata para aquecer. Zé tinha em seus olhos planos sinistros. Em sua boca, sede de sangue. Nas mãos, álcool e fósforo. E no íntimo, tesão. 

Para os que creem, seu íntimo era feito de uma energia muito densa. Tão pesado aquele homem de pele manchada e cabelos ruivos, que minha câmera borrava-se nas fotos ao captar sua luz refletida. Uma mancha negra, que cobria-lhe os olhos e repousava em suas costas, coisa que não ocorria nem com os selvagens, nem os bravos e nem com os feios, era sua companheira, capa de proteção e maldade, consciência bestial. Zé Domingos era isso: uma consciência bestial. O próprio Lúcifer encarnado ou quem lhe dá carta branca para agir assim…

Este comportamento era seu tesão, que lhe pulsava a vida e a morte. Era também seu momento espiritual cujo corpo dançava coordenadamente os movimentos simpático e parassimpático: pupila dilatada e boca salivando; frequência cardíaca acelerada e digestão estimulada; ejaculação em gozo e pênis ereto. No momento do crime, leitor amigo, não sabia seu nome. O apelidei, portanto, em meu íntimo e câmera de: “aquilo”. Jamais o poderia comparar a um animal ou alguém com a cognição perturbada. Jamais! Zé Domingos era apenas um “aquilo” e só. “Aquilo” era uma estranha mistura de desejos sórdidos com a mais sincera diversão. Psicopata? Seu crime foi horrendo e brutal e o descrevo abaixo agora. Aos sensíveis, cuidado! 

III: O “Janela indiscreta”: 

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Afinal, quando foi que percebi o tal “aquilo”, já que futricava os sexos alheiros das janelas indiscretas do centro da cidade? Percebemos, eu e minha câmera, uma movimentação estranha: um corpo atento a Zé Domingos e suas más intenções inequivocamente emanadas de seu caráter podre e pele, também. O tal corpo era composto por células nervosas, tecidos ópticos, órgãos de vigilância e mil olhos que tudo viam. Seu sangue era o plasma das desconfianças dos selvagens, bravos e feios que, em bloco único, despertaram o aflito que habita em mim. Sabíamos eu, a lente de minha câmera, meu aflito interior e o corpo de mendigos, que algo de muito grave estava para ocorrer. 

Subiu, Zé Domingos, seus olhos pelos desabrigados que dormiam entre aquelas fileiras de coqueiros que insistem em enfeitar a Sé em linha. Os postes ingleses mal alumiados guiavam os olhos sanguinários de Zé, que, por final, repousou sua intenção maligna em Dona Amélia Cachaço, cafetina de si mesma desde a redemocratização e porca. Minha câmera estava a pegar tudo. Abriu seu frasco de álcool, molhou Dona Amélia Cachaço e aqueceu todo aquele corpo esquecido por Deus, Clero e Nobreza, de fogo e risada pervertida em segundos. Muita gritaria. Briga. Dona Amélia Cachaço se debatia desesperada! Foi o caos enquanto uma fina chuva começava a pintar aquele quadro expressionista. Zé Domingos contra o mundo! 

IV: Fogo e fúria: 

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As luzes do fogo de Amélia Cachaço brincavam com as sombras daquela noite interminável, que refletiam a garoa fina e as dores dos homens fora dos ventres de suas mães. Os policiais, três ou quatro, que estavam ali por perto de cafezinho e fumo especial em suas viaturas, não precisaram de nenhum chamado: puderam ver, ouvir e sentir aquele cheiro de terra queimada. Dantesco. Rumaram de armas em punhos. Atiraram em várias pessoas. Espancaram os homens. Zé Domingos fugia dos selvagens, que também atacavam os bravos, que morriam juntos dos feios, e que faziam-se mortos em seus sangues. Os sangues dessa gente se misturavam às suas urinas, fezes, cuspes, restolho de drogas e todo cheiro de esgoto que a falta de poder público poderia proporcionar. 

Foi uma bala perdida o “tiro de misericórdia” para Dona Amélia Cachaço, que já fibrilava seu corpo na sintonia da tortura e seus requintes de crueldades; e cuja morte impressionava tanto pelo cheiro, quanto pelos vários outros desgraçados que lhe estenderam a mão em ajuda. Apagaram o fogo e a vida da velha, mas o calor da merda ainda se fazia presente, tanto que minha câmera registrou tudo. Foto a foto, todas tiradas em sequência – Eadweard Muybridge ficaria orgulhoso –, testemunhei aqueles horrores, que ocorreram em uns vinte minutos. Me distraí tanto, que masquei a bituca de meu cigarro como se fosse uma goma de mascar. Sabor indigesto. 

V: Olhos nos olhos: 

Detalhe de “Anjo Caído” | Alexandre Cabanel – óleo sobre tela – 121 x 190 cm – 1847 – (Musée Fabre (Montpellier, France))

Quando tudo acalmou de ambulância, outras viaturas e policiais, bombeiros, rabecão do IML, gente curiosa e os jornalistas, minha adrenalina baixou. Urinei-a tudo no banheiro particular do Padre Benedito, que dormia feito pedra. Respirei. Fui até onde meus materiais estavam. Conectei minha câmera ao meu notebook. Queria retornar às fotos do acervo da Catedral e anotações. Fiz de tudo pra voltar ao meu mundo comum, mas depois da chamada à aventura, mesmo que de forma forçada, quase um estupro do destino, você não enxerga nem pisca tal qual antes do limiar. Vi aquela velha ser morta e eu não fiz nada para parar Zé Domingos. Vi aqueles homens lutando de punhos fechados e morrendo de armas e tiros. Vi o ócio de Deus diante da realidade que ele mesmo criou. Por quê? 

Vi, além dos problemas e questões que são discutidas há milênios pelo homem e seus livros e palestras motivacionais, as fotos de Zé Domingos. Não, não as primeiras que tirei, mas sim aquelas do clímax da confusão. Estava eu bem escondido, lembra? Num fumódromo seguro. Seria difícil, para olhos em apuros tais quais os de Zé, de me enxergar naquela torre. Por que o questionamento? Zé Domingos não parava de me encarar nas fotos. Aqueles olhos fitavam-me de óculos e câmera, despindo-me o racional e tocando meus medos e inseguranças aos poucos. Durante aquela desgraça toda de fogo, tiros e punhos, Zé parou no meio da praça para observar-me. E me observava. Aquela foto me observava a alma. 

VI: Absolutamente estranho, tudo: 

Quando Fala a Noite

Já faz quase três meses do atentado. Minhas fotos viraram capa de revista. Dei entrevistas com voz borrada e medo de represálias por parte da polícia, até porque, denunciei frame a frame, sua atuação criminosa. Temo por mim e por minha família, pois sei que os porcos fardados podem me perseguir pela cidade, me dar um tiro ao mesmo tempo que me tiram a vida. Tudo no sigilo com aquele gosto de vingança que só os péssimos podem ter. Quem são os péssimos? Homens selvagens, de espíritos feios e cara de bravos, mas que vestem a fantasia do “cidadão de bem”. Estes, piores que os outros. 

Tinha medo deles apenas quando saia na rua. Já não boto meus pés no asfalto por motivos de pandemia. Depressão e síndrome do panico também me acompanham. Outra coisa que me acompanha é Zé Domingos. Morreu olhando pra mim. Foi um tiro no tórax e caiu no chão. Aqueles olhos borraram-se em fótons e impressionaram minha câmera. Captei seus últimos momentos. Não me lembrava, mas depois da terapia da semana passada, me lembro. Merda! Foi o tiro, o sangue pelo nariz, engasgo, uns bravos e feios lhe chutaram a cabeça e ego. 

Aqueles chutes, feitos de raiva, rancor e sapatos de segunda mão e bico duro, conseguiram ferir a cabeça do moribundo. Feriram. Mas o ego, meus amigos, o ego de Zé era inabalável. Conseguiu, com fotógrafo particular e tudo mais, instalar o caos e a desordem. Conseguiu, o Zé Domingos, tudo o que queria? Sim! Mas e o riso fácil? Já são três meses de um vento frio, cruel e penetrante. Cada centímetro do meu corpo ainda está em carne viva. Aquele homem conseguiu transmutar-se na própria risada, que me atormenta a alma, transforma meu dia em noite e retira dela a alma e o fim. E sim, ele conseguiu se tornar manchete em São Paulo…

FIM

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