Nova posição da Agência Internacional

Depois dos equipamentos terem sido recolhidos e guardados no porta-malas Rejane, antes de entrar no veículo parou, olhou para trás e pensou em voz baixa:

Acho que não foi dessa vez.

Juliene ouviu:

O que não foi dessa vez?

Nada, não foi nada. Só um pensamento bobo.

Esquecemos alguma coisa? – Perguntou Ivã que já dava partida enquanto Juliene se ajeitava no banco da frente.

Vagarosamente Ivã dirigiu por entre a multidão que se avolumava em frente do portão do cemitério. Rejane não suportava ver o sofrimento da espera no olhar daquela gente. Baixou os olhos e se aquietou. Já amanhecia.

Dois dias se passaram e o relatório de observação de campo estava pronto. Com exceção dos resultados da análise laboratorial. Mesmo assim, a primeira parte fora, então, encaminhada para a agência internacional na Suíça. Outros dois relatórios, de diferentes equipes de pesquisadores também foram incluídos para uma análise comparativa. A agência internacional, após analisar os dados preliminares simplesmente emudeceu. Sequer deram retorno sobre o que acharam da observação de campo. Os pesquisadores estranharam, mas resolveram dar mais um tempo até que alguém de lá se pronunciasse.

Duas semanas mais tarde, a agência da Suíça, enfim, com a devida anuência das Nações Unidas, decide iniciar uma campanha mundial sem fundamento a favor do isolamento em massa dos ressuscitados. Todos confinados em um único local ao invés de mantê-los fragmentados nas diversas áreas espalhadas pelo país. Baseado nisso, uma instrução adicional deveria ser implementada: Os ressuscitados deveriam ser vigiados noite e dia.

Então foi dado início à campanha. Segundo o departamento de comunicação da agência, em carta emitida para todos os jornais, a ação de confinamento em uma única área facilitaria a chegada de recursos como alimentos e roupas a todos os ressurretos, sem exceção, e também, visaria facilitar as ações humanitárias para a preparação deles no intuito de transformá-los em indivíduos produtivos. Outro argumento usado para corroborar tal ação foi o de ser necessário compreender a fundo detalhes sobre o comportamento psicológico e o funcionamento orgânico desses indivíduos. Por isso, deveriam permanecer sob constante observação médica. Cada país criaria sua reserva seguindo os mesmos padrões.

Quatro dias depois do comunicado sobre a campanha, as equipes militares foram incumbidas de iniciar a evacuação os ressuscitados das cidades. A ação fora bastante incisiva, mais parecia uma manobra de retirada de inimigos prisioneiros. Foi o coronel Sued Alcântara Machado que liderou a missão. Somente na cidade de São Paulo, cerca de dez mil novos ressuscitados foram retirados. Segundo os jornalistas, ação essa comparada ao êxodo bíblico.

Um diplomata americano escreveu para o jornal The New York Times se referindo ao tratamento dispensado aos ressuscitados como um ato claro de segregação. Em palavras ainda mais diretas, disse que aquilo tornava a ACCR inadequada para representar a sociedade mundial.

Um assessor do Itamaraty em Brasília concordou, e numa entrevista dada ao jornal Estado de São Paulo, alegou que além da população se mostrar contrária à medida de esvaziamento dos locais de controle daquela população, sabiam que a ACCR abusava de seus poderes. Tudo deveria acontecer sem traumas.

Porém, uma coisa ficou clara: nem os políticos e nem a ACCR calcularam o impacto social que a missão causou. O aspecto negativo fora muito maior do que as autoridades imaginavam. Um telejornal enviou seu correspondente às ruas e o que se viu foi de causar indignação. Segundo o repórter, uma pessoa entrevistada narrou um caso que comoveu toda a população local. A situação foi a seguinte: um senhor decidiu quebrar o silêncio no intuito de relatar as coisas horríveis que estavam acontecendo. Revelou que ele e várias outras pessoas eram monitorados e cerceados por uma gangue que prestava serviços secretos para os agentes da ACCR.

O relato impressionou quando os detalhes da prestação de serviços foram explicitados por aquele senhor de aparência tão frágil:

Foi numa quarta-feira, às vinte horas, um rapaz se identificou como auxiliar da ACCR. Trazia um recado de meu pai, há pouco ressuscitado e levado a uma reserva. Ele disse – o rapaz – que meu pai queria falar comigo urgentemente. Meu coração quase saiu pela boca. Fiquei desesperado. Logo pensei no pior. Imaginei que talvez ele precisasse de ajuda, enfim, estivesse mal. O rapaz pediu que eu me arrumasse rapidamente, pois ele me levaria à reserva. Fui do jeito que eu estava, só coloquei os sapatos e peguei meus documentos. Então saímos. Entrei no carro do rapaz. Lembro bem da sua aparência: moreno, mediano, cabeça raspada. Tinha um olhar duro e falava o necessário. Eu estava tão preocupado que não conseguia nem falar. Só conseguia pensar em ser grato por aquela alma abençoada me levar ao encontro do meu velho. Realmente me senti até privilegiado, pois, ninguém que eu conheço fora levado ao encontro do seu ente querido. Puxa vida!… Meu pai. Que cara bacana que ele era! Ou é. Nem sabia mais. Lembro bem dele já no finalzinho da vida. Aliás, foi no dia de sua morte, há oito anos, ainda morávamos juntos. Passei pela sala e lá estava ele, aconchegado em sua poltrona preferida. Era o finalzinho da tarde. O sol tocou seus pés. Ele acordou e observou rapidamente o relógio. Os olhos se fecharam mais um pouco. Sentei-me ao seu lado para fazer-lhe companhia. Mantive-me calado, só a observá-lo. Quantas lembranças boas aquele homem me trazia. Era uma honra ser seu filho. Notei que o sol se afastou bem devagar. Ele abriu os olhos novamente como se sentisse uma vaga sensação de abandono. Olhou o relógio. Já passava das dezessete e trinta. Com muita dificuldade devido às dores no corpo, levantou-se e foi se preparar para o passeio rotineiro. Não sei bem o porquê, mas tive uma sensação estranha. Não queria que ele saísse naquele final de tarde. Enquanto jogava água fria no rosto, bufava e resfolegava algo ininteligível. Gargarejou e ouviu em tom muito alto a minha súplica:

Pai, por favor, fique aqui hoje. Podemos conversar ou jogar xadrez. Que tal?

Eu o vi fazendo uma careta e imediatamente ajustou o aparelho auditivo. Aquilo que eu lhe pedi doeu-lhe aos ouvidos. Estava ajustado no volume máximo de modo que as minhas palavras soaram como um trovão dentro de sua cabeça. Mas ele não disse nada. E eu insisti:

Pai, fique. Nunca pedi nada. Seria demais ficar em casa só hoje?

Papai limpou o resto do creme de barbear com uma toalha e não deu a mínima. Ele saiu do banheiro, caminhou até a porta e procurou suas chaves e se foi. Meu pai dizia que o dia ficava mais bonito no final da tarde. Da janela pude vê-lo se afastando de casa a passos inseguros. Parou, olhou para trás, ergueu o braço e acenou para mim. Tinha um sorriso discreto que iluminou seu rosto. Pude vê-lo a caminhar em direção a um ponto de táxi onde seus amigos se reuniam. Ele foi atravessar a rua e um rapaz de bicicleta, desses que entregam galões de água, esbarrou em seu braço. Ele desequilibrou e caiu. Era um cruzamento movimentado. Um carro apressado fez a curva da esquina em alta velocidade. Não houve tempo de frear. Foi assim que ele faleceu. Fiquei chocado. Demorei para me recuperar do choque. Mas o tempo passa e a anestesia vem. Bem no dia em que ia completar sete anos de sua morte, eu havia acabado de chegar à casa, casa nova, pois eu mudei para um novo bairro. A única coisa que permaneceu comigo foi a poltrona do meu velho. Coloquei-a de frente a janela do mesmo jeito que ela ficava na antiga casa. Tive de sair e fiquei um bom tempo fora de casa. Retornei cansado. Procurei as chaves e ao abrir a porta, dei de cara com uma pessoa sentada na poltrona. “Que petulância!” – Pensei. Achei que fosse um ladrão. A primeira coisa que eu disse foi: – Quem está aí? Pode sair já ou eu chamo a polícia. – Ele se levantou, e bem devagar se virou. Eu não acreditava em meus olhos. Pensei até que estava delirando. Era meu pai. Ele então disse:

Oi, filho. Que saudade!

Foi demais para mim. Era ele mesmo! Parecia muito mais jovem. Não sabia se chorava, se ria, se agradecia a Deus ou ao diabo. Foi muito estranho. Ele se aproximou com passos firmes, abriu os braços e me envolveu. Estava frio, parecia uma pedra de gelo. Depois daquilo eu não conseguia nem mais falar. Ele me afastou do abraço, pediu água gelada e algo para comer. Sua roupa estava imunda, coberta de terra. Levei-o ao banheiro, abri o chuveiro, mas ele pediu para ajustar a temperatura para fria. Talvez por causa da febre.

Depois de comer, comer bastante mesmo, eu perguntei como era possível. Ele respondeu que não fazia a mínima ideia. Mas estava feliz em me ver. Estranhamente agentes da ACCR bateram na porta e mesmo antes de eu abri-la, disseram que tinham um mandato de remoção de um ressuscitado. Como eles tomaram conhecimento da existência de meu pai também não faço a menor ideia. Eles o agarraram, muito embora meu pai não tivesse oferecido qualquer resistência e simplesmente o levaram. Tentei pará-los, mas um dos agentes me ameaçou dizendo que eu estava desrespeitando uma autoridade e que isso poderia dar cadeia.

Pois é, fiquei sem vê-lo por seis meses. Foi, então, que o tal agente apareceu para me levar à reserva. Quando cheguei lá, vi uma multidão, alguns sentados, outros em pé. Todos diante do portão principal. Lembrava muito aquelas pessoas que vão visitar detentos no final de semana. Só que aquelas eram pessoas que também tinham sido levadas para ver os seus parentes ressuscitados. Pude estimar que ali havia mais de quinhentas pessoas. As mulheres choravam e os agentes, com listas nas mãos, gritavam:

Vamos logo, assinem!

Fomos obrigados a assinar algo que nem podíamos ler. Um homem lá se negou a assinar. Ele foi imediatamente isolado e levado para uma outra área. Não o vimos mais. E lá permanecemos por doze horas. Eu já não aguentava mais de cansaço e fome quando vimos um caminhão, depois mais três, saírem com várias pessoas dentro. Depois, do nada, agradeceram nossa colaboração e disseram que todos os ressuscitados seriam removidos para uma área com melhores instalações e que estávamos dispensados. Fiquei irado e dei uma escapada sorrateira. Atravessei os portões. Caminhei em direção à área onde os ressuscitados dormiam. Olha, a coisa foi de arrepiar. Fiquei apavorado com o que vi. Eram centenas de colchonetes espalhados pelo chão. Deviam dormir todos entulhados. O lugar era sujo, imundo. Um cheiro horrível. Havia marcas de sangue por toda parte. Vi pedaços de dedos e dentes espalhados pelo chão. Na hora, não pude imaginar o que podia ter acontecido ali, mas coisa boa certamente não era.

Retornei ao portão principal. Algumas pessoas perceberam que eu não estava bem. Perguntaram o que eu tinha visto. Preferi calar. Voltei para casa arrasado. Tentei me comunicar com a ACCR, mas não havia quem pudesse me dar qualquer explicação. Só sabia que já havia perdido meu pai uma vez. Não queria perdê-lo novamente. Se fosse necessário faria uma loucura qualquer para voltar a ficar ao seu lado e protegê-lo. Mas desde então nunca mais o vi.

O repórter, depois de colher o depoimento daquele senhor, entrou imediatamente em contato com a ACCR e mostrou a gravação do relato que havia acabado de fazer. O assessor de imprensa da própria agência assistiu a gravação com muita atenção e disse:

Temos consciência de que a população se sente ferida com a medida da remoção. Não deve ser fácil, pois também temos parentes que estão voltando à vida. Contudo, a função da ACCR é empenhar-se em auxiliar e readaptar os ressuscitados. Realmente nosso objetivo é humanitário e desconhecemos qualquer ação hostil por parte de nossos agentes conforme o relato do senhor. Talvez ele tenha se enganado quanto ao que ele viu. Uma coisa eu posso garantir: força não se faz necessária, visto os ressuscitados serem totalmente cooperativos.

Mas o repórter não se deu por vencido e insistiu:

Será que a ACCR não deveria instaurar uma CPI para avaliar qualquer possibilidade de abusos por parte de agentes? Especialmente aqueles que estejam ligados a gangues?

Nossos agentes são altamente treinados, e nunca se prestariam a este tipo de associação. Contudo, realizamos periodicamente uma avaliação. Até agora não detectamos nada que caracterizasse torturas ou abusos. Respeitamos a vida da forma como ela é, até mesmo numa situação sobrenatural como essa.

Mas e a alegação de que havia partes humanas, dentes e dedos espalhados por toda parte? Sangue!

Costumo dizer que nem sempre o que vemos é o que parece ser. Pura alucinação. No entanto, mandarei averiguar. Veja bem: a expectativa numa situação como aquela vivida pelo senhor pode causar distúrbios mentais temporários. Não sou a pessoa mais adequada para lhe falar sobre isso, mas já vi acontecer.

A matéria finalizou desta forma. Semanas mais tarde o repórter foi demitido. Pouco tempo depois, a Agência Internacional denunciou jornalistas que estavam aceitando propina para a realização de matérias que denigriam a imagem da ACCR. Foi alegado que havia uma espécie de conspiração mundial contra o respectivo órgão regulador dos ressuscitados. A cúpula da agência enviou cartas para as embaixadas de todos os países para repudiar tal atitude e chamou de falso o veículo jornalístico que se prestasse a propagar tamanha incoerência.

No dia seguinte o repórter que fora demitido apareceu misteriosamente morto. A mídia mundial calou-se. Após o evento, uma onda de violência sem precedentes abateu-se contra os ressuscitados. A mídia escrita e televisiva alegava que isso se devia ao fato de os ressuscitados estarem forjando um plano para assumir o controle mundial, e que davam dicas claras de que um movimento partidário estaria em formação.

A princípio, a população humana ficou dividida. Alguns acreditavam nas calúnias, outros mais sensatos, duvidavam de que indivíduos tão mansos pudessem fazer realmente algum mal. “Puro fingimento. Eles vieram do inferno.” – Comentavam pelas ruas e bares os mais fanáticos. A população a favor dos ressuscitados ficou ainda mais indignada com outro fato ocorrido no nordeste do país. Um jovem, um rapaz recém-ressuscitado, caminhava pelas ruas de Recife em companhia de sua mãe. Admirava as vitrines das lojas do centro após ter passado semanas escondido em um porão escuro. Ninguém o notaria se não fosse um pequeno acidente causado por uma lojista ao esbarrar numa lâmpada de uma das vitrines. Esta explodiu causando um brilho incomum. Ofuscado, o rapaz se ajoelhou curvando a cabeça entre as pernas e a gemer aflito. Pessoas brandindo pedaços de pau saltaram de todos os lados e o espancaram. A violência foi tamanha que não havia mais ossos a serem quebrados no corpo do rapaz. Sua mãe gritava desesperadamente por ajuda, mas ninguém veio acudi-lo. Um homem vociferou:

Isso é praga! Tem que acabar!

Algumas poucas pessoas bem que tentavam fazer algo, mas receavam uma represália. Não ousavam se aproximar. Para desespero maior da mãe, agentes da ACCR passavam no local. Com medo de que algo pior acontecesse, a mulher tentou erguer o filho, mas, a despeito da possível intervenção dos agentes, aqueles que participavam do espancamento saltaram outra vez sobre o pobre coitado. Mesmo com as pernas e braços quebrados, foi amarrado e arremessado sobre uma caminhonete. Em meio a soluços e lágrimas, a mulher suplicou para que falassem para onde o levariam. Ninguém respondeu. Os agentes viram tudo e mantiveram-se calados como se nada estivesse acontecendo.

Pouco tempo depois, tornou-se proibido noticiar espancamentos de ressuscitados na imprensa. Apesar de não haver um decreto oficial sobre o assunto, sabia-se que, caso algum jornal se aventurasse a redigir uma linha sequer sobre isso, seria processado por instalar pânico na população. Correria o risco de ser fechado.

O tempo passou e o dia Sete de Setembro não mais seria lembrado como o Dia da Independência, mas como o dia da grande queimada. Dezenas de cemitérios de todo o país foram incendiados por agentes da ACCR vestidos à paisana. Alguns cemitérios de São Paulo e do Rio de Janeiro foram brutalmente violados. Destruíram lápides e arrancaram cadáveres ainda frescos para serem amontoados e queimados.

Traumatizadas, as pessoas passaram elas mesmas a enterrar seus entes queridos em suas próprias casas. Alguns usavam o quintal como cemitério particular. Outros chegaram a comprar congeladores e tratavam de conservar os parentes desta forma na esperança de em breve retornarem. Outros abriram covas no meio da sala ou debaixo das próprias camas. Cimentaram e recolocaram o piso para ninguém desconfiar.

Ao tomar conhecimento disso, a ACCR deu início a uma campanha popular de conscientização. Propagandas em horários nobres foram veiculadas para informar sobre os perigos de se manter um cadáver em casa. Além dos riscos à saúde, um ressuscitado poderia retornar com sérios transtornos mentais. Isso colocaria a família em risco de vida. A propaganda chegou até a apresentar um caso sobre uma mulher que era frequentemente espancada pelo marido. Um dia, ele faleceu de derrame. Por dó, manteve os restos mortais dele no quintal de casa. Com câmeras fechadas no rosto dela, relatou o seguinte:

Era um homem muito nervoso. Já acordava praguejando. Sentia uma pressão constante na cabeça que lhe deixava agoniado. Dava tudo para se livrar daquilo, por isso bebia. Mas quando seu corpo adormecia por cansaço, com o álcool, vinha a fúria, uma coisa incontrolável. Parecia que estava possuído. Quebrava tudo e qualquer um que encontrasse pela frente. E quase sempre quem cruzava seu caminho era eu. Quando ele me via, seus olhos ficavam iguais aos de um carcará, cheios de sangue e nebulosos. Eu gelava. Nem tinha tempo de escapar, pois, ele caia de socos e pontapés em cima de mim. Um dia desejei, orei mesmo para encontrar uma solução. Sou religiosa, não queria me separar. Acreditava que um dia Deus me abençoaria com a recuperação do meu marido. Mas a verdade tem que ser dita. Lá no fundo eu queria é me livrar daqueles olhos de uma vez por todas.

Certo dia, depois de ter apanhado muito decidi agir. Passei uma semana inteira planejando uma forma de matá-lo. Não sabia se tinha coragem, mas vontade não faltava. Conversei com uma amiga que me arranjou um pouco de veneno. Nem mesmo ela sabia dizer que tipo que era. E todos os dias eu ensaiava pingar umas gotas na comida. O veneno devia ser forte, mas agia devagar e não mudava o sabor dos alimentos. Um dia o cabra chegou em casa. Estava morrendo de dor de cabeça. Pediu para eu trazer um copo. Queria beber antes de jantar. E lá fui eu. Peguei o copo. Sabia que aquela noite eu ia entrar no couro. Enchi de coragem e pinguei uma dose de veneno, uma quantidade que dava pra matar um cavalo. Segurando o copo com as duas mãos, fiz questão de servi-lo. No começo ele estranhou. Despejei a pinga no copo, agitei em círculos para misturar bem e entreguei. Quando ele beiçou o copo, dei-lhe um tapa na mão que mandei pra longe. Ele virou um bicho. Pulou em cima de mim e quando levantou o braço com o punho fechado, seus olhos arregalaram, a língua enrolou e o bicho caiu duro no chão. Mais do que depressa, chamei a polícia. Depois que confirmaram que ele estava morto, disseram que iam levar ele para o IML. Aí eu conversei com os polícia, falei que eu tinha de chamar os irmãos dele e eles mesmos iam levar o corpo. Não sei como eles deixaram. Acho que foi porque um deles recebeu uma chamada de rádio urgente. Nem podiam ficar lá perdendo tempo. Eu é que não perdi tempo e enterrei meu marido; lá no quintal. “Finalmente Deus me abençoou, primeiro eu mesma do tormento de ser espancada e ele pelo tormento do vício.” pensei.

Eu casei de novo e minha vida seguia sem problemas, quando, certa noite, o ex-marido ressurgiu. Estava diferente, seus olhos estavam estranhos. Não disse nada. Sorriu, ergueu os braços e jogou uma praga em mim. Eu perdi os movimentos das pernas e dos braços. Depois de ser analisada por vários especialistas, né, concluíram que o susto me fez ficar paralisada.

Este e mais alguns outros casos foram veiculados pelo departamento de marketing da ACCR. E ao final de cada apresentação o lema em destaque era exibido:

Enterre o passado. A vida segue para o futuro.”

Milhares de cartazes eram distribuídos e mensagens eletrônicas disparadas diariamente contendo alertas contra o enterro doméstico. Segundo as estatísticas, boa parte da população fora convencida de que a ressurreição era uma aberração e que colocava a sobrevivência em risco. A alegação era de que o mundo pertencia aos vivos e não aos que já se foram.

Todos os ressuscitados, enfim, foram removidos de seus lares. Muito embora, ainda tinha que se precaver contra o ressurgimento de algum corpo escondido. A ideia de que a ressurreição era uma praga, ficava cada vez mais evidente. Dessa forma, a ACCR usava as queimadas de cemitérios como uma boa desculpa para a desinfecção.

Outra medida preventiva era a utilização de tropas da agência. Fortemente equipadas, elas patrulhavam locais estratégicos dia e noite. Um morador próximo de um dos postos de recolhimento da cidade de São Paulo, observava da janela de sua casa soldados que montavam guarda. Foi seu filho Alberto que escreveu o que o pai vira em seu diário particular. E a situação ocorreu da seguinte forma:

O número de soldados aumentou como nunca. Um dia, com meu binóculo, observei da janela de casa civis aglomerando-se. Conversavam com os soldados. Um deles gritou: – Fora, ressuscitados! – Os demais repetiram a frase e alguns deles ergueram pedaços de pau e correntes. Avançaram em direção ao cemitério, e os soldados indiferentes, não detiveram a destruição de lápides e imagens sacras. Tudo o que estava em pé era derrubado em meio à gritaria e gargalhadas histéricas. A terra foi revirada e os ossos encontrados eram impiedosamente queimados e triturados sob pedaços de lápides. Foi então que vi uma família chegar. Um senhor dirigia o automóvel. Um pneu furou e ele teve de parar. Desceu. Apressou-se a abrir o porta-malas. Parecia desconfiado e amedrontado. Havia uma senhora no banco de passageiro, devia ter a mesma idade do senhor, uns setenta anos. Observava inquieta o movimento daquelas pessoas. No banco de trás, havia um casal de jovens. Quase nem se mexiam. Arriscaria dizer que estavam calmos até demais. Enquanto isso, o grupo de civis, tomados pelo frenesi do momento, percebeu o homem que tentava desesperadamente encontrar o macaco. Infeliz situação. Justo ali. Porém, quando achou, não conseguiu instalá-lo. Escapava-lhe às mãos. O líder do grupo, como uma fera que fareja a presa, observava de longe. Seus olhos mantinham-se fixados no casal de jovens sentados no banco de trás. O líder sinalizou para que dois do grupo fossem até lá. Imediatamente eles se aproximaram. Um deles tinha em mãos um isqueiro. Sorrateiramente se aproximou da janela de trás exatamente na direção de onde os jovens estavam e acendeu. O rapaz e a moça reagiram com um movimento típico de rechaço exagerado. O homem com o isqueiro na mão gritou: – Temos dois aqui. – O líder deu um grito de alerta e ordenou o ataque. Cinquenta pessoas cercaram o automóvel. O motorista foi linchado e morto. A velha foi arrancada de dentro do carro e arremessada ao chão. Recebeu vários chutes na cabeça. Depois, ambos foram amarrados juntos e incinerados. O casal de jovens foi jogado em meio àquela multidão de assassinos. Foram linchados sem piedade e apedrejados. Aquela agonia parecia eterna, pois, eles não morriam! Já completamente nus, foram arrastados e pisoteados, até que um dos linchadores, vendo-os agonizar, embebeu-os em gasolina. Os dois gemiam baixinho deitados no chão. O homem com o isqueiro na mão incendiou-os com um largo sorriso de satisfação. Não tive coragem de ver mais nada. Só escutei os gritos. O que me chamou a atenção foi que, enquanto eram espancados, permaneciam inertes como cordeiros. Mas ao serem incendiados, confesso, aqueles foram os piores gritos que ouvi em toda minha vida. Não saem da minha cabeça. Entre as testemunhas daquele horror, achava-se um médico, doutor Paiva. Ele me confidenciou mais tarde, que muitos outros ressuscitados eram impiedosamente exterminados daquela mesma forma.

Cenas similares repetiam-se por todo o mundo. Famílias de políticos e pessoas de elevado padrão social eram somente multadas caso um agente comprovasse que a denúncia de agressão a ressuscitados tinha procedência. Contudo, nem todas as pessoas observavam esses eventos sem reagir. O pastor Milton Cruz, um importante membro da arquidiocese paulista pregou à sua congregação que locais onde os mortos descansavam eram violados por pura maldade e anarquia, casas eram invadidas, mas a impunidade reina. E mais: Que indivíduos que foram abençoados pela graça divina da vida eterna, eram tratados como lixo, ou pior. A infâmia de nosso comportamento lançará sobre o mundo o pior dos castigos.

O caso foi tratado como incentivo ao pânico na população. Por causa de uma denúncia anônima, o padre foi arrastado por soldados em plena rua e surrado até a inconsciência. Depois foi deixado lá enquanto sangrava em agonia.

A multidão a favor da ACCR invadiu e destruiu a igreja alegando que o padre não se importava com a crise que o mundo estava passando. Demais padres que o assessoravam foram presos. A barbárie superava a escuridão medieval. Pior, o mundo mergulhava no caos. O desespero e a aflição pairavam por toda parte e sem trégua. O equilíbrio moral e convicções humanas tinham sido profundamente abalados.

Os governos, no entanto, procuravam vender a imagem de que tudo estava bem. A ação propagandista governamental sempre ressaltava que os ressuscitados eram mantidos sob cuidados especiais e que seriam amparados assim até que planos de adaptação fossem definidos. Por enquanto, a população deveria cooperar para o bem geral.

Existiam ainda aqueles que sofriam calados. Foi encontrado num aterro sanitário, o diário de uma mulher que, por cerca de três meses, manteve seu filho ressuscitado de nove anos escondido. A maioria das páginas estava danificada pela umidade e outras foram corroídas por cupins. Não havia nomes e nenhum tipo de identificação. Porém, um trecho dizia:

Alguns momentos antes de nos acharem, coloquei delicadamente minhas mãos sobre a cabecinha do meu filho que finalmente, com a graça de Deus, tinha retornado. Para mim seu rostinho brilhava como a luz desta manhã que se iniciava. Pensei: Espero que tudo corra bem hoje; se Deus o trouxe de volta, homem nenhum poderá levá-lo de mim. Então pedi ao meu filho que, seja lá o que acontecesse, jamais esquecer de mim.

E disse mais: Que ele fora abençoado e que sempre o amaria. Ao terminar a frase, ela descreve que sentira um vazio em seu coração.

Parece que uma sombra cobre nossas cabeças. Fui tomada da certeza mutiladora de que nunca mais o verei. Não sei como aconteceu, mas, de repente, vi mãos grosseiras agarrarem meu pequenino pelos cabelos e o levarem. Gritei, gritei como louca. Mas a brutalidade é surda, insensível. Já não tenho mais pelo que lutar. Só a dor me acompanha. Não dá mais para suportar.

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