Remoção para o sul

Um mês depois da reunião de cúpula, as decisões foram publicadas numa ata cujas cópias foram distribuídas para todos os governos do mundo. Enfim, a remoção deveria ser feita e o estudo antropológico conduzido por um cientista competente. Entretanto, a velocidade com que as medidas deveriam ser implantadas não correspondia com a velocidade com que as agressões se disseminavam. Qualquer cidadão que ousasse intervir corria o risco de ser torturado e morto. Às vezes, o policiamento local tentava suprimir um ato de agressão, mas a ação em si não era incisiva. Fazia-se corpo mole. Os próprios agentes pouco se importavam em se arriscarem por algo que não valia a pena.

Fazia-se vistas grossas e mudava-se a rota de vigilância caso recebessem algum aviso de outro espancamento. Raras eram as vezes que um agressor era preso. Em quatorze de dezembro, a ACCR-Brasil declarou finalmente que os ressuscitados seriam removidos para o extremo sul do país. Lá a população ressurgida poderia viver livremente em uma reserva sem a ameaça de grupos independentes e gangues. Além disso, o clima mais ameno favoreceria o bem-estar dos ressuscitados. Alimentos seriam fornecidos até que, cursos de auto capacitação e uma política de incentivo à agropecuária local fossem definitivamente implantados. Isso os tornariam autossustentáveis.

O que ninguém sabia é que este era o plano piloto que antecederia um plano maior. Um projeto proposto por um político iniciante, um tal de Orozimbo Dias. Aquele seria um primeiro degrau que os políticos ansiavam que desse certo, pois, colaboraria com a criação de outro suposto local reservado, fora da área da população humana. Um local ainda a ser definido, onde nenhum humano desejaria estar. Para isso, o primeiro passo foi dado. Pouco tempo depois, iniciou-se a remoção para um local intermediário no intuito de juntar ressuscitados de todo o país. Não foi nada fácil. Sob protestos e palavrões, os grupos independentes, contrários a existência dos ressuscitados, alegavam que o governo os protegia. Isso esvaziaria os cofres públicos, pois, temia-se que a construção de uma reserva fosse superfaturada, o que colocaria o orçamento do país numa condição ainda mais problemática. Alguns chegaram a lançar o boato de que aquela era uma forma velada que o governo encontrou de exterminá-los impiedosamente, fora das vistas da população que se simpatizava com a ideia de proteger os que haviam vencido a morte.

Indiferente à opinião pública, o governo contratou para o transporte dos ressuscitados, trens com vários vagões que antes serviam para transportar sacas de trigo, carvão e animais. Em pouco tempo todos os vagões ficaram abarrotados. As condições eram precárias e indignas. Ressuscitados de todo o país eram trazidos para São Paulo de onde partiriam em direção ao Rio Grande do Sul. Eram milhares e não havia alimentos para todos. Um pãozinho e nada mais era fornecido para ser consumido ao longo do dia. Apertados e sufocados, o tempo de espera antes da partida era de vinte e quatro horas.

Os soldados da ACCR mantinham a guarda. Em caso de qualquer suspeita de rebelião, tinham a autorização de usar a força. Às vezes, chegavam a exagerar. Foi o caso de um rapaz de quinze anos, recém-ressuscitado. Estava faminto e um senhor, vendo-o daquela forma, jogou-lhe um pedaço de pão. O menino deixou brevemente a fila e abaixou para pegá-lo. Um dos soldados atirou-lhe na perna sem ao menos alertá-lo para que não deixasse a posição onde estava. O tiro causou ao garoto uma enorme dor e sofrimento, mas dois minutos depois estava recuperado, o que gerou inveja nos soldados.

Nos trens, a situação era pior. Todos tinham de ficar em pé durante horas sem poderem se mexer. Não havia espaço para sentar. As portas eram mantidas fechadas. Algumas pequenas aberturas nos vagões permitiam uma pobre circulação de ar. Não havia luz e o barulho das rodas dos vagões sobre os trilhos era ensurdecedor. Havia fome, dor, gemidos e suspiros profundos. Em algum canto do vagão existiam latas que eram usadas para as necessidades básicas. Era difícil chegar até elas. Algumas ficavam cheias a ponto de transbordarem. A cada três horas de viagem, os vagões eram abertos e os ressuscitados escolhidos aleatoriamente pelos soldados deveriam esvaziar os latões.

Num dos vagões havia duas moças, irmãs. Um dos soldados, bastante desajeitado e inconveniente, tentou se engraçar com uma delas e foi logo repelido. Por birra, o tal soldado ordenou que as duas descarregassem as latas. A moça segurou o latão e ao virar-se, tropeçou numa irregularidade no piso do vagão. Fezes e urina se espalharam por toda parte. Ambas foram obrigadas, sob coronhadas, a limpar a sujeira. Mas não receberam nenhum utensílio. Ao perguntarem: – com o quê? – O soldado lhes respondeu: – com as suas blusas; – e deu uma estrondosa gargalhada. As moças, temendo serem agredidas novamente, tiraram as blusas e quando estavam prestes a iniciar a limpeza, uma senhora ressuscitada disse ao soldado: – meu filho, quem sabe aqui esteja um parente seu, ou quem sabe um dia, alguém que você goste muito retorne à vida. Você vai tratá-lo assim também? – Ele respondeu: – Prefiro ele morto a vê-lo se tornar um estúpido como vocês. Olhe pra isso! Um bando de cordeirinhos que nem sequer reclamam de nada. Vocês me dão nojo. – Quando as moças terminaram, o soldado ainda não satisfeito, arrancou-lhes as blusas sujas das mãos e esfregou-as em seus rostos.

Outros tipos de abusos se multiplicavam. Já a meio caminho, o trem fez mais uma parada. Era nove horas da manhã. O sol queimava forte e dentro dos vagões começava a se parecer mais como um forno. Muitos ressuscitados, principalmente os mais velhos, desmaiavam, outros começavam a apresentar problemas cognitivos. Ao saírem dos vagões, aqueles que ainda possuíam um resto de força, perambulavam cambaleantes. Pareciam mais zumbis do que seres que tiveram o privilégio de retornarem fortes à vida.

Como se não bastasse todo aquele sofrimento, outra fonte de perigo à espreita surgia. Grupos de arruaceiros. Especialistas em roubar e surrar pessoas comuns e ressuscitados. Com o surgimento dos ressurretos, e pela falta de leis disciplinadoras, poderiam externar os seus mais profundos recalques sem serem punidos.

Ao verem todos aqueles trens parados e ressuscitados próximos a vagar de um lado para o outro, decidiram entrar em ação. Alguns ressuscitados, por mera distração, acabaram se afastando demais dos vagões, permanecendo longe dos olhares atentos dos soldados. Estes talvez relaxassem, pois, sabiam que os “cordeirinhos” não ofereceriam resistência e atenderiam prontamente ao toque de recolher.

O grupo, constituído de vinte marginais, se espalhou. Três indivíduos, incluindo uma mulher, seguravam bastões de basebol. Sem dizerem absolutamente nada começaram a disferir pancadas. Não deixaram um único ressuscitado sem um golpe na barriga ou nas costas. Os outros focaram nas mulheres e crianças. Batiam neles até que perdessem parte dos membros ou membros inteiros. E apostavam quanto tempo levariam para regenerar. Os ressuscitados sentiam a mesma intensidade de dor que qualquer humano. Contudo, o consequente choque traumático não ocorria.

Num determinado momento, os gritos atraíram a atenção dos soldados. Cinco ressuscitados, um homem, uma mulher e três crianças, em questão de pouco tempo, foram horrivelmente mutilados. Os soldados, embora armados, não pareciam preocupados em capturar ou punir aqueles bandidos. Ao invés disso, interessavam-se em não perder nenhuma cabeça. Era como cuidar de gado cuja baixa de alguns poderia causar prejuízo ao fazendeiro. Recolheram todos nos vagões e os deixaram para cozinhar lá dentro. O grupo acabou dispersando com a promessa de que retornariam.

Como as dificuldades nunca ocorrem isoladamente surgiu um problema na locomotiva. O maquinista alertou que todos teriam que pernoitar ali mesmo. E para minimizarem o trabalho de vigilância, os ressuscitados deveriam permanecer trancados nos vagões. Pelo menos a noite trazia o frio que, para eles, era revigorante. Contudo, as gangues certamente não parariam.

De um dos lados do trilho havia um descampado que morria num horizonte estéril. Do outro, um barranco difícil de caminhar, pois, era bastante íngreme. Era exatamente pelo lado do barranco que a gangue iria preferir se esgueirar. E já se preparavam para lançar suas bombas incendiárias caseiras contra os vagões. Um rapaz, integrante da gangue, lançou a primeira bomba. Estava a cerca de um metro de distância da abertura do respiro de ar do terceiro vagão. Os ressuscitados dormiam quando foram despertados para o pior pesadelo que poderiam encontrar: o fogo. Vozes altearam e se transformaram em gritos. Homens e mulheres batiam e arranhavam as portas do vagão suplicando que abrissem. O crispar das chamas misturava-se ao barulho da agonia. Do lado de fora se via a incandescência das chamas e a fumaça.

Os soldados, confabulavam calmamente a decidir se abririam ou não. Acabaram por abrir as portas de todos os vagões para dar início a evacuação. No vagão incendiado, poucos foram os ressuscitados que sobreviveram. Pela primeira vez pôde-se ver o terror nos olhos daqueles seres. O calor e o cheiro eram terríveis. Crianças, homens e mulheres, jovens e idosos caíam desmaiados. Outros eram carbonizados. Poderiam estar a salvo se a porta tivesse sido aberta mais rapidamente.

Um ressuscitado caiu de joelhos e chorou. Um dos soldados se aproximou, encarou-o bem de frente e o reconheceu. Aquele tinha sido um assassino psicopata que havia matado várias mulheres há oito anos. O soldado, então, disse com um tom de esgar: – Quem diria; isso o deixa triste? Você sentiu o mesmo quando matou aquelas mulheres? – O ressuscitado permaneceu quieto. Temia as chamas que ainda queimavam ao redor, alimentadas pela gordura dos corpos de dezenas de corpos. Mas não disse uma só palavra. O silêncio foi tomado como um desafio pelo soldado que imediatamente chamou outros dois colegas. Fez um sinal com a cabeça e todos seguraram e ergueram o coitado. Então, um deles disse em voz alta, quase a gritar: – Agora sim você vai para onde merece: para o inferno. – E foi lançado às chamas. Depois de se debater em agonia, caiu e não mais se levantou.

Horas se passaram e todos os ressuscitados, visivelmente chocados, permaneceram calados. Apenas lágrimas escorriam pelas faces assustadas. A noite de pavor foi se despedindo dando lugar ao alvorecer que ressurgia fazendo o cinza frio da noite dissipar lentamente. Era hora de regressarem para os vagões e prosseguirem com a viagem. Os soldados deram ordens para se apressarem. Alguns deles teciam observações jocosas: – Agora já sabemos como vocês podem desaparecer. Não brinquem com a gente não, hem.

No relatório diário deveria constar qualquer tipo de intercorrência. No entanto, esta incumbência, conferida ao sargento, foi simplesmente negligenciada. Não houve nenhum registro. O trem prosseguiu. A temperatura interna dos vagões aumentava conforme a manhã avançava. O calor tornou-se insuportável, um verdadeiro inferno. A viagem mais parecia uma condenação à morte. E a sede sobreveio. Difícil de controlar. Alguns tiveram de beber a própria urina ou a de seus companheiros.

O trem, enfim, fez uma parada próxima a uma grande poça de água suja. Os ressuscitados à beira do desespero e quase enlouquecidos, saltaram dos vagões e lançaram-se na poça. Mergulhavam os rostos na água barrenta e disputavam por ela empurrando-se como animais. Uma criança, uma menina de oito anos, ficou privada de beber e ficou impaciente. Um oficial se aproximou com meio sorriso na cara. Uma mulher, para prevenir que algo ruim acontecesse com a garotinha, antecipou implorando para que o soldado não a machucasse. O oficial olhou fria e fixamente para a mulher e disse: – A criança não parece bem. Sou médico. Talvez possa ajudá-la a não sentir tanta sede. Mas vocês não são humanos de verdade. Vou ter que resolver isso de um outro jeito. – e golpeou a cabeça da menina com um soco que a fez cair desmaiada. O oficial, com ar de satisfação, pediu a um soldado para jogá-la em qualquer vagão e deu a ordem para prosseguirem. O destino já estava próximo. Enfim, a primeira transferência de ressuscitados seria completada.

A reserva estava situada numa espécie de tundra, local isolado de tudo, longe de qualquer centro populacional humano. As estruturas eram feitas de madeira, barracos, o que dava uma péssima impressão. Era um lugar monótono, porém, cercado por quatro torres de vigilância. Trens, cerca de quatro por dia, chegavam completamente lotados de novos ressuscitados, todos oriundos de diversas partes do país. Havia uma espécie de posto de policiamento especialmente concebido para, ironicamente, proteger os ressuscitados de qualquer tipo de ameaça.

Um dia bem cedo, o comandante da tropa de policiamento convocou um grupo de policiais e enfermeiras para receberem um dos trens. O intuito era se certificar de que todos estavam bem. O comandante não parecia familiarizado com a fisiologia dos ressuscitados. Vinte pessoas se apresentaram para a tarefa. Ele, na liderança, seguiu para a estação. A chegada do trem ocorreu dentro do tempo previsto. O primeiro vagão foi aberto. Uma enfermeira, ao sentir o cheiro, vomitou: – Devem estar todos doentes. – Observou o comandante. Para a surpresa do grupo, os ressuscitados desceram do vagão sem apresentarem nenhum sinal de enfermidade ou ferimentos.

O comandante, então, virou-se para a equipe e disse:

Isso só pode ser coisa do diabo mesmo. Como pode essa gente ficar no meio dessa imundice e permanecerem saudáveis?

Isso gerou dúvidas e um certo incômodo na equipe. Algo difícil de descrever. Uma das enfermeiras chegou a comentar:

Quem sabe eles sejam uma evolução de nós mesmos?

O comandante a fez calar com um simples olhar fulminante e ordenou que fizesse um relatório do que fora observado. Outros quatro soldados ficaram encarregados de levarem os ressuscitados a um enorme salão. Ordenaram que todos se despissem. A higienização era feita, não por causa deles, pois agora sabia-se que não necessitavam, mas para prevenir qualquer tipo de contágio aos humanos. Depois da ducha fria com substância bactericida, faziam-nos vestir uniformes pretos. Por quase três meses, a chegada massiva de ressuscitados aconteceu todos os dias. Trens mais e mais lotados. O local parecia uma cidade, cheia de gente pacífica e nitidamente perdidas. De tempo em tempo, as equipes de controle, policiamento e enfermagem eram substituídas.

Enquanto as medidas de isolamento dos ressuscitados prosseguia, no mundo exterior, o grupo dos vinte países mais poderosos do mundo iria se reunir novamente para apresentarem os dados econômicos do impacto da onda de ressurreição. O encontro se realizaria na Suíça, mas as ondas de protestos naquele país exigiram mudança de planos. Foi sugerida a transferência do encontro para o Brasil. E foi assim que ocorreu.

Ministros de finanças e chefes dos bancos centrais de vinte países de maior poder econômico se reuniram, enfim. Dentre eles: África do Sul, México, Argentina, Canadá, Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Austrália. Todos juntos, alarmados e decididos a encontrar uma solução definitiva para o problema. O presidente internacional da ACCR foi convocado para fazer a abertura da reunião com uma exposição sobre o panorama das ocorrências da ressurreição nos últimos seis meses.

Enquanto isso, pessoas se aglomeravam lá fora para protestar contra a reunião. Grupos gritavam para que os governos não interferissem nos desígnios de Deus. A gritaria e movimentação era inibida com jatos d’água e bombas de gás lacrimogênio. Jornalistas se acotovelavam. Alguns tentavam obter informações sobre a reunião e a respectiva pauta. Outros se misturavam à população. A situação piorou quando um dos que compunha o grupo radical antirressurreição bradou que o presidente internacional da ACCR tinha acabado de informar que o número de ressuscitados havia triplicado em apenas seis meses. O tumulto começou. Em meio à confusão formada, pude ver um jornalista entregar um pacote para um dos seguranças que caminhou apressadamente para o interior do prédio. O jornalista virou-se com leve sorriso e cruzou os braços.

Após três dias de tumulto, uma síntese da reunião foi publicada em todos os jornais do mundo. Os números não espelhavam um futuro promissor. O que se publicou logo depois foi que a indústria de transformação era pessimista diante da superpopulação mundial. Não se sabia onde e quando isso iria cessar. Os vinte países poderosos foram unânimes em afirmar que a desestabilização da economia iria elevar os juros devido à grande demanda.

Diante da previsão, o Brasil tomou medidas emergenciais para intensificar a produção agropecuária. Leis protecionistas de importação de produtos alimentícios de origem brasileira foram derrubadas em todos os países do mundo. No entanto, isso não promoveria isonomia econômica e os países importadores teriam de absorver os produtos brasileiros sem a garantia de que os preços permaneceriam estáveis. A situação macroeconômica mundial tendia a se tornar um pesadelo. Mesmo com mais incentivos ao custeio de produção, haveria racionamento em vários itens fundamentais da alimentação. Isso porque, em três anos, deveria ocorrer uma explosão demográfica que, de sete bilhões, saltaria para doze bilhões de habitantes no planeta. E não se sabia se este número continuaria crescendo.

Frente a isso, haveria necessidade de se aumentar os gastos para ampliar os investimentos tecnológicos. Principalmente na área de transgênicos. A manipulação genética de frutas e legumes seria imprescindível para se triplicar a produção de alimentos. Contudo, talvez não houvesse disponibilidade de verba suficiente para isso. O relatório da conferência dos vinte países mais poderosos concluiu que deverá ser decretado estado de alerta mundial. E que a onda de ressurreição deveria ser controlada de alguma forma, já que, tais indivíduos afetariam sobremaneira a demanda de alimentos básicos.

A conclusão do relatório foi divulgada pela mídia. A notícia se espalhou como vírus. Nas redes sociais era só o que se comentava. A informação produziu uma mobilização jamais vista dos grupos prós e contra ressurreição. Isso sem falar que muitos começaram a reforçar a hipótese de suicídio, pois, assim, retornariam melhores e mais fortes. Até a pena de morte passou a ser discutida como uma medida corretiva. Presos nos corredores da morte festejavam, pois, sabiam que logo retornariam livres. Clínicas e hospitais psiquiátricos entraram com processo junto ao conselho federal de medicina recomendando estudos experimentais com psicopatas. O sacrifício deles traria a cura para a tal disfunção cerebral. E isso era fato. Vários contraventores, assassinos e doentes mentais foram vistos novamente após terem ressuscitado, totalmente recuperados.

Um importante programa de entretenimento na TV, apresentado por um transexual, Liete Freire, deu um especial enfoque ao assunto suicídio, o que provocou uma onda de mortes jamais vista antes. A transcrição do trecho de seu programa dizia o seguinte:

Boa noite, queridas e queridos. Hoje o tema é: A forma mais gostosa de cometer suicídio. Isso mesmo, quem diria que este assunto ia se tornar algo prazeroso. Gente, olha, eu fico parada com as notícias que a gente vê por aí, principalmente agora com essa estória de todo mundo querer morrer pra voltar melhor. Isso parece mais piada do que qualquer outra coisa. Mas é verdade. O mundo ficou diferente. Só que não dá pra morrer de qualquer jeito. Tem que se ter classe, estilo, ora essa.

Não sei se vocês viram, mas esse babado de ressurreição tá aumentando. Onde nós vamos botar toda essa gente? Só se for dentro dos armários de casa, debaixo da cama, dentro da geladeira…. Que loucura! Vocês viram como eles retornam bonitinhos, comportadinhos, todos diferentes? Fofíssimos! Bonzinhos demais pro meu gosto. E tem gente que agora quer se matar pra voltar assim. Confesso que tem lá suas vantagens. Você não fica doente. Isso já o máximo. O problema é que o pessoal não sabe fazer as coisas. Faz escândalo pra se matar. Precisa ter classe até pra isso, gente. Mas, enfim, morrer antes da hora tá virando moda. Sim, porque é uma opção pessoal, a vida é sua, a morte também e ninguém tem nada a ver com isso. Não, gente, não estou falando daqueles bonitinhos que falam que vão se matar só pra chamar a atenção. Não; falo daqueles que têm pulso firme.

Só que tem aqueles que não conseguem se matar discretamente. Tem que causar polêmica. Cada tiro um flash. Sabe aquele negócio: “Quero virar estrela daquele telejornal.” Outro dia teve uma maluca que subiu no poste de alta tensão e, é claro, sacudiu o sutiã até ficar torradinha. Dá pra aceita isso, gente?

Ah, pelo amor de Deus, quer se matar, faça de um jeito elegante. Vou ensinar vocês. É claro que nunca usei o método, mas é assim: Primeiro você tem que decidir se matar. Não fique falando pra todo mundo. Isso é que nem ir ao banheiro, é algo pessoal e intransferível. Junte seus motivos. Sei lá, por exemplo: meu amor me deu um pé… Ou a vida não presta… Qualquer coisa que o valha. Segundo o jeito certo de fazer isso. Tem que ser com estilo. Essa coisa de cortar os pulsos não funciona. Só serve pra fazer sujeira e chamar a atenção. Não, não é assim. Tem que ser rápido e limpo. Essa coisa de pular de prédio já era… Totalmente fora de moda. Outro dia fiquei sabendo de um rapaz que se jogou do sexto andar de um prédio. Não é que o maldito caiu na piscina! Quando ele acordou, começou a culpar todo mundo que estava à sua volta. Ele dizia que ele tinha sido empurrado pela janela. Piradinho.

Tenho uma ideia melhor: Pegue um tufo de algodão, ensope ele de éter e coloque entre dois travesseiros. Aí você coloca o nariz bem lá no meio. Pronto! Você morre sem escândalo de parada cardíaca. Viu? Com estilo, meu bem. Agora, veja se antes disso você passa um perfuminho um batom, se produza um pouco para o grand finale.

Tomar excesso de remédio, produtinho de limpeza, isso é coisa de gente baixa. Não faça isso. Morra com dignidade. Mas a coisa não para por aí não. Terceiro: agora que você já conhece o método, você tem que decidir quando se matar. Olha aqui, meu querido alterado, que seja em um dia útil. Não faça isso em feriados. Principalmente naqueles prolongados. Aí vão demorar pra te achar, e já viu, o cheirinho é péssimo. Ninguém merece, né. Por favor. O amanhecer é legal. Bem romântico, dramático. Desse jeito você não estraga o cenário.

Quarto e último passo: despeça-se com uma cartinha bem melosa. E não se esqueça de dizer que a vida continua e toda essa baboseira. Viu como é fácil? Agora é só respirar fundo e virar purpurina. Adorei! Um beijo a todos, meus queridos.”

Programas de TV como esse começaram a fazer sucesso. Todos a fornecer receitas alegres e descontraídas de como se suicidar. Em seguida, outro fenômeno comportamental foi deflagrado. O suicídio grupal. O assunto tomou conta dos jornais. O que mais chocou foi a notícia de duzentas e trinta e cinco pessoas mortas que foram encontradas pelas tropas da ACCR. No local, vivia uma comunidade que pertencia à seita Além Céu. Causa da morte: envenenamento.

Pelo que se sabe, os integrantes da seita alegavam que a ressurreição seria um presente de Deus a eles. Testemunhas não convertidas, mas frequentadoras da seita, eram convencidas de que a morte voluntária e a prova incontestável da ressurreição seriam um aviso de que eles deveriam retornar melhores, passar pela transformação para tornar o planeta um paraíso. Portanto, algo que implicaria em auto sacrifício. O suicídio coletivo ocorrido na região de São Tomé das Letras foi mais um entre dezenas que estavam ocorrendo em todo o mundo

A seita Além Céu surgiu no Brasil e misturava fanatismo, misticismo com fé religiosa. Expandiu por todo o país. A pregação em tom de promessa atraía pessoas de baixa renda, ativistas sociais, desempregados e drogados que tinham que doar todos os seus bens para a suposta causa. No corpo do líder da seita havia uma frase tatuada: “Credes em mim e serás salvo”.

Notícias como essa eram publicadas todos os dias nos jornais. E a sociedade mergulhava mais profundamente no caos, não só no caos psicológico e comportamental, mas no caos econômico também.

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