As Nações Unidas se manifestam
O mundo agitou depois do relatório dos G vinte. O incômodo gerado fez as Nações Unidas se pronunciarem. Embora o termo “crise econômica” não fosse apropriado, exatamente por tratar-se mais de uma mudança existencial, ninguém estava mesmo preparado para lidar com a ausência da morte. Ainda não havia nenhum tipo de lei que regulamentasse a ressurreição. As pessoas normais, as mortais, queriam, desejavam ter o direito de não serem invadidas por uma anomalia que mais causava tragédias do que a ampliação na forma de se encarar a vida.
Os governos, no fundo, pareciam não se importar verdadeiramente com o caos psicológico da população, muito embora obviamente soubessem que a sociedade estava profundamente abalada. O interesse dos políticos era simplesmente econômico. Foi quando as Nações Unidas se manifestaram. A princípio, os jornalistas esperavam que uma solução definitiva fosse apresentada. Durante uma coletiva com o porta-voz da ONU, ao ser interpelado sobre o impacto diante do acontecimento sobrenatural, ele não conseguiu se sair bem. Simplesmente não forneceu qualquer explicação que pudesse clarear a situação obscura que o mundo atravessava. Absolutamente nada além daquilo que todos já sabiam. A única coisa dita é que necessitaria de mais tempo para coligir informações adicionais. Só assim uma decisão mais acertada poderia ser tomada. Enquanto isso, o mundo deveria lidar com ações paliativas. Isso gerou a fúria dos jornalistas presentes. O mundo precisava de respostas.
Segundo o porta-voz da ONU, o primeiro projeto, o de concentrar ressuscitados numa reserva, uma espécie de entreposto de corpos, certamente auxiliaria no controle, além de prever estatisticamente a que ponto isso chegaria. E de fato, ajudaria a compreender o comportamento de tais indivíduos. Assim, seria possível aprender como conter o surgimento espontâneo. Ele esperava que, com tais argumentos, pudesse acalmar os ânimos naquele momento:
“Temos de lidar com algo que mais parece uma praga.” – Deixou escapar no final da coletiva. E por isso, foi duramente criticado pela população defensora dos ressuscitados. Mas ao final, arrematou que não haveria motivos para tanto nervosismo, já que o costume é morrer de verdade, e que isso seria restabelecido em breve: “Se Deus quiser.” – Completou.
Segundos antes do encerramento da coletiva, um jornalista, ávido por cumprir suas obrigações profissionais, fez uma última pergunta que pegou o representante das Nações Unidas no contrapé:
—Senhor, caso qualquer estratégia seja estabelecida para controlar a demanda populacional, qual seria o destino da humanidade?
—Teremos de aceitar e nos adaptar ao conceito da imortalidade do corpo. Se essa é a vontade de Deus, quem somos nós para contrariá-Lo?
Uma resposta descaradamente evasiva. Mas o jornalista não se convenceu:
—O senhor certamente sabe, pois, já é de conhecimento das Nações Unidas, de atos de agressões e torturas contra os ressuscitados. Se isso é obra divina, não deveríamos respeitá-los? Não deveria existir um conjunto de leis que os protejam?
Com o suor brotando da testa, o porta-voz respondeu:
—Acredito que sejam apenas boatos para colocar em dúvida a boa reputação da ACCR que, aliás, vem prestando um ótimo serviço aos ressuscitados e seus familiares. Prezamos pela qualidade de atendimento que é a mesma em todo o mundo. Até hoje, disso tenho certeza, nunca recebemos nenhum relatório que apontasse o contrário. Desculpem. Tenho um compromisso importante.
E saiu sob uma saraivada de perguntas que jamais seriam respondidas. No dia seguinte, uma notícia bombástica repercutiu no país. Um jornal de grande repercussão internacional publicou que as Nações Unidas escondiam um projeto proposto pela ACCR – Argentina. O projeto fora apresentado no dia da conferência, mas fora entregue fora do protocolo formal. Segundo o informante que não quis se identificar, o projeto previa a formação de uma colônia mundial, uma espécie de reserva retirada da civilização humana onde concentraria ressuscitados de todo o mundo. Contudo, o local ainda deveria ser definido ou não poderia ser divulgado.
Isso causou um movimento de revolta, protestos e especulações. O povo nas ruas reclamava:
“Lá se vai mais dinheiro para esses caras e nós aqui, morrendo de fome.”
Jornais de todo o Brasil, deram pouca credibilidade ao noticiado, pois não se tratava de novidade. Isso já havia sido proposto anteriormente pelo político brasileiro Orozimbo Dias e foi do projeto brasileiro que a reserva intermediária fora construída no rio Grande do Sul. Mas o questionamento permanecia: Por que somente um jornal brasileiro teria acessado esta informação? E quem seria o informante? Mas o assunto caiu como mamão com açúcar em várias revistas e programas de TV. Todos passaram a alegar que o projeto brasileiro, proposto por Orozimbo Dias, tinha sido plagiado pelos argentinos. Tal alegação sacou dos redatores e pauteiros, títulos dramáticos para incrementar ainda mais a disputa pelo louro de um plano que nem se sabia se funcionaria.
Algo incrível, mas real, aconteceu em decorrência de tal notícia. As pessoas estavam se convencendo de que era mais difícil sobreviver do que morrer, pois, a morte perdera o seu poder. O anjo ceifador não era mais tão assombroso. No entanto, o apego parecia ter substituído, e muito bem, o incômodo da travessia final.
As igrejas, com a ideia de enviar fulano para o paraíso e sicrano para o inferno, também se tornaram impotentes. Parece que o destino final era aqui mesmo. Finalmente tinha-se vencido o berço de todos os medos: a morte. Mas o sentimento de felicidade, que deveria suplantar a agonia existencial, fora logo abatido pelo medo de passar necessidade, enquanto a viagem de ida e volta não ocorresse. E por que, então, proteger os ressuscitados sendo que os humanos estão aqui antes deles? Teriam todos que se matar para adquirir privilégios? E se a tal reserva fosse um local estratégico para se criar um plano de conquista mundial? Quem irá sustentá-los? Eles não trabalham, não produzem nada. Será que os humanos seriam feitos escravos para trabalhar para eles? Mas são como cordeiros, nem sequer reagem! São torturados e nem agridem, nem falam mal. Isso é não ter amor-próprio. Morrer para voltar assim?
Esse era o questionamento que circulava em todas as redes sociais do país e do mundo. Um incômodo que não se calaria e fomentava ainda mais o movimento antirressurreição que ficava mais organizado e agressivo. Havia o receio de que os ressurgidos das trevas (eram assim agora classificados) chegariam ao ponto de dominar o mundo e que os humanos seriam motivo de chacota e usados para interesses espúrios.
A notícia sobre a reserva mundial ganhou força. Era só o que se comentava. Estranhamente, pouco tempo depois, outro fato ganhou destaque. Diretores e administradores de hospitais públicos e privados passaram a receber propinas para acelerarem a morte de pacientes internados. Para não serem pegos, ao invés de utilizarem medicamentos específicos para causarem paradas cardíacas, os médicos, durante as cirurgias, cuspiam dentro dos pacientes abertos para causar infecção generalizada. A morte sobreviria naturalmente após alguns dias de agonia. A quantia podia variar de vinte a cento e cinquenta mil reais. Enfermeiras aproveitaram para agir de forma independente, com outros métodos, e pela metade do valor. A justiça ficou abarrotada de processos, porém, tais carrascos de branco eram acobertados pelos próprios familiares das vítimas. Os processos acabavam sendo arquivados. Para acabar com o mercado paralelo de mortes encomendadas, a ressurreição começou a ser encarada como um possível procedimento de cura, cuja promessa seria transformá-la numa espécie de disciplina médica. Caso o conselho médico aprovasse o procedimento, os valores deveriam ser cobrados à parte do convênio. E demoraria algum tempo até ser implantado no sistema único de saúde.
Enfim, a proposta foi encaminhada ao Ministério da Saúde que enfrentava problemas quanto a solicitações de melhoria na rotatividade dos doentes internados. A proposta caiu como uma luva, pois, esta poderia ser a solução definitiva. Não haveria mais pacientes em fila de espera nos corredores. A autorização da proposta dependeria da aprovação presidencial.
Enquanto isso, as casas de repouso agiam de maneira duvidosa. Para os familiares, as instituições afirmavam seguir os protocolos tradicionais de amparo e cuidados ao idoso. Mas a realidade era outra. Cumpriam o que achavam que era a lei divina. Diante de muito sofrimento e indignação, pois alguns idosos sequer tinham a capacidade de manterem-se limpos, eram sacrificados na calada da noite enquanto dormiam. Tudo em nome de um bem maior. A direção, conselho psiquiátrico e funcionários dos asilos compunham um grupo coeso que acreditavam que, se assim o fizessem, os velhos retornariam melhores e saudáveis para o seio familiar. Enfim, antes um lugar para acolher o ser amado e cuidá-lo até sua passagem, agora um local de execução assistida.
A revolta se intensificava. O movimento antirressurreição crescia e se organizava. E mais uma vez o porta-voz das Nações Unidas veio a público pedir para que o mundo se mantivesse unido e firme, pois, tudo estaria sob controle em pouco tempo.
“Não há motivos para alardes” – Disse de maneira enfática. No entanto, não era isso que o Brasil vivenciava. Para sentir-se seguro, o povo elegeu um líder nacional. Tinha um perfil carismático, articulado, desejoso por reformas rápidas. Sua liderança se firmou a partir do momento em que, o estranho fenômeno tomou proporções gigantescas, sua voz encarnava os anseios mais imediatos. Foi em meio ao movimento que ele faria solidificar a ideia daquilo que aspiravam: a formação de um partido político. E foi de dentro desse movimento que seu nome emergiu para uma vida política promissora, contradizendo várias expectativas, algumas até apostando que o movimento poderia esgotar-se em si mesmo. As manifestações passaram a ganhar contornos imprevistos. De puramente reivindicatórios para o terreno em que se enraíza a própria estrutura de poder. Seu nome já passava a incomodar os partidos tradicionais. Um homem que certamente seria lembrado, mas não pelas suas boas realizações: Orozimbo Dias.
Mas o alto escalão da política ainda não se prestava a conhecer tal figura. A preocupação era outra. Cogitava-se apenas que depois da transferência dos ressuscitados para a região sul do país, o patrulhamento da ACCR, por algum motivo, diminuiu em alguns cemitérios. Os maiores e ainda mais ocupados permaneciam sob constante vigilância. Porém, outros menores, localizados nas periferias, eram pouco guardados. Vez ou outra, a patrulha montava guarda por um curto período de tempo. Assim a brecha se abria para que o movimento antirressurreição aproveitasse para exercitar suas crenças e perversidades.
Um dia anterior a um dos mais severos atos de vandalismo cometido a um cemitério, o líder Orozimbo discursou. Reuniu mais de duas mil pessoas ao redor de um palanque montado às pressas. Foi enfático ao dizer que os ressuscitados estavam armando um complô mundial, silencioso, cujo objetivo era acabar com as religiões, e não só isso: de maneira indiscriminada, esgotariam todas as reservas do planeta. O que antes era uma possibilidade, agora estava se tornando um pesadelo real. Sim, pois, segundo ele, a história humana fora forjada com o suor de pessoas que lutaram para alcançar o que fora alcançado até então. “Até isso esses malditos mortos-vivos enviados do inferno querem roubar dos humanos.” – Era o que pronunciava constantemente em seus discursos. E era ouvido com muita atenção. Todos, numa só voz, concordavam com aquelas palavras sem base de conhecimento profundo.
Depois de uma hora, o grupo, já bastante insuflado pelo medo e pela ânsia de vingança, invadiu o cemitério adentro e queimaram tudo, até o solo, expondo cadáveres em chamas. Os mortos naquele dia não puderam ser sepultados, ao passo que gangues de aproveitadores arrebanharam um grande número de pessoas para investirem contra os próprios ressuscitados. Enfim, o cemitério acabou destruído e por ele vagavam os vivos, aqueles que acreditavam na graça divina, a orar pedindo a Deus que os livrassem do mal.
Vários outros cemitérios foram destruídos. Os mortos ficaram sem local para descansarem. Ao mesmo tempo acabavam privados da possibilidade do respectivo retorno à vida. Diante de tal fato, soube-se de uma moça que teve uma ideia inusitada. Seu pai se encontrava enfermo. A família não sabia mais o que fazer. Todos os recursos médicos já haviam sido utilizados sem sucesso. Até um padre fora chamado para a extrema-unção. “Estamos todos sob o olhar do Senhor e que Ele tenha piedade de nós”. – Palavras do padre. Contudo, a moça enxergava a possibilidade de o pai retornar. Sempre fora um homem caseiro e um marido exemplar. Todos o amavam. Alguém que valeria a pena ressuscitar. Porém, temiam que os grupos de extermínio o perseguissem, bem como a família. O velho já muito debilitado, só queria que seu fim chegasse logo. Não aguentava mais aquele martírio. Foi então que a filha teve a ideia de levá-lo para o sul do país, para a reserva. Ele não teria muito tempo. Quem sabe morresse pelo caminho e ali perto fosse enterrado. O corpo só precisava permanecer em local seguro por sete anos, tempo em que a sua ressurreição aconteceria. Apesar do raciocínio lógico, o sentimento da perda lhe batia forte. Muito pensou até que ela, depois do consentimento de todos os familiares, não demorou em arrumar as coisas. Ele não precisaria de bagagem. Ela, apenas uma muda de roupa. O difícil foi convencer o velho. Disse-lhe que iria levá-lo a um passeio, para um lugar bonito onde poderia descansar. Mas o velho desconfiou. Fraco daquele jeito para onde poderia ser levado? Era o que indagava repetidamente. As respostas eram vagas. “Vai ser bom para o senhor.” Era o que reforçavam. Até que, a contragosto, concordou. Antes de partirem, familiares, noras, netos e amigos o abraçaram. Muitas lágrimas rolaram daquelas faces que o viam pela última vez.
—Antes de sairmos, o senhor gostaria de um pouco d’água? – Perguntou a filha com voz embargada.
— Não, filha. Eu só quero ficar em paz e sem dor. – Respondeu com voz fraca seguida de um profundo suspiro.
—Está bem, papai. Então já podemos ir. A viagem será um pouquinho longa. Fique calmo senão a febre sobe. – Recomendou a filha toda atrapalhada com as chaves do carro a sacolejarem na mão.
Antes de dar a partida no seu antigo fusca vinho o velho fez questão de pedir para puxar o banco totalmente para trás. Fez um sinal à filha para que o fizesse. Sentou-se, então, e fez um outro sinal, pois, queria lhe dizer algo:
—Pois não, pai. Quer me falar alguma coisa? – Então o velho sussurrou-lhe ao ouvido. A moça arregalou os olhos. Parecia espantada com o que ouvira. Fez que não com a cabeça, olhou de um lado e do outro para ter certeza de que ninguém ouvira aquilo e perplexa, balbuciou empalidecida:
—Nã-não, papai. Não posso. Nunca prometeria isso ao senhor. Isso nunca.
Por um instante ela tentou raciocinar, mas a confusão mental era maior:
—Filha – prosseguiu ele – não vou resistir por tanto tempo. – A moça, com os olhos cheios de lágrimas e quase a ponto de desistir, deu a partida e arrancou.
Por muito tempo os dois não se falaram. Ela sequer o olhava diretamente. O velho dormia e de vez em quando acordava. Dizia coisas ininteligíveis e voltava a dormir. O típico sono que precede a morte. E a moça só chorava:
—Não acredito que ele me pediu uma coisa dessas. Não é possível. De jeito nenhum. Por que eu? Justo eu? Só ia deixá-lo lá. Mas isso que me pede…. Isso não.
Já era quase meia noite quando a moça decidiu parar em um motel à beira da estrada. Ela teve dificuldades para retirar o pai de dentro do carro. Apesar de bastante debilitado, era um homem de compleição forte. Após grande esforço, conseguiu conduzi-lo até o quarto. Deitou-o na cama e logo adormeceu novamente.
A moça, ao contrário, passou a noite em claro, aterrorizada caso tivesse de atender o último pedido do pai. A noite passou e depois de somente alguns minutos de sono, resolveu partir. O dia clareava. A estrada estava livre, bem tranquila. O velho, trêmulo e bastante fraco, voltou-se para a filha e perguntou:
—Pensou bem? Por favor, me ajude. Vai ser rápido.
—O senhor viu como as pessoas o consideram? O senhor tem ideia de como minha cabeça ficaria depois que eu fizesse o que me pede? É um absurdo! Sua nora nem quis se despedir e correu para o quarto chorar. Isso é sinal de que todos gostam muito do senhor. Nunca me perdoariam.
—Vocês pretendiam me deixar lá mesmo.
—Não é assim. Eu o levaria e ficaria com o senhor o tempo que fosse necessário. Nunca o deixaria sozinho.
—Filha, ninguém precisa saber. Será um segredo nosso. Meu último pedido.
E a moça calou-se. As lágrimas brotaram-lhe aos olhos e sem poder contê-las, acabaram por deslizarem pela face constrangida. Mas continuou calada em profunda dor.
—Não queria vê-lo assim. A que ponto chegamos, meu Deus! A viagem vai demorar. Como vou lidar com isso que me pede? Acho impossível. Matá-lo? Que filha que ama o pai faria isso? —Disse para si aflitivamente.
Às vezes a moça lançava um rápido olhar para observá-lo enquanto dormia. Desejava-o morto para não ter de passar por essa tristeza. Mas o pesadelo estava só começando. A tortura interna permaneceu por mais um dia. Rápidas paradas para reabastecer e esticar as pernas prolongavam a agonia. Apenas uma cochilada e outra à beira da estrada. A lua decrescente marcava o céu. Mais adiante a placa de “Bem-vindo ao Rio Grande do Sul” refletia a luz do farol. A viagem estava quase ao fim e o aperto no coração da filha era maior.
Cerca de dez quilômetros, outra placa indicava a direção da reserva. “Estamos chegando, meu Deus, e agora?” Pensou. Tocou o rosto do pai que dormia profundamente como um gesto de despedida. Mas ele permaneceu inerte. Ao longe, era possível distinguir as luzes da reserva. Acordou o pai, mas antes que ela dissesse alguma coisa ele antecipou-se pedindo:
—Pare o carro, filha.
—Agora? Estamos quase lá.
—Pare, por favor.
—Não, não. Esqueça isso. Isso não.
—Já é hora. Não existe outro lugar melhor que este.
Ela continuou por mais cem metros e parou. O velho tirou de dentro de seu casaco uma pistola e entregou à filha. Com terror nos olhos e trêmula, segurou-a. Confusa e com voz abafada pelo pânico, ouviu o pai dizer-lhe:
—Se tivesse forças eu mesmo faria isso.
O velho, então, saiu com dificuldades do carro e caminhou oscilante até à beira da mata. Depois retornou para perto do carro. A noite estava mais escura do que jamais tinha visto em sua vida.
—Filhinha, – ela ainda estava dentro do carro paralisada – faça isso sem pensar. Depois me enterre um pouco mais lá pra dentro da mata. Ninguém achará meu corpo aqui.
—Não posso, pai. Por que me pede isso? – Disse a filha chorando com uma das mãos a cobrir o rosto e a outra a segurar a arma.
—Pode sim. Será um presente.
—Presente! Desde quando matar o próprio pai é um presente?
—Você não me dará a morte, mas a imortalidade. Afinal, voltarei daqui a sete anos. Você só estará um pouquinho mais velha. Quem sabe possamos comemorar juntos seu aniversário de trinta e dois anos. Filha, vamos logo com isso. Não suporto mais as dores.
A moça saiu relutante do carro. Chorava muito a ponto de soluçar, até que o pai a agarrou pelo braço e disse:
—Vai. – Segurou o cano da arma e colocou-a na testa. – Agora aperte o gatilho. – Ela fez um gesto de rechaço, mas ele a conteve. – Não vai doer nada. A agonia que eu sinto é muito pior.
O som do tiro ecoou. Depois veio o baque surdo no chão e o silêncio denso. A moça permaneceu parada. Estava feito. Ela não pensou em mais nada. Segurou o pai nos braços e o arrastou mata adentro. Cavou rapidamente uma cova rasa e colocou-o lá dentro de maneira bem cuidadosa. Beijou-lhe a mão e disse:
—Vejo você em breve.
Chorando, cobriu o corpo e partiu na esperança de que ele revivesse e permanecesse seguro na reserva. Esse relato foi encontrado num bloco velho de anotações, quem sabe o primeiro caso do que viria a ser a mania mundial: filhos que matam os pais.
Como antes relatado, as pessoas passaram a não mais sepultar seus mortos em cemitérios. Os cadáveres agora eram enterrados em qualquer lugar longe dos olhos dos agentes da ACCR: quintais, praças, florestas, sob pisos dentro das casas, qualquer lugar. Tudo para assegurar uma ressurreição tranquila especialmente longe das gangues.
No entanto, isso dificultava sobremaneira a ação de controle da ACCR, pois a agência não tinha autorização para invadir casas e nem possuía contingente suficiente para rastrear corpos em florestas. Além disso, outras situações mais estranhas começaram a surgir. Uma delas bastante inesperada segundo o relato recebido há pouco. Vale a pena dizer que se trata de uma situação que se reproduziu de maneira viral. Espalhou-se pela internet graças ao registro captado em vídeo. Até mesmo o presidente da ACCR se pronunciou quanto ao que viu.
Foi numa tarde de sábado. Um jovem acabara de ressuscitar. Caminhava pela praça do interior do estado de São Paulo. Um grupo radical antirressurreição o viu. Os membros da gangue o cercaram com pedaços de pau nas mãos, correntes e cabos de aço. No entanto, antes de partirem para o ataque, foram interceptados por agentes da ACCR. Um deles segurou o rapaz ressurgido pelo braço. Pela primeira vez já registrada, ele fez um gesto brusco para que o largasse. Pronunciou a palavra “Não.” Isso incendiou a gangue espectadora que já queria partir para o ataque. Os agentes os contiveram. Mas o rapaz era forte e dois outros agentes tiveram trabalho para contê-lo enquanto se debatia.
Depois de cercado e imobilizado, o rapaz foi conduzido para a área de transferência onde aguardaria o próximo trem para a reserva do Rio Grande do Sul. Entretanto, a gangue postou na internet um vídeo forjado, uma montagem tosca, aliás, cuja tônica era intensificar a ação do ressuscitado contra os agentes como se eles tivessem sido atacados e quase subjugados. Um dos membros da gangue aparecia ao lado instigando as pessoas a se precaverem, e que, aquilo servisse de exemplo para que as gangues se unissem e liquidassem aqueles seres do inferno, caso contrário, toda a humanidade correria riscos. No final, um letreiro dizia:
“Ou nós ou eles.”
Milhares de pessoas acessaram o vídeo. Centenas comentavam que estavam indignadas, outras, muito assustadas. O presidente da ACCR, numa entrevista à TV Globo disse que aquele era um caso isolado, mas chamava-lhe a atenção para a possibilidade de se conter possíveis manifestações dos ressuscitados. Atônito com a colocação, o jornalista fez a seguinte observação:
—O senhor acabou de assistir o vídeo e diz que não há razões para se preocupar? Acha mesmo que não deveríamos nos preocupar? Pois, eu já me preocupo. Estive pessoalmente na última reunião dos G vinte. O contato que nos presta serviços forneceu um outro vídeo que mostra claramente ressuscitados agrupando-se para proteger uma criança. Eles foram espancados pela tropa da ACCR. É do seu conhecimento isso?
O presidente da ACCR, um tanto constrangido respondeu que não. O jornalista prosseguiu:
—Então permita-me exibi-lo.
As imagens iniciavam com uma criança, uma menina de aproximadamente onze anos. Caminhava juntamente com outros ressuscitados pela rua. Apesar do semblante tranquilo, parecia perdida. Um soldado se aproximou e empurrou-a violentamente usando a coronha de seu fuzil. A menina caiu. Os ressuscitados subitamente pararam e em seguida, cerca de vinte deles se agruparam em torno dela. Ao perceber a aglomeração, um dos soldados acionou o rádio para chamar reforço. Temendo que fosse um tipo de resistência, o soldado aguardou o grupo chegar. Os ressuscitados permaneceram ali, todo o tempo, a proteger a garota. Nenhum deles disse uma palavra. Quando o reforço, enfim, chegou o sargento se aproximou e questionou um dos ressuscitados sobre o que estavam fazendo. O rapaz o olhou fixamente nos olhos e não respondeu. O sargento, então, sacou a pistola e golpeou-o na cabeça. Com a violência do impacto o rapaz caiu, e com dificuldade tentou se reerguer.
A tropa começou a bradar seu canto de guerra e, com escudos erguidos e cassetetes em punho, partiram em direção aos ressuscitados. Foi uma verdadeira carnificina. Contudo, mesmo feridos e cambaleantes, permaneceram em seus lugares a protegerem a menina.
O vídeo termina subitamente. E com silêncio e olhar inquiridor o jornalista volta-se para o presidente que diz:
—Bem, percebo que isso merece uma análise acurada, pois…
—Presidente, sem querer interromper, o senhor não acha que corremos risco de algum tipo de manifestação ou, quem sabe, uma revolução por parte desses seres tão diferentes? O senhor mesmo viu que apesar de não reagirem, eles se mostram fortes.
—Na verdade eu acredito que…
—Presidente, isso não seria uma demonstração de um ato de desobediência civil?
—É notório, pelo vídeo que acabamos de assistir, que existe uma tentativa de organização. No entanto, não creio que possamos caracterizar tal atitude como uma desobediência civil. Isso só cabe a quem está vivo.
—O senhor acredita que estes ressuscitados poderiam um dia se organizar? Se sim, não estaríamos correndo um risco considerável, já que a população de ressurretos continua a crescer e que a ACCR perdeu o controle total?
—Não, veja bem: A ACCR não perdeu o controle. Estamos agora em vias de desenvolver um projeto de estudo comportamental. Queremos entender como eles pensam e como se organizam. Estamos contratando um especialista para observá-los de perto. A conclusão do estudo nos dirá se corremos perigo e quais as providências a serem tomadas.
—O mundo espera que sim, presidente. Para o nosso próprio bem. É assustador saber que podemos ser dominados por seres que, apesar de terem sido como nós um dia, agora emergem da morte com características tão singulares. Bem, agradeço seus comentários, presidente.
E a entrevista foi encerrada, o que causou mais polêmica do que esclarecimento. Isso inflamou o movimento antirressurreição. As igrejas e grupos de proteção perdiam a força. Agora tinham medo de se pronunciarem. Temiam retaliações. O máximo que podiam fazer era garantir que novos ressuscitados chegassem à reserva. Depois lavariam as mãos de qualquer responsabilidade.
No entanto, os ataques dos grupos locais se intensificaram. As reservas do mundo tornaram-se os alvos, muito embora o patrulhamento da ACCR tenha se intensificado. Grupos de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba realizaram ataques sincronizados à reserva do Rio Grande do Sul. Foram encontrados automóveis lotados de armas. Estavam estacionados próximos ao perímetro da reserva. Rifles de longo alcance também seriam usados. Alguns deles equipados com miras telescópicas. Disparos foram ouvidos no local.
A situação política local do estado seguiu caótica diante da situação. Desde o dia em que a reserva iniciou suas atividades, os ataques se tornaram frequentes. Investigadores do serviço secreto de inteligência descobriram que os ataques são organizados e programados via internet. Foram fechados mais de vinte microblogs que explicitavam ações contra a reserva. Foi a maior operação interventiva contra a rede. Sessenta pessoas foram presas e logo liberadas pela ausência de leis que pudessem condená-los.
A ação também afetou blogs populares que teriam suas informações vigiadas vinte e quatro horas. Comentários que pudessem remeter ao assunto ressurreição eram interceptados e bloqueados. A estratégia dos ataques ocorridos pelos grupos dos três principais estados circulara dias antes por vários outros blogs, inclusive internacionais. Segundo a agência de inteligência responsável por vigiar os conteúdos on-line no Brasil, os rumores antirressurreição são uma péssima influência para o público em geral. E estratégias de ataques não eram só o que eram veiculados, mas também contrabando de armas, tráfico de drogas e a venda de órgãos extraídos de ressuscitados, o qual se tornou um mercado até mais lucrativo que a cocaína.
Não se sabe até agora o porquê nenhum governo propôs medidas para punir severamente pessoas que exploram os ressuscitados. Nada foi feito até agora. Prova disso foi o fato ocorrido há poucas semanas quando uma decisão polêmica do supremo tribunal de justiça liberou um homem acusado de raptar e violentar diversas vezes duas meninas ressuscitadas com idade aparente de treze anos.
O tribunal decidiu que ele era inocente, pois, as vítimas já estavam legalmente mortas. Sua pena seria apenas um tratamento psiquiátrico previsto pelo código penal (artigo 91). Para a lei elas simplesmente não mais existiam. O código penal prevê que a prática de sexo com menores de quatorze anos, mesmo quando consensual, é considerado estupro. Porém, neste caso ressuscitados são considerados anomalia não prevista em lei. Pior mesmo, é profanar uma sepultura; aí sim, reclusão de três anos e multa. Grupos de proteção e religiosos se manifestaram a respeito. O cardeal Dom Lourenço de Paiva foi duro ao dizer que isso não é uma questão de lei, mas de humanidade. Já o promotor criminal, contrariando a ética profissional, sentiu-se constrangido com a decisão, e disse que os ingênuos e puros é que são punidos (ele se referia às vítimas): “O esperto sempre escapa das leis capengas de nosso país.”
O advogado de defesa, eleito pelo estado para proteger as duas adolescentes ressuscitadas expressou seu descontentamento numa coletiva de imprensa:
—Meninas de treze anos, ressurgidas da morte, foram reduzidas a menos que simples objetos, e continuarão nas garras desse psicopata. Se ele fez isso uma vez, certamente fará outras vezes. Ora, o juiz deveria considerar como vilipendia a cadáver. O problema é que elas estão vivas e não estão. E nem se sentiram vilipendiadas, desrespeitadas ou ofendidas. Elas nem acusam o agressor. Seria crime contemplado no Código Penal Brasileiro: Art. 212. Vilipendiar cadáver ou suas cinzas: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Mas não deu em nada infelizmente.
O caos social só piorava a cada dia. O movimento dos sem-terra protestou em Brasília sobre o assentamento dos ressuscitados em área que poderia abrigar milhares deles e que a anos lutavam para isso. “Por que tudo pra eles e para nós nada?” – Questionavam.
A situação tomou um corpo maior quando a área de uma fazenda em Goiás conseguiu por meio de uma liminar, expulsar um grupo de sem terras. Cinquenta famílias ficaram acampadas na beira da estrada sem terem para onde ir. O líder do movimento alegou que o governo privilegia os ressuscitados e solapa gente de verdade, gente humilde que só quer trabalhar.
O prefeito da cidade disse que iria realocar as famílias, mas isso levaria algum tempo. Os sem-terra culpam o governo de planejar remoções coletivas para assentar mais ressuscitados. Isso terá reflexos inesperados na política caso isso não mude.
A situação ficou pior quando, há cerca de três dias, o governador do Rio Grande do Sul assinou um decreto que desapropriava várias famílias por conta da construção de melhoria das instalações do sistema de vigilância da reserva. A área teria que ficar completamente isolada, sem qualquer edificação num perímetro de três quilômetros. O levantamento do comitê popular de Porto Alegre estima que cinco mil famílias sejam removidas. Contudo, a Prefeitura diz que ainda não há confirmação do número de famílias que realmente serão removidas, mas que todas terão respaldo das autoridades para a realocação.
Todos os setores da vida humana foram drasticamente afetados. Mas o pior estaria por vir. A economia mundial já dava sinais (como previsto) de recessão. A demanda por alimentos aumentou. Os ressuscitados, agora adaptados ao clima frio do Sul, tornaram-se mais ativos e famintos. O mundo não estava preparado para tal demanda. Alguma coisa deveria ser feita urgentemente. Alguns governos de estado ventilaram a hipótese de racionamento. Mas isso certamente despertaria a fúria da população e teria repercussões mundiais. O chefe das Nações Unidas deixou claro que a medida, caso fosse realmente necessária, teria de ser tomada independentemente da opinião pública.
A reeducação dos ressuscitados tornar-se-ia primordial. Eles deveriam ser habilitados ao trabalho o quanto antes. Entretanto, até isso ocorrer, seria obrigação dos governos do mundo mantê-los. Boatos sobre um ataque em grande escala à reserva circulou no mesmo dia em que se noticiou uma possível recessão. Para evitar a ação de grupos de extermínio, o Ministério da Justiça convocou centenas de agentes para espionar os pontos principais das cidades mais populosas do país. Enquanto isso, uma reunião secreta ocorria na ACCR. O objetivo era designar um especialista comportamental para estudar criteriosamente os hábitos dos ressuscitados.