As eleições

O povo buscava mais do que promessas. Queria solução. Solução imediata para um problema que transcendia a lógica comum. Tendo ciência dessa necessidade, Orozimbo Dias aproveitou para embasar seu projeto de governo na problemática da ressurreição e nas reivindicações populares. E nisso ele era bom. Prestava atenção nas necessidades imediatas para depois usá-las como argumento de candidatura. Após uma acirrada disputa com um adversário também candidato de um dos maiores e mais influente partido do país, Orozimbo conseguiu atingir o cerne daquilo que todos esperavam.

Empresários e a população ficaram admirados pelo projeto do partido de segurança aos humanos. Em consequência disso, Orozimbo, com as estatísticas apontando-o como o futuro presidente eleito, acabou por ser apoiado pela corrente majoritária dos demais partidos que declinaram da disputa presidencial.

Dentre as várias promessas nas áreas da saúde, segurança e educação, Orozimbo apontou a problemática da ressurreição como o foco possível de ser solucionado a curtíssimo prazo. E que a situação mereceria uma visão humanitária. Se eleito, teria um plano que surpreenderia não só a todos os brasileiros, mas também todo o mundo.

A declaração soou como mágica. Mas não demorou para que as centrais sindicais e sociedades pró ressurreição se unissem para cobrar o prometido, caso ele assumisse o governo. Em sua última apresentação televisiva, uma semana antes da eleição, Orozimbo declarou que a solução já existia, estava em suas mãos, e que o projeto também já estava pronto para ser colocado em ação assim que empossasse a presidência.

Não se sabe como ou por que, talvez por desespero ou por falta de esclarecimento, milhões de brasileiros acreditaram nas palavras de Orozimbo sem ao menos saberem em que consistia a proposta. Pagariam para ver. Após uma votação realizada sob a escuridão da ignorância, Orozimbo foi eleito afinal. Um dos maiores líderes de grupos antirressurreição eleito para salvar um país do colapso.

Sua primeira ação foi proteger a indústria nacional. Apesar das divergências internas, imediatamente o novo governo freou as perspectivas de aumento do limite de participação estrangeira em vários setores. Isso foi recebido com críticas. E como não se poderia deixar de esperar, o novo presidente nomeou o novo presidente da ACCR Piero Paiva Jr. É possuidor de uma vasta experiência em liderança de setores fortes como a da Segurança Nacional. Personalidade marcante, capaz de tecer e executar estratégias com precisão. A nomeação teve o aval da Agência Internacional. Uma de suas qualidades é a de ser capaz de lidar com o público. Muito articulado e atento às tendências e movimentos populares. Sabe usar inteligentemente a força quando se faz necessária.

Cerca de trinta dias após a posse, ainda em fase de transição do governo anterior, o presidente Orozimbo Dias convocou uma reunião com o seu futuro ministro de tecnologia e com o presidente da Academia de Ciências. Não podia deixar de comparecer o novo presidente da ACCR. A imprensa foi proibida de ter acesso e a pauta foi considerada secreta.

O que efetivamente se sabe é que o fruto dessa reunião resultou em algo estranhamente positivo. Muitas coisas mudariam. Algumas medidas em relação aos ressuscitados seriam tomadas. Pessoas que, antes protegiam um ressurgido e corriam o risco de serem presas, não mais precisariam se preocupar. As detidas seriam libertadas. Não se condenaria mais ninguém por proteger um ente querido emergido da morte. Isso causou um impacto muitíssimo favorável em nível nacional. A igreja e demais grupos pró-ressurreição se aliaram ao novo governo. A próxima medida foi a de garantir uma ressurreição segura. Ninguém mais teria de esconder cadáveres. As pessoas poderiam velar seus finados nos cemitérios protegidos e guardados   com segurança. A força militar da ACCR garantiria o cumprimento da nova lei.

Fora criado um serviço do tipo disque denúncia para alertar as autoridades sobre maus-tratos a ressuscitados. Além disso, um serviço de apoio auxiliaria na remoção humanizada de ressuscitados para a reserva do sul, garantindo a livre visitação em dias a serem especificados.

Tais mudanças impactou o mundo, o que foi visto por alguns líderes mundiais como uma mera jogada de marketing político. Outros acreditaram na humanidade existente no coração do novo presidente. Em rede nacional, Orozimbo prometeu apressar estudos específicos para ajudar a compreender melhor a crescente população de ressuscitados.

As pessoas já podiam caminhar livremente com seus entes ressurgidos. Não mais precisariam se esconder com a certeza de que não seriam atacadas. No entanto, ainda assim, ataques esporádicos ocorriam e grupos antirressurreição assumiam o ato. Traficantes de órgãos e praticantes de magia negra passaram a ser caçados pelos agentes. A agência já contava com o serviço de inteligência para localizar os infratores.

O Brasil vivia momentos de reflorescimento. Atos hediondos, torturas e ações aviltantes, antes expostos e sem resposta firme das autoridades, agora seriam punidos com rigor e justiça. Em contrapartida, tudo passaria a ser feito por debaixo dos panos. Deitava-se um véu de obscuridade que cobriria o verdadeiro lixo social. Interessante perceber que nenhuma lei ou regra fora decretada para se considerar o ressuscitado um igual. Nada ainda os protegiam a não ser a boa vontade do presidente. Continuavam sendo privados de suas famílias e levados para as reservas. E mesmo com toda atenção dispensada pelo novo governo, a leva de gente que retornava da morte continuava a crescer. A população mais consciente perguntava-se por quê. O que fazer com todo esse povo?

Foi então que a igreja decidiu entrar em cena. Em comunhão com a política atual, bispos, cardeais e até mesmo o papa, anunciaram suas orações publicamente para que Deus protegesse os ressuscitados. Aproveitaram também para evidenciar as escrituras no intuito de soarem suas santas trombetas e anunciarem que o apocalipse de João Evangelista já havia chegado. Podiam agora lançar sua palavra sem medo.

Os efeitos da retórica no discurso religioso eram fortes. Preenchia a cabeça do povo com mais sentimento de medo. Aumentava-se a necessidade de ter a atenção de Deus voltada para os pecadores mortais. A retórica imperativa estimulava o tom doutrinador do discurso, mostrando o que se deve fazer e o que se deveria cumprir e quais situações os fiéis deveriam evitar.

O refrão regular inculcava nos fiéis a mensagem de que sem a igreja não haveria salvação. Sacerdotes faziam suas evocações, pedindo a proteção de algum santo ou do próprio Jesus Cristo. Mas não deixavam de fazer referência ao novo processo político que prometia trazer de volta a dignidade da população. A forma de como isso era proferido soava quase como um apelo às autoridades governamentais. Considerando a debandada de fiéis que a igreja teve logo depois que a ressurreição começou, somente assim, através da opressão, para se compensar as baixas.

—A igreja deverá se perpetuar para continuar salvando os desgarrados. – Disse um padre muito popular envolto em uma bruma de certeza transmutada numa espécie de santa sedução.

E é incrível como ninguém aceitava uma situação nova só porque esta não se manifestava segundo as expectativas religiosas. Será que nunca, nenhum padre ou mesmo pastor, sentiu-se mentiroso ao transmitir ideias utópicas para um bando de gente que nem sabe o que aquelas palavras bíblicas significam? Será que não se sentiam mal ao inculcar a catequese em crianças que mal tinham condições de analisar o que tudo aquilo realmente significava? Por que fazer pessoas se sentirem condenadas ao inferno? Tudo o que é novo não é de Deus, mas sim, fruto de uma tramoia tecida pelo diabo para chamar a atenção de humanos fracos? O ser humano é tão idiota assim?

São perguntas que talvez permaneçam sem respostas por muitos séculos. Mas enquanto o povo se acertava com a nova situação política, o segundo passo do governo seria elaborar um estudo meticuloso sobre os ressuscitados.

O projeto, segundo o plano original, não seria apenas uma análise comportamental. Haveria algo além e sinistro por parte do presidente? Tornar os ressuscitados produtivos? De que forma? Forçá-los a trabalhar? Seja lá como fosse, apesar dos pesares, estávamos na trilha certa do projeto final.

Várias reuniões secretas foram realizadas. Mas o que era realmente divulgado para toda mídia era sobre o estudo comportamental. Inclusive o antropólogo Rui Montenegro fora o único escalado para conduzir o estudo no país. Ele mesmo tratou de se incumbir de formular o protocolo e não fez questão de contratar assistentes, apenas um pequeno grupo que o auxiliaria no diagnóstico psicológico. Tratou com o próprio presidente para efetuar a análise e o alertou que demandaria um longo tempo.

As qualificações de Rui, como doutor em antropologia étnica, eram impecáveis. Sua objetividade e clareza quanto a aspectos psicossociais ajudariam a traçar um estudo aprofundado sobre os ressuscitados. De certa forma tal desafio seduzia Rui. E foi por isso que aceitou permanecer confinado na reserva do Rio Grande do Sul. Esta seria a experiência mais importante de sua vida. E o mundo esperava ansiosamente.

Mas enquanto os estudos não eram iniciados, a sociedade tinha uma aparência mais humana, apesar das chacinas ocorrerem sob o tecido aveludado da sociedade. Cicatrizes foram deixadas e maquiadas. Não poderia deixar de contar a minha versão do que vi do mundo dos humanos mortais. Permaneci quieto, porém atento a todos os movimentos. Sei bem o que fizeram. Senti a necessidade de deixar este relato para o seu mundo. Sei de muitas coisas e deixarei escrito para ser anexado ao material do Dr. Rui Montenegro. Como disse e repito: Sei de muitas coisas e o próximo passo será delicado e perigoso. Temos de conseguir chegar ao nosso objetivo. Foi por isso que retornamos. Muitos chegarão.

Tenho pena daqueles que não conseguirão e daqueles que se sacrificaram pela coletividade. Somos sobreviventes da eternidade. Só queremos cumprir a missão a qual fomos programados para realizar. Nosso apelo aos humanos é silencioso. Mas todos poderão nos ouvir. Para isso deve-se ficar em silêncio. Só assim nos entenderão. Fim do primeiro relatório. Conclusão: Tudo acontece conforme planejado.

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