A Caverna da Ilusão
Assim que avançou mais profundamente na Caverna da Ilusão, Nathan deu uma última olhada para trás, mas não conseguiu avistar nem o avô nem Luzinete. Os primeiros passos foram fáceis; depois, tudo ficou escuro. O chão, antes repleto de pedregulhos, tornou-se arenoso e deixava o caminhar mais pesado. Reinava um silêncio perturbador. Era possível ouvir somente a própria respiração e o som dos grãos de areia sendo comprimidos pelos pés.
Nathan não tinha a menor ideia para onde aquele caminho o conduziria. Mesmo assim, prosseguiu corajosamente. Agora tinha a impressão de estar sendo engolido pelo silêncio. De repente, pensamentos perturbadores lhe vieram à mente. Lembranças de sua mãe sendo atacada pelo Hemolúpus; seu pai acenando e desaparecendo engolido por uma estranha neblina. Depois, a imagem do Orientador, se desintegrando como uma folha de papel queimada. Luzinete, com seu corpinho em formato de ovo, rachada e, em seguida, espatifando-se no chão. As imagens eram intensas, nítidas, pareciam reais. De repente, as cenas sumiram. Agora o medo do vazio era insuportável. Nathan notou o batimento rápido de seu coração. Outra imagem se formou: Seu pai. Isso trouxe a sensação de paz e antes que dissipasse, Nathan tentou agarrar-se a ela. Mas suas mãos passaram livres no ar.
“Queria tanto que meu pai estivesse aqui”, pensou, tentando conter as lágrimas. E continuou a caminhar. Sentiu cheiro de terra molhada. Não sabia direito se aquilo era real ou fruto da imaginação. Ouviu então o som de água corrente. Ao dar mais um passo, pisou numa poça. Era fria. Pouco mais à frente, seus pés afundaram numa espécie de córrego raso e arenoso. Por um momento, o garoto sentiu prazer em chutar a água para cima. Em meio à total escuridão, um súbito piscar de luz surgiu. Seguiu-se outro piscar e mais outro.
— Que luzes serão essas? — Perguntou-se em voz baixa. E avançou receoso.
Os pontos luminosos se multiplicaram, até que finalmente a luz substituiu a escuridão. Pouco a pouco um lindo cenário descortinou-se diante de seus olhos: um salão gigantesco, cujo teto era cravejado de esferas fosforescentes de um verde-claro puríssimo. Ao fundo, em cada lateral do salão, erguiam-se duas enormes colunas de cristal transparente, parecidas com gelo. No centro, repousava um lago escuro.
— Deve ser o lago dos sonhos, disse Nathan em voz baixa.
Decidiu, então, entrar no lago.
Ao pisar na beirada, o menino percebeu de relance um vulto sorrateiro atrás dele. Sumiu. “Coisa da minha imaginação” – pensou. De repente, uma neblina branca muito espessa se formou na margem do lago. Aos poucos espalhou-se e ficou tão densa a ponto de cobrir toda a superfície. Curiosamente a neblina converteu-se numa espuma sólida, flexível como borracha. Sem hesitar, Nathan caminhou sobre a espuma em direção ao centro do lago, agora totalmente coberto.
Na margem esquerda, percebeu um vulto. Estava parado bem perto da borda. Observava tudo em silêncio.
— QUEM É VOCÊ? PODE ME AJUDAR A ENCONTRAR A ESFERA DE CRISTAL? — Gritou Nathan para o vulto, que não se moveu. — PRECISO DE AJUDA! — Insistiu. Sem resposta. “Quando a gente mais precisa de ajuda, ninguém se mexe”, pensou.
Com dificuldades, Nathan chegou ao centro do lago. A espuma densa tornava seus passos inseguros. Bem no meio, uma porção do lago ficou descoberto. O menino debruçou para ver, contudo, receoso de romper a espuma. Ali pôde contemplar seu reflexo no espelho d’água. Mergulhou o braço. Algo dizia que ali poderia estar a esfera. Vasculhou de lá para cá, sem nada encontrar. De repente, algo áspero e forte como uma garra, prendeu sua mão. Nathan tentou puxar o braço. Não conseguiu. A coisa tentava arrastá-lo para dentro do lago. E assim o fez até o ponto em que o menino chegou a tocar o rosto n’água. A luta para tentar escapar deixou Nathan quase sem forças. Não havia nada onde se agarrar. Como um último ato de desespero, gritou: — Isso não é real! Sou mais forte.
Nathan bateu a outra mão na água. Imediatamente sentiu que a garra que o segurava afrouxou, libertando-o logo em seguida. Com o canto do olho, Nathan percebeu que o vulto continuava a observá-lo. Nervoso, perguntou: — QUEM É VOCÊ?
Com voz chiada e grave, o vulto respondeu:
— Parabéns, garoto! Você venceu o guardião da esfera de cristal. Você bem sabe que, também podemos nos afogar em lembranças e sonhos. Respondendo à sua pergunta: sou um amigo. Estou aqui para ajudá-lo.
— Ajudar? Quando mais precisei, você nem se mexeu! — Exclamou o garoto, irritado.
— Meu nome é… Deixa pra lá. Venha, venha logo antes que a espuma desapareça. – Com dificuldades de ficar em pé, Nathan, oscilante, chegou à margem. E o estranho ser, como se nada tivesse acontecido, continuou a explicação. – Meu povo mora nesta caverna. Não se preocupe. Sou amigo. — Disse ao sentar-se tranquilamente ao lado de Nathan à beira do lago. Mas sempre cuidadoso para não mostrar o rosto, este coberto por um véu negro.
— Se você é amigo, por que se esconde?
— Não temos o costume de nos mostrar. Diga-me, o que faz aqui?
— Estou à procura da esfera de cristal.
— A esfera de cristal! E para que precisa dela?
— Bem, nós estamos… — Nathan calou-se por um segundo e exclamou: — Eu nem conheço você! Não posso falar. É segredo.
— Segredo! Adoro segredos. Nosso povo é conhecido por guardar segredos. Enterramos conosco tudo aquilo que deve ficar escondido dos olhos alheios — Nathan não gostou daquele tom de voz.
— Sabe, garoto, queria lhe dar os parabéns pela coragem de vir até aqui. Vencer a escuridão sem saber o que encontraria… E também foi brilhante ao escapar do guardião.
— Obrigado. — Nathan ficou menos defensivo depois do elogio.
— Sim, claro. Já vi muitos morrerem. Mas você… você foi fantástico!
Nathan sentiu-se envaidecido por aquelas palavras. Elogios ele raramente ouvia em sua vida.
— Garoto, você será muito forte quando crescer. Aposto que seu pai ficaria orgulhoso de saber que tem um filho com tamanha coragem.
A confiança e a segurança tomaram conta do menino. Finalmente encontrou alguém que lhe dava a devida importância.
— Vamos lá, agora conte seus planos. Do que estávamos falando mesmo? — Disse aquele ser ao aproximar-se devagar.
— Não posso falar. É segredo.
— Tudo bem, garoto. Pode confiar em mim plenamente. Aliás, de onde você vem?
— Sou um liberto. — Aquilo fez a alma da criatura arder, mas ela procurou se conter.
— Liberto! É um ser vivente comum, portanto. Para que veio?
— Vim ajudar o Senhor Supremo.
— O QUÊ? — Surpreendeu-se a criatura, afastando-se — Você mente. Como um ser comum pode ajudar o Senhor Supremo? Além de mentiroso, é petulante.
— Por que você ficou tão nervoso?
— Nervoso, eu? Imagina! Jamais fico nervoso com pessoas brincalhonas. O Senhor Supremo é pouco mencionado aqui em nosso meio. — E rapidamente achegou-se mais do garoto, segurou sua mão, e disse: — Acho que posso ajudá-lo. Confie em mim.
— Confiar? Como?
— Diga-me de verdade a que veio — Insistiu a criatura, a acariciar a mão do garoto.
Nathan sentiu-se sonolento. Parecia ter sido envolvido por um encanto mágico. Apesar de resistir, suas forças se esvaiam. As palavras começaram a saltar involuntariamente de sua boca:
— Eu vim aqui tentar salvar nossos mundos.
— Diga-me como, corajoso garoto.
Sem saber o porquê, Nathan percebeu que estava atolado, mergulhado em alguma coisa. Com um lento e pesado movimento dos olhos, viu que estava coberto até o pescoço de lama que a própria criatura vertia pela boca, pelos ouvidos e pelo nariz. Horrorizado, tentou gritar, mas foi inútil. A lama tinha vida própria. Aumentava de volume depressa e endurecia feito cimento. E o ser não parava de jorrar aquela coisa nojenta.
— Conte-me tudo e será libertado. Abra sua mente.
E a lama subia. Nathan sequer tinha condições de manter os olhos abertos. De repente, uma luz azul despontou de não muito longe. O menino, já quase desmaiado, enxergou o que poderia ser: Uma ave azul. Ela batia as asas com vigor, e planou sobre ele como um anjo. Depois disso, tudo escureceu.
Nathan acordou na presença de um homem alto, forte, de cabelos negros longos e lisos que vestia uma roupa branca e longa capa. Segurava uma espada dourada.
Nathan mexeu-se com lentidão e desconfiado perguntou.
— Quem é você?
O homem, com um discreto sorriso, respondeu:
— Sou Marte, líder dos guerreiros albânicos. Fazia minha patrulha quando minha ave avisou você em perigo. Aliás, surpreendi-me quando soube que ela o acompanha há bastante tempo.
Nathan ficou impressionado com Marte.
— O que houve comigo? — Indagou.
— O povo da lama não é confiável. Iludem suas vítimas para tirar todas as informações que precisam antes de transformá-las em pedra. Demonstram falsa hospitalidade.
— Como consegui escapar?
— São perspicazes, mas fracos. Tive de agir rapidamente. Não foi difícil afugentá-lo. Devemos agradecer ao pássaro azul. Ele gosta de você. − O pássaro, pousado sobre uma coluna de cristal, piou alto e bateu três vezes as asas, como que confirmando o que Marte disse.
— Obrigado, pássaro azul — Disse Nathan com um sorriso. Ocorreu-lhe, então, uma dúvida.
— Marte, sabia que eu estava até aqui?
— Essa caverna tem propriedades mágicas. Na verdade, você nunca saiu do lado de seu avô e de sua amiga. Simplesmente expressou-se de forma a desaparecer da visão deles. É como entrar num mundo paralelo, sem deslocar-se do mundo real. Feche os olhos, relaxe e pense no local onde estava antes de chegar aqui.
Nathan fez isso e sentiu uma brisa soprar-lhe o rosto.
— Abra os olhos, garoto. Já está de volta ao ponto de partida. — Assim que o viram ressurgir, o Orientador e Luzinete não contiveram a alegria.
— Sinto que estão em missão importante.
— Como sabe disso, senhor…? – Perguntou o Orientador.
— Marte.
— Como sabe disso, Marte? — Insistiu Nathan, sacudindo a poeira da roupa.
— Primeiro: por ter entrado na caverna. Só aqueles que estão em missão se arriscam dessa forma. Segundo: pela forma como minha ave se preocupou com você. Ela somente entra em outras realidades quando o assunto é muito sério. Parece que ela sabe o que tem em mente.
— Temos que encontrar o Senhor Supremo e, para isso, meu neto deveria ter trazido consigo a esfera de cristal. Ela poderia nos dar a direção correta. Mas pelo que vejo não a encontrou.
Nesse instante, Nathan notou algo estranho dentro da camisa. Ao erguê-la, ficou surpreso ao ver a esfera. Tinha o tamanho de uma laranja, transparente, nada especial. Marte comentou:
— A esfera por si só é um objeto inútil. Para funcionar como um localizador, ela deverá estar sobre sua base, e esta foi roubada há muito tempo pelos Morbs.
— Morbs! – Exclamou o garoto.
— Isso mesmo — confirmou o Orientador, com voz preocupada. — Precisaremos de ajuda para enfrentá-los.
— Conte conosco. Deslocarei um grupo de soldados para acompanhá-los e protegê-los. Desconheço a natureza da sua missão, mas por tratar-se da localização do Senhor Supremo, imagino que seja de máxima importância.
— General, talvez não tenha ideia do tamanho do problema o qual temos que resolver. — Disse o Orientador.
— Se o senhor se refere à Grande Barreira, temos plena consciência do desastre.
— O menino é a nossa única esperança. A missão é protegê-lo a todo custo — complementou o Orientador.
— Defenderemos e morreremos por ele se assim for necessário. Mas antes de partirmos, precisam se recuperar. Vamos ao acampamento. Lá descansarão. Depois traçaremos um plano para reaver o pedestal da esfera.
O pássaro azul bateu asas e começou a voar em círculos.
— O que ele está fazendo? — Perguntou Nathan.
— Ela se prepara para nos transportar ao acampamento. Assim, evitaremos os rastreadores.
— Que rastreadores? — Quis saber Nathan.
— Eles estão a serviço do inimigo. Sempre que nos transportamos para algum lugar, deixamos um rastro de energia que é facilmente detectado pelos rastreadores. Eles estão em toda parte. São como sombras, sempre escondidos, à espreita, só esperando a chance. Assim que detectam o rastro deixado, enviam os Hemolúpus, que farejam como cães sarnentos a serviço dos Morbs. Felizmente a ave azul não deixa nenhum vestígio.
— Então, temos que nos apressar — alertou o Orientador, preocupado, olhando desconfiado para todos os lados.
Luzinete voou para debaixo da camisa de Nathan e não parou de tremer. A ave azul continuou a voar em círculos cada vez mais rápido até que o vento produzido pelo seu deslocamento criou um rodamoinho de luz.
— Pulem para dentro do turbilhão agora — ordenou Marte.
Nathan foi o primeiro. Em seguida, o Orientador e depois, Marte. A ave azul mergulhou por último na passagem, que se fechou.