Quatro anos depois
Este seria um dia diferente na vida dos Galeano. Um feriado prolongado logo após o final de semana. No pensamento de José: “mais tempo com a família”, coisa que ele adorava. Prepararam-se para passear.
— Nathan, onde você está, seu molequinho? — Chamou Lúcia, pronta para sair. — Nathan, o papai está esperando. Suas irmãs também, filho.
De repente, o menino saiu debaixo da cama e gritou alegremente:
— TÔ AQUI!
— Ah, seu safadinho, que susto! Papai já deve estar nervoso. Sabe como ele é impaciente. Principalmente quando vamos passear.
— Oba! Aonde vamos? — Perguntou Nathan, já pendurado no colo da mãe.
— Ao zoológico.
— Ver o leão, tigre e o piuguim?
— Exatamente, mas não é piuguim que se fala; é pinguim. – Nathan deu uma gostosa gargalhada ao descobrir o jeito certo de pronunciar a palavra.
José ficava impaciente. Buzinou duas vezes e até abriu a janela para chamar Lúcia:
— Vamos, amor! Desse jeito chegaremos tarde.
Inês, uma típica adolescente, não deixou por menos:
— E à noite é difícil de enxergar os animais.
Finalmente Lúcia e Nathan entraram no carro:
— Esse molequinho aqui decidiu brincar de esconde-esconde na última hora. Agora podemos ir.
José deu partida, engatou a marcha e foram em direção ao destino pelo qual Nathan tanto ansiava.
— Incrível como o trânsito está ótimo! — Exclamou José.
O menino escapou da cadeirinha e virou-se para observar os carros através do vidro traseiro. Enquanto isso, o clima estava tenso entre Inês e Kátia. Ambas discutiam sobre o passeio, com opiniões bem diversas:
— Sabia que ia ser chato. Eu não queria vir — Retrucou a bicuda da Inês. — Preferiria ter saído com o meu namorado.
— Namo… O quê? Nem sabia que você tinha namorado — disse José. — Você sabia disso? — Perguntou ele a Lúcia, com os olhos arregalados.
— Be-bem eu… — gaguejou ela, tentando encontrar uma desculpa pela omissão. Inês ficou vermelha como um tomate.
— O pai é sempre o último a saber — comentou José, que no fundo se divertia com o constrangimento das três.
— Faz tempo que ela namora… — sussurrou Kátia, para detonar mais uma discussão entre as duas.
Durante o maravilhoso tumulto familiar, Nathan foi o único que permaneceu calado e com o olhar parado. Parecia até uma estátua. Lúcia notou seu silêncio, e então, perguntou:
— Filhinho, você está bem? − Ele não reagiu.
— Nossa! Preciso de óculos. — Comentou José com os olhos fixos no retrovisor.
— Por quê? — Quis saber Lúcia, ao mesmo tempo que buscava compreender o que acontecia com Nathan. — Você nunca precisou de óculos.
— Vejo coisas ou aquilo é um pássaro acompanhando nosso carro?
Todos se viraram para olhar. De fato, era um pássaro azul de bico vermelho. O corpo parecia emitir uma luz levemente azulada. Acompanhava o veículo a manter sempre a mesma velocidade e distância, num planar suave.
— Filhinho, vê o passarinho? — Perguntou Lúcia, na tentativa de tirá-lo daquela situação. Contudo, ele permanecia quieto.
— Amor, acho que ele não está bem. É melhor parar o carro.
Kátia segurou o rostinho dele e puxou-o para si. Mas assim que ela o soltou, o menino voltou lentamente o olhar para o pássaro, que voava sem perder o ritmo.
José finalmente estacionou. O pássaro deu uma única batida de asas e simplesmente desapareceu. Nathan piscou os olhinhos e sorriu. Parecia ter saído de um sono profundo.
— Filho, o que houve? — Perguntou a mãe.
— Eu estava lá fora, voando — respondeu ele, com a maior naturalidade.
— Como assim? Na imaginação? — Indagou Inês, estranhando a resposta.
— Não, de verdade. Aí eu vi o passarinho, lá no alto. Eu chamei para brincar comigo. Foi legal!
— Chamou como? — Quis saber Kátia, meio assombrada.
— Eu pensei e ele veio. — Kátia olhou para o pai, boquiaberta achando que o menino não estava bem da cachola.
— Bem, agora está tudo em ordem. Já estamos chegando.
— Não acho que Nathan esteja bem. Isso não é normal — Sussurrou Lúcia, a ajeitar-se no banco.
— Não é nada. É certo que nunca vi nada parecido.
— Ora, por favor, Zé! Ficar parado daquele jeito…
Ele deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, sem saber o que dizer. Quando chegaram, José, muito animado, declarou, a plenos pulmões:
— PREPAREM-SE PARA UMA JORNADA SELVAGEM.
— Vai dar uma de Tarzan. Só falta ficar de cueca e subir numa árvore. — Ironizou Inês em voz baixa.
Já com as entradas em mãos, decidiram visitar primeiramente o setor dos felinos.
— Nosso menino quer tanto ver o leão! — Observou Lúcia, abraçada ao marido. Nathan correu na frente.
José e Lúcia contemplavam os três filhos ao longe.
— Não sei por que, mas acabei de lembrar-me do dia em que nós nos conhecemos. Foi naquele baile, Noite no Taiti. Aliás, se não fossem meus amigos insistirem para eu ir… — Comentou José.
— É mesmo! Jamais esquecerei. Você era tímido demais. Mal conseguiu me tirar para dançar. Tremia todo. Engasgou-se com o refrigerante. Quando começamos a dançar, seu rosto estava tão quente que pensei que estivesse com febre.
— Febre da paixão. Fiquei encantado com seus olhos, o cabelo todo arrumado, o vestido preto. Apaixonei-me de cara.
— Para com isso! Fico encabulada.
— No fim, nos casamos e tivemos três filhos lindos.
— Sabe, querido, o único problema é que você viaja muito. É difícil para mim e para as crianças ficarmos tanto tempo sem você. Nathan sente sua falta.
— Falta pouco para eu me aposentar. Terei mais tempo. Aliás, sei que a conversa não tem nada a ver, mas quando terminará aquela matéria sobre moda? A revista deve estar cobrando o envio do material.
— Esta noite — Respondeu Lúcia, sabendo que a mudança da conversa era o jeito que José dava para desviar a conversa sobre suas viagens.
Subitamente eles escutaram um grito de Kátia:
— MAMÃE, MAMÃE, OLHA! — Nathan estava parado bem diante da jaula do tigre. O animal mantinha os olhos fixados no garoto. Ambos pareciam hipnotizados. O tigre, bem próximo da grade, não mexia um músculo sequer. Os outros animais também se achegaram às grades de suas respectivas jaulas. Todos ao mesmo tempo, como que atraídos por uma força estranha.
— Minha nossa! — Exclamou Lúcia. — Outra vez não! O que é que aquele menino tem?
-
Estranho! — José até sentiu um calafrio na espinha.
Ao aproximar-se vagarosamente de Nathan, José foi surpreendido pelo rugido forte do tigre, que ecoou por todo o zoológico. O público, que também observava o estranho fenômeno, recuou assustado.
— Ele não quer que eu me aproxime! — Exclamou José.
Lúcia segurou Nathan no colo. O menino forçou-a aproximar-se da jaula. Depois debateu-se e escapuliu. Correu para perto da grade. Lúcia colocou a mão na boca para sufocar o grito, mas deixou escapar: — NÃO, VOLTA AQUI!
Sem dar ouvidos, Nathan parou diante do enorme animal e a sua reação foi inesperada: ele abaixou a cabeça, como um gatinho procurando o aconchego do dono. Depois rolou e ficou de barriga para cima. O menino continuou a observá-lo, sem dizer uma palavra, com os olhos vidrados. Parecia um boneco. De repente, o tigre se levantou e deu um salto para trás. Admirado, o público se aglomerou. Nathan então disse:
— Viu que legal?
Lúcia olhou para o marido sem saber o que dizer.
— Esse menino está estranho! — Exclamou Inês.
A tensão demorou a dissipar-se. Lúcia ficou incomodada com as pessoas que tanto olhavam para seu filho. Depois de algum tempo, as meninas voltaram a se divertir, mas José e Lúcia decidiram deixar o zoológico o mais rápido possível. Nathan pulava alegremente nos ombros do pai como se nada tivesse acontecido:
— Pessoal, já está na hora de ir embora! — Chamou José. Inês e Kátia apostaram corrida até o carro.
A noite chegou e logo depois do jantar, José levou Nathan para o quarto. Lúcia ligou a TV. Estava cansadíssima e não tinha um pingo de ânimo de finalizar o trabalho para a revista. José sentou-se ao seu lado.
— Nathan dormiu? − Perguntou Lúcia com ar de preocupação.
— Já. Parecia cansado.
— Querido, estranho o comportamento desse menino hoje, não acha?
— É, nunca vi nada igual.
— Aqueles animais olhavam para ele como se estivessem tentando se comunicar.
— Começou com o pássaro, depois os animais do zoológico.
— O que vamos fazer? — Perguntou Lúcia.
— Não sei. Quem sabe chamar um padre para benzê-lo? Normal eu sei que ele é, mas o jeito que ele fica, com aquele olhar parado, é de arrepiar.
— Acho que deveríamos ficar atentos. Se isso acontecer de novo, teremos que levá-lo ao médico.
— Médico? Ele está bem. — E José balançou a cabeça, com voz meio enrolada, enquanto bocejava e se achegava a Lúcia.
No dia seguinte, José saiu às pressas para o trabalho. Inês e Kátia foram para a escola. Lúcia retomou seus afazeres no escritório de casa e Nathan correu para a frente da televisão.
— Dona Lúcia, a senhora gostaria de um café? — Perguntou Clara, a moça que ajudava nos afazeres domésticos.
— Adoraria, Clara. Por favor, veja se Nathan quer comer alguma coisa.
O telefone tocou. Era a mãe de Lúcia.
— Bom dia, filha. Como vão todos aí?
— Estamos com saudades. Que bom que a senhora ligou.
— Conheço sua voz. O que houve?
— Nathan.
— Aconteceu alguma coisa com o meu neto? Ele está doente?
– Sim… não… sei lá, ele está bem. É só uma coisa que achei um tanto diferente no comportamento dele.
— O quê?
— Não sei. Por que a senhora não vem aqui hoje à tarde? Tomamos chá e conversamos um pouco. Pedirei à Clara para fazer aquele bolo que a senhora adora.
— Combinado.
— Nathan vai gostar de ver a senhora.
— Eu também estou louca para vê-lo. Até mais tarde, então.
Mal colocara o telefone na mesa, e ele tocou de novo.
— Alô, querida? Sou eu. — A voz de José estava ofegante, típica de quando ele está muito ocupado.
— Oi, querido, o que houve? Muito trabalho?
— Muito! Fui escalado para a inauguração da nova concessionária de Recife. Não tem jeito. Tenho que ir. E nem terei tempo de passar em casa.
— Mas assim tão rápido? Quando você volta?
— Depois de amanhã.
— Quer que eu arrume sua mala?
— Não. Comprarei roupas lá mesmo. Nem teria tempo de passar em casa. O voo está marcado para as dezesseis horas.
— Acho melhor você conversar com o Nathan. Ele fica triste toda vez que…
— Tudo bem. Pode chamá-lo, querida? Estou com pressa. Ainda tenho muita coisa pra fazer.
Lúcia chamou Nathan.
— Oi, pai.
— Oi, filhinho. Papai vai viajar, mas volta logo.
— Hoje não, papai. Não vá.
— Tenho que ir, filho, mas volto logo.
— E se você não voltar? — Indagou ao encher os olhinhos de lágrimas.
— Prometo que volto. Cuida bem da mamãe, está bem?
— Tá, te amo.
— Também te amo, filhão.
Nathan entregou o telefone para a mãe e disse em voz baixa:
— Ele não vai voltar.
Lúcia segurou-o delicadamente pelos ombros, ajoelhou e disse:
— Como assim? Não fala bobagem.
— É, sim. Eu sei.
— Sabe como? Quem lhe disse?
— Ninguém, mas eu sei.— Pare já com essas esquisitices. Vá brincar e tira essa bobeira da cabeça. Papai voltará sim.
Nathan correu para o quarto e mergulhou a cabeça no travesseiro. Lúcia, então, voltou a falar com José que aguardava já bastante impaciente:
— Querido, está tudo bem. Olha, boa viagem e não se preocupe.
Ambos se despediram. Lúcia ficou com aquela sensação estranha na barriga sem saber como explicá-la.
À tarde, a avó de Nathan chegou. Dona Carmem era uma senhora magra, de cabelos bem brancos, presos num coque apertado. De andar lento, mas seguro, e com mãos delicadas, segurava uma pequena bolsa de couro preta. Seus olhos azuis irradiavam uma calma típica das pessoas muito vividas. Lúcia a esperava na porta.
— Puxa, filha! Quando se mudará para uma casa? Não gosto de apartamentos, nem de elevadores. Ainda mais no oitavo andar. Não mereço esse castigo. Não se esqueça de que já tenho setenta e um anos.
— José acha que ficamos mais seguros durante sua ausência. Entre!
— Olha, não gosto de apartamentos, mas a vista da cidade é linda daqui de cima — comentou dona Carmem, a se ajeitar no sofá.
— Como vai José?
— Está bem. Trabalha muito. Vai viajar daqui a pouco. Nem passará aqui para se despedir.
— Que tom é esse? Até parece uma despedida!
— Nem diga isso. Nathan chorou muito depois que falou com o pai hoje. Disse exatamente isso. Aliás, mamãe, queria lhe falar sobre Nathan.
— Por isso estou aqui. O que houve?
— Não sei bem. Têm acontecido umas coisas estranhas.
Lúcia contou em detalhes os fenômenos ocorridos nos últimos dias. Dona Carmem escutou atentamente, quase sem piscar.
— Depois de conversar com o pai ao telefone, disse para mim que José nunca mais voltaria. Se não fosse o último episódio com o filho da vizinha, talvez não tivesse dado tanta importância.
— Que vizinha? Já estou preocupada. Conte logo.
— Ele brincava com o filho da Tânia lá no parquinho do prédio. De repente, Nathan subiu desesperado. Chorava aos soluços. Logo perguntei o que havia acontecido. Ele disse que Vitor tinha se machucado. Olhei aflita pela janela, mas o vi tranquilo no tanque de areia. Mostrei a ele que estava tudo bem. Contudo, ele colocou as mãos nos olhos para não ver. Depois de dez minutos, Tânia, a mãe de Vitor, interfonou dizendo que filho havia cortado a mão com um pedaço vidro que estava enterrado na areia.
— Ora, ora, filha, coincidência! Bobagem. Agora, quanto ao pai, Nathan falou aquilo porque tem medo de que ele vá embora. Talvez seja insegurança. É natural.
— Mas, mãe, foi estranho.
— Filha, não liga pra isso. Sabe aquelas coisas de pai que sai e fala para o filho — dona Carmem, então, engrossou a voz para imitar uma voz masculina — Filho, toma conta da sua mãe enquanto o papai estiver fora. — Isso cai como duas toneladas de responsabilidade sobre a criança. Não se preocupe. Quantas viagens José já fez e sempre voltou?
— Muitas, desde que nos casamos.
— Então, esqueça e pense em coisas boas. Pensamento positivo é o melhor remédio.
Lúcia alisou o cabelo e franziu a testa:
— Sabe, mãe. Já cheguei a pensar como seria a vida sem José. Ele é uma pessoa incrível. Os filhos o adoram e eu o amo. Não sei, é algo inexplicável. Talvez seu temperamento, suas ideias, seu constante otimismo. É difícil me imaginar sem ele.
Foi então que Dona Carmem lembrou de alguns fatos ocorridos com o seu marido, na época em que a filha ainda era uma garotinha.
— Sabe de uma coisa? Seu pai sim era estranho. Ele se desligava também. Parecia que entrava em outro mundo. Vai ver que Nathan herdou isso dele. Éramos jovens, passeávamos pelo parque quando Roberto revelou ter descoberto uma coisa. Uma passagem que lhe permitia prever coisas. Achei graça daquilo. Nem dei importância. Achei que fosse brincadeira. Ele era bastante brincalhão, diga-se de passagem. Fazia piada de tudo. Muito tempo depois de seu desaparecimento, encontrei uma carta na qual ele descrevia em detalhes o que havia descoberto. Na verdade, quando li, não entendi muito bem. Falava dessa passagem, um portal onde havia estado, e que o levaria para outro mundo. Não lembro muito bem. Faz tanto tempo. Achei que isso tinha a ver com algum tipo de doença que o deixava meio atrapalhado da cabeça. Recordo também que ele previu a morte da filha do seu melhor amigo. Tentou alertá-lo anos antes de a tragédia acontecer, mas quem iria acreditar? Passados dois anos, a menina foi atropelada ao sair da escola. Morreu na hora. Roberto prometeu a si mesmo que nunca mais falaria sobre tais coisas com ninguém. Depois, simplesmente desapareceu! Avisei a polícia. Nenhuma pista dele. Sinto saudade. Faz tantos anos!
Clara entrou na sala trazendo café e algumas fatias de bolo feito na hora, e a conversa logo se desviou.
— Bem, onde está meu netinho? Vim para vê-lo e olhe só, não paro de falar.
Nathan veio correndo em direção a avó e abraçou-a com força.
— Olá, meu querido. Você está bem? Deixe-me ver esses olhinhos. O que você estava fazendo?
— Brincando lá no corredor. — O corredor era seu local preferido para brincar.
— Olha o que a vovó trouxe para você. — Dona Carmem abriu a sacola cheia de coisas e tirou um presente cuidadosamente embrulhado e enfeitado com uma fita azul. A curiosidade foi tamanha que Nathan puxou o pacote da mão da avó.
— Ei, calma! Quero um beijinho em troca. — Nathan beijou-a e rapidamente rasgou o embrulho.
— Um carrinho vermelho! — Exclamou o menino, radiante com o presente. E correu para o quarto abraçado ao brinquedo.
Lúcia observou o filho, enternecida e ao mesmo tempo aliviada ao vê-lo feliz.
— Viu? Como qualquer criança saudável. Digo o que eu acho: Você está cansada. Procure relaxar.
— É, talvez seja isso. — Naquele instante a campainha tocou. Era Inês. Ao ver dona Carmem pulou de alegria:
— Vó, que legal vê-la!
— Meu Deus, você está linda! E como vai essa minha neta?
— Estou muito bem. De namorado novo. Ele é tudo.
— Isso mesmo, querida. Aproveite a vida. Quanto mais velhas ficamos, menos tempo para essas coisas. — Lúcia tentou conter a risada e convidou:
— Mamãe, fique para o jantar.
— Não posso, filha. Tenho um encontro com as minhas amigas. Hoje é dia de colocarmos as fofocas em dia.
— Está bem.
— Gostaria de ter visto Kátia. Volto na semana que vem para vê-la. — Dona Carmem pegou a bolsa, abraçou Lúcia e completou:
— Filha, não pense besteiras. Como disse, você está cansada. Procure ficar em contato com coisas boas.
— Obrigada, mamãe. Você é maravilhosa! Farei isso.
Já era noite. Lúcia não dormia. Aguardava aflita o telefonema de José. Duas horas da madrugada e nada. Desistiu de esperar e se recolheu. Tentou dormir, o que se tornou impossível. Revirava-se de um lado para outro quando escutou Nathan chamando o pai. Imediatamente Lúcia saltou da cama e correu para o seu quarto. Lá estava ele, encolhido na cama e tremendo de medo:
— O que houve, filho? Pesadelo?
— Vi alguém parado ao lado da janela. Ele era muito grande. — Lúcia olhou e não viu nada. O menino insistiu:
— Mãe, eu vi. Ele esticou a mão querendo me pegar.
Lúcia abraçou-o bem apertadinho. Ligou o abajur e contou-lhe uma história. Enfim, aos poucos, Nathan acalmou-se e caiu no sono outra vez.
Oito horas da manhã e Lúcia não havia pregado olho. O telefone tocou. Aflita correu para atender:
— Dona Lúcia, por favor.
— Sou eu. Quem é?
— Claudemir Castro. Trabalho com o seu marido.
— Pois não… — A respiração de Lúcia ficou pesada.
— Aguardamos José para uma reunião. Ele também não compareceu à inauguração da nova concessionária. Estamos preocupados.
Lúcia ficou muda.
— Dona Lúcia, me ouve?
— Si-sim. Também estou bastante preocupada. Passei a noite em claro a espera de uma ligação de José. Ele costuma telefonar toda vez que viaja. Mas até agora não tive notícias.
— Bem, tentaremos localizá-lo. Caso ligue, ficaria grato se nos avisasse. Por favor, anote nosso número…
Lúcia desligou o telefone e despencou no sofá. Tudo parecia girar. Trêmula, ligou para alguns amigos, parentes mais próximos e até para a polícia. Dias, semanas, meses se passaram e ninguém mais soube do paradeiro de José.
PREPAREM-SE PARA UMA JORNADA SELVAGEM.
— Vai dar uma de Tarzan. Só falta ficar de cueca e subir numa árvore. — Ironizou Inês em voz baixa.
Já com as entradas em mãos, decidiram visitar primeiramente o setor dos felinos.
— Nosso menino quer tanto ver o leão! — Observou Lúcia, abraçada ao marido. Nathan correu na frente.
José e Lúcia contemplavam os três filhos ao longe.
— Não sei por que, mas acabei de lembrar-me do dia em que nós nos conhecemos. Foi naquele baile, Noite no Taiti. Aliás, se não fossem meus amigos insistirem para eu ir… — Comentou José.
— É mesmo! Jamais esquecerei. Você era tímido demais. Mal conseguiu me tirar para dançar. Tremia todo. Engasgou-se com o refrigerante. Quando começamos a dançar, seu rosto estava tão quente que pensei que estivesse com febre.
— Febre da paixão. Fiquei encantado com seus olhos, o cabelo todo arrumado, o vestido preto. Apaixonei-me de cara.
— Para com isso! Fico encabulada.
— No fim, nos casamos e tivemos três filhos lindos.
— Sabe, querido, o único problema é que você viaja muito. É difícil para mim e para as crianças ficarmos tanto tempo sem você. Nathan sente sua falta.
— Falta pouco para eu me aposentar. Terei mais tempo. Aliás, sei que a conversa não tem nada a ver, mas quando terminará aquela matéria sobre moda? A revista deve estar cobrando o envio do material.
— Esta noite — Respondeu Lúcia, sabendo que a mudança da conversa era o jeito que José dava para desviar a conversa sobre suas viagens.
Subitamente eles escutaram um grito de Kátia:
— MAMÃE, MAMÃE, OLHA! — Nathan estava parado bem diante da jaula do tigre. O animal mantinha os olhos fixados no garoto. Ambos pareciam hipnotizados. O tigre, bem próximo da grade, não mexia um músculo sequer. Os outros animais também se achegaram às grades de suas respectivas jaulas. Todos ao mesmo tempo, como que atraídos por uma força estranha.
— Minha nossa! — Exclamou Lúcia. — Outra vez não! O que é que aquele menino tem?
— Estranho! — José até sentiu um calafrio na espinha.
Ao aproximar-se vagarosamente de Nathan, José foi surpreendido pelo rugido forte do tigre, que ecoou por todo o zoológico. O público, que também observava o estranho fenômeno, recuou assustado.
— Ele não quer que eu me aproxime! — Exclamou José.
Lúcia segurou Nathan no colo. O menino forçou-a aproximar-se da jaula. Depois debateu-se e escapuliu. Correu para perto da grade. Lúcia colocou a mão na boca para sufocar o grito, mas deixou escapar: — NÃO, VOLTA AQUI!
Sem dar ouvidos, Nathan parou diante do enorme animal e a sua reação foi inesperada: ele abaixou a cabeça, como um gatinho procurando o aconchego do dono. Depois rolou e ficou de barriga para cima. O menino continuou a observá-lo, sem dizer uma palavra, com os olhos vidrados. Parecia um boneco. De repente, o tigre se levantou e deu um salto para trás. Admirado, o público se aglomerou. Nathan então disse:
— Viu que legal?
Lúcia olhou para o marido sem saber o que dizer.
— Esse menino está estranho! — Exclamou Inês.
A tensão demorou a dissipar-se. Lúcia ficou incomodada com as pessoas que tanto olhavam para seu filho. Depois de algum tempo, as meninas voltaram a se divertir, mas José e Lúcia decidiram deixar o zoológico o mais rápido possível. Nathan pulava alegremente nos ombros do pai como se nada tivesse acontecido:
— Pessoal, já está na hora de ir embora! — Chamou José. Inês e Kátia apostaram corrida até o carro.
A noite chegou e logo depois do jantar, José levou Nathan para o quarto. Lúcia ligou a TV. Estava cansadíssima e não tinha um pingo de ânimo de finalizar o trabalho para a revista. José sentou-se ao seu lado.
— Nathan dormiu? − Perguntou Lúcia com ar de preocupação.
— Já. Parecia cansado.
— Querido, estranho o comportamento desse menino hoje, não acha?
— É, nunca vi nada igual.
— Aqueles animais olhavam para ele como se estivessem tentando se comunicar.
— Começou com o pássaro, depois os animais do zoológico.
— O que vamos fazer? — Perguntou Lúcia.
— Não sei. Quem sabe chamar um padre para benzê-lo? Normal eu sei que ele é, mas o jeito que ele fica, com aquele olhar parado, é de arrepiar.
— Acho que deveríamos ficar atentos. Se isso acontecer de novo, teremos que levá-lo ao médico.
— Médico? Ele está bem. — E José balançou a cabeça, com voz meio enrolada, enquanto bocejava e se achegava a Lúcia.
No dia seguinte, José saiu às pressas para o trabalho. Inês e Kátia foram para a escola. Lúcia retomou seus afazeres no escritório de casa e Nathan correu para a frente da televisão.
— Dona Lúcia, a senhora gostaria de um café? — Perguntou Clara, a moça que ajudava nos afazeres domésticos.
— Adoraria, Clara. Por favor, veja se Nathan quer comer alguma coisa.
O telefone tocou. Era a mãe de Lúcia.
— Bom dia, filha. Como vão todos aí?
— Estamos com saudades. Que bom que a senhora ligou.
— Conheço sua voz. O que houve?
— Nathan.
— Aconteceu alguma coisa com o meu neto? Ele está doente?
— Sim… não… sei lá, ele está bem. É só uma coisa que achei um tanto diferente no comportamento dele.
— O quê?
— Não sei. Por que a senhora não vem aqui hoje à tarde? Tomamos chá e conversamos um pouco. Pedirei à Clara para fazer aquele bolo que a senhora adora.
— Combinado.
— Nathan vai gostar de ver a senhora.
— Eu também estou louca para vê-lo. Até mais tarde, então.
Mal colocara o telefone na mesa, e ele tocou de novo.
— Alô, querida? Sou eu. — A voz de José estava ofegante, típica de quando ele está muito ocupado.
— Oi, querido, o que houve? Muito trabalho?
— Muito! Fui escalado para a inauguração da nova concessionária de Recife. Não tem jeito. Tenho que ir. E nem terei tempo de passar em casa.
— Mas assim tão rápido? Quando você volta?
— Depois de amanhã.
— Quer que eu arrume sua mala?
— Não. Comprarei roupas lá mesmo. Nem teria tempo de passar em casa. O voo está marcado para as dezesseis horas.
— Acho melhor você conversar com o Nathan. Ele fica triste toda vez que…
— Tudo bem. Pode chamá-lo, querida? Estou com pressa. Ainda tenho muita coisa pra fazer.
Lúcia chamou Nathan.
— Oi, pai.
— Oi, filhinho. Papai vai viajar, mas volta logo.
— Hoje não, papai. Não vá.
— Tenho que ir, filho, mas volto logo.
— E se você não voltar? — Indagou ao encher os olhinhos de lágrimas.
— Prometo que volto. Cuida bem da mamãe, está bem?
— Tá, te amo.
— Também te amo, filhão.
Nathan entregou o telefone para a mãe e disse em voz baixa:
— Ele não vai voltar.
Lúcia segurou-o delicadamente pelos ombros, ajoelhou e disse:
— Como assim? Não fala bobagem.
— É, sim. Eu sei.
— Sabe como? Quem lhe disse?
— Ninguém, mas eu sei.
— Pare já com essas esquisitices. Vá brincar e tira essa bobeira da cabeça. Papai voltará sim.
Nathan correu para o quarto e mergulhou a cabeça no travesseiro. Lúcia, então, voltou a falar com José que aguardava já bastante impaciente:
— Querido, está tudo bem. Olha, boa viagem e não se preocupe.
Ambos se despediram. Lúcia ficou com aquela sensação estranha na barriga sem saber como explicá-la.
À tarde, a avó de Nathan chegou. Dona Carmem era uma senhora magra, de cabelos bem brancos, presos num coque apertado. De andar lento, mas seguro, e com mãos delicadas, segurava uma pequena bolsa de couro preta. Seus olhos azuis irradiavam uma calma típica das pessoas muito vividas. Lúcia a esperava na porta.
— Puxa, filha! Quando se mudará para uma casa? Não gosto de apartamentos, nem de elevadores. Ainda mais no oitavo andar. Não mereço esse castigo. Não se esqueça de que já tenho setenta e um anos.
— José acha que ficamos mais seguros durante sua ausência. Entre!
— Olha, não gosto de apartamentos, mas a vista da cidade é linda daqui de cima — comentou dona Carmem, a se ajeitar no sofá.
— Como vai José?
— Está bem. Trabalha muito. Vai viajar daqui a pouco. Nem passará aqui para se despedir.
— Que tom é esse? Até parece uma despedida!
— Nem diga isso. Nathan chorou muito depois que falou com o pai hoje. Disse exatamente isso. Aliás, mamãe, queria lhe falar sobre Nathan.
— Por isso estou aqui. O que houve?
— Não sei bem. Têm acontecido umas coisas estranhas.
Lúcia contou em detalhes os fenômenos ocorridos nos últimos dias. Dona Carmem escutou atentamente, quase sem piscar.
— Depois de conversar com o pai ao telefone, disse para mim que José nunca mais voltaria. Se não fosse o último episódio com o filho da vizinha, talvez não tivesse dado tanta importância.
— Que vizinha? Já estou preocupada. Conte logo.
— Ele brincava com o filho da Tânia lá no parquinho do prédio. De repente, Nathan subiu desesperado. Chorava aos soluços. Logo perguntei o que havia acontecido. Ele disse que Vitor tinha se machucado. Olhei aflita pela janela, mas o vi tranquilo no tanque de areia. Mostrei a ele que estava tudo bem. Contudo, ele colocou as mãos nos olhos para não ver. Depois de dez minutos, Tânia, a mãe de Vitor, interfonou dizendo que filho havia cortado a mão com um pedaço vidro que estava enterrado na areia.
— Ora, ora, filha, coincidência! Bobagem. Agora, quanto ao pai, Nathan falou aquilo porque tem medo de que ele vá embora. Talvez seja insegurança. É natural.
— Mas, mãe, foi estranho.
— Filha, não liga pra isso. Sabe aquelas coisas de pai que sai e fala para o filho — dona Carmem, então, engrossou a voz para imitar uma voz masculina — Filho, toma conta da sua mãe enquanto o papai estiver fora. — Isso cai como duas toneladas de responsabilidade sobre a criança. Não se preocupe. Quantas viagens José já fez e sempre voltou?
— Muitas, desde que nos casamos.
— Então, esqueça e pense em coisas boas. Pensamento positivo é o melhor remédio.
Lúcia alisou o cabelo e franziu a testa:
— Sabe, mãe. Já cheguei a pensar como seria a vida sem José. Ele é uma pessoa incrível. Os filhos o adoram e eu o amo. Não sei, é algo inexplicável. Talvez seu temperamento, suas ideias, seu constante otimismo. É difícil me imaginar sem ele.
Foi então que Dona Carmem lembrou de alguns fatos ocorridos com o seu marido, na época em que a filha ainda era uma garotinha.
— Sabe de uma coisa? Seu pai sim era estranho. Ele se desligava também. Parecia que entrava em outro mundo. Vai ver que Nathan herdou isso dele. Éramos jovens, passeávamos pelo parque quando Roberto revelou ter descoberto uma coisa. Uma passagem que lhe permitia prever coisas. Achei graça daquilo. Nem dei importância. Achei que fosse brincadeira. Ele era bastante brincalhão, diga-se de passagem. Fazia piada de tudo. Muito tempo depois de seu desaparecimento, encontrei uma carta na qual ele descrevia em detalhes o que havia descoberto. Na verdade, quando li, não entendi muito bem. Falava dessa passagem, um portal onde havia estado, e que o levaria para outro mundo. Não lembro muito bem. Faz tanto tempo. Achei que isso tinha a ver com algum tipo de doença que o deixava meio atrapalhado da cabeça. Recordo também que ele previu a morte da filha do seu melhor amigo. Tentou alertá-lo anos antes de a tragédia acontecer, mas quem iria acreditar? Passados dois anos, a menina foi atropelada ao sair da escola. Morreu na hora. Roberto prometeu a si mesmo que nunca mais falaria sobre tais coisas com ninguém. Depois, simplesmente desapareceu! Avisei a polícia. Nenhuma pista dele. Sinto saudade. Faz tantos anos!
Clara entrou na sala trazendo café e algumas fatias de bolo feito na hora, e a conversa logo se desviou.
— Bem, onde está meu netinho? Vim para vê-lo e olhe só, não paro de falar.
Nathan veio correndo em direção a avó e abraçou-a com força.
— Olá, meu querido. Você está bem? Deixe-me ver esses olhinhos. O que você estava fazendo?
— Brincando lá no corredor. — O corredor era seu local preferido para brincar.
— Olha o que a vovó trouxe para você. — Dona Carmem abriu a sacola cheia de coisas e tirou um presente cuidadosamente embrulhado e enfeitado com uma fita azul. A curiosidade foi tamanha que Nathan puxou o pacote da mão da avó.
— Ei, calma! Quero um beijinho em troca. — Nathan beijou-a e rapidamente rasgou o embrulho.
— Um carrinho vermelho! — Exclamou o menino, radiante com o presente. E correu para o quarto abraçado ao brinquedo.
Lúcia observou o filho, enternecida e ao mesmo tempo aliviada ao vê-lo feliz.
— Viu? Como qualquer criança saudável. Digo o que eu acho: Você está cansada. Procure relaxar.
— É, talvez seja isso. — Naquele instante a campainha tocou. Era Inês. Ao ver dona Carmem pulou de alegria:
— Vó, que legal vê-la!
— Meu Deus, você está linda! E como vai essa minha neta?
— Estou muito bem. De namorado novo. Ele é tudo.
— Isso mesmo, querida. Aproveite a vida. Quanto mais velhas ficamos, menos tempo para essas coisas. — Lúcia tentou conter a risada e convidou:
— Mamãe, fique para o jantar.
— Não posso, filha. Tenho um encontro com as minhas amigas. Hoje é dia de colocarmos as fofocas em dia.
— Está bem.
— Gostaria de ter visto Kátia. Volto na semana que vem para vê-la. — Dona Carmem pegou a bolsa, abraçou Lúcia e completou:
— Filha, não pense besteiras. Como disse, você está cansada. Procure ficar em contato com coisas boas.
— Obrigada, mamãe. Você é maravilhosa! Farei isso.
Já era noite. Lúcia não dormia. Aguardava aflita o telefonema de José. Duas horas da madrugada e nada. Desistiu de esperar e se recolheu. Tentou dormir, o que se tornou impossível. Revirava-se de um lado para outro quando escutou Nathan chamando o pai. Imediatamente Lúcia saltou da cama e correu para o seu quarto. Lá estava ele, encolhido na cama e tremendo de medo:
— O que houve, filho? Pesadelo?
— Vi alguém parado ao lado da janela. Ele era muito grande. — Lúcia olhou e não viu nada. O menino insistiu:
— Mãe, eu vi. Ele esticou a mão querendo me pegar.
Lúcia abraçou-o bem apertadinho. Ligou o abajur e contou-lhe uma história. Enfim, aos poucos, Nathan acalmou-se e caiu no sono outra vez.
Oito horas da manhã e Lúcia não havia pregado olho. O telefone tocou. Aflita correu para atender:
— Dona Lúcia, por favor.
— Sou eu. Quem é?
— Claudemir Castro. Trabalho com o seu marido.
— Pois não… — A respiração de Lúcia ficou pesada.
— Aguardamos José para uma reunião. Ele também não compareceu à inauguração da nova concessionária. Estamos preocupados.
Lúcia ficou muda.
— Dona Lúcia, me ouve?
— Si-sim. Também estou bastante preocupada. Passei a noite em claro a espera de uma ligação de José. Ele costuma telefonar toda vez que viaja. Mas até agora não tive notícias.
— Bem, tentaremos localizá-lo. Caso ligue, ficaria grato se nos avisasse. Por favor, anote nosso número…
Lúcia desligou o telefone e despencou no sofá. Tudo parecia girar. Trêmula, ligou para alguns amigos, parentes mais próximos e até para a polícia. Dias, semanas, meses se passaram e ninguém mais soube do paradeiro de José.