Primeiro Capítulo

Capítulo Anterior

 

A Maldição de Villeneuve

Temporada 01

Capítulo IV – O Prisioneiro Errado

 

Fera

 

— Está tudo perfeito. — Eu sorri satisfeito.

O quarto estava limpo e arrumado como há muito eu não via nenhum. Havia mandado prepararem o melhor quarto da ala oposta à minha. Por mais que tivesse esperança de desfazer o feitiço, eu não queria deixar nenhuma pessoa chegar perto da rosa. Sabia o quanto mulheres eram curiosas, não sei o que faria caso ela ousasse tocar o símbolo de minha maldição.

Eu também não queria que ela tivesse medo de mim. Lumière me disse que eu deveria conquistá-la aos poucos, ou minha aparência intimidadora poderia estragar os nossos planos. Eu deveria ser educado, polido, cortês. Deveria me lembrar da época que a etiqueta ainda fazia parte de minha vida. A época antes que eu me tornasse essa… besta.

Um empregado veio até mim, meu mensageiro, agora transformado em uma corneta. Ele se anunciou com o maldito toque estridente do instrumento, e eu me contive para não amassar seu corpo metálico por aquele exagero.

— A convidada chegou!

Esforcei-me para conter a minha euforia. Eu não imaginava que ela chegasse tão rápido, na verdade, estava me preparando para ter que ir buscá-la eu mesmo, eu não esperava que aquele intruso e sua família entrassem em um consenso tão rápido.

— Mande Limière e Horloge receberem-na! — Mandei e me apressei de volta ao meu quarto. Eu precisava estar apresentável para a convidada.

Damien

Eu deixei que Philippe cavalgasse guiando nosso caminho. Por vezes ele quis parar, com medo, mas eu o instiguei a continuar. Não podia voltar, havia tomado a minha decisão.

Chegamos à parte estranha da floresta, em que o local começava a ser tomado por uma estranha paisagem invernal. Era como papai havia dito, todas aquelas árvores retorcidas e a neve fora de época. Porém, não era o frio que eu temia, e sim os lobos que haviam o atacado.

Ouvimos uivos distantes e Philippe aumentou o passo sem que eu precisasse mandar. Pouco tempo depois eu avistei os muros além dos galhos. Quando saímos de entre as árvores, pude ver com maior clareza. Havia um grande castelo além dos muros, com aspecto abandonado. Perguntei-me como ninguém nunca falara daquela construção. Será que os aldeões desconheciam sua existência? Será que nunca encontraram aquela floresta congelada? Não importava. Nenhuma das respostas me libertaria do destino que fora cumprir.

Os portões abriram-se sozinhos para entrarmos, provavelmente reconheceram Philippe. O cavalo seguiu direto para a baia e lá parou, bebendo água fresca. O estábulo estava em estado decadente, mas eu notei que havia sido limpo recentemente e parecia estar esperando receber algum corcel.

O anfitrião tinha certeza de que um de nós voltaria e cumpriria o trato”, pensei desanimado.

Sem escolha, eu guardei o livro dentro das vestes, puxei mais o capuz e tornei a enrolar a capa em meu corpo para me aquecer. Minhas roupas eram finas demais para o inverno, eu não tivera a oportunidade de trocá-las antes de partir em minha fuga.

Receoso, eu cheguei até os portões e os empurrei devagar. A madeira velha era pesada e as dobradiças enferrujadas rangeram com o movimento. Estava tudo escuro, como papai havia descrito. Eu tremi e entrei prendendo a respiração. Ninguém. Nem sinal da fera.

—… Olá? — Chamei baixo.

Houve outro momento de silêncio e eu já estava cogitando a possibilidade de voltar quando ouvi sons rítmicos e metálicos vindos da escadaria. Parecia que dois homens estavam conversando entre si. Aproximei-me e, no momento seguinte, algo desceu escorregando rápido pelo corrimão e aterrissou diante de mim com uma pirueta elegante. Era um candelabro de ouro ornamentado.

Intrigado, ia me baixar para olhar melhor, mas antes disso o objeto falou comigo.

— Olá!

Eu arfei e saltei para trás sentindo o coração quase sair pela boca. Tropecei e caí de costas contra a porta, tentei me levantar, mas minha afobação e o chão escorregadio pelo gelo me impediram de ficar de pé.

— Não, não, não, não! Por favor, não fuja! Não queria assustá-la! — O candelabro gesticulou e veio se aproximando saltitante.

Olhei ao redor e me agarrei no cabide próximo de mim para me levantar, depois ergui a mobília nas mãos como um bastão, pronto para acertar aquele objeto possuído. O candelabro ergueu o que seriam seus braços, em sinal de rendição.

— Por favor, se acalme, não irei te machucar.

— Não se aproxime de mim, demônio! — Bradei e senti algo cutucar meu ombro. Olhei na direção e o cabide virou para mim um rosto esculpido na madeira.

— Pode me soltar, por favor?

Larguei o objeto na mesma hora. Será que tudo naquele lugar estava vivo?!

— Eu não sou um demônio. Sou um mordomo candelabro e… — O objeto explicava quando arregalou os olhos, se dando conta de algo. — Espere. Você não é uma garota! — Notei certo pânico em sua voz.

— O quê?! — Mais alguém surgiu, daquela vez um relógio falante. — Onde está a garota?! — Indagou exasperado. Eu queria muito sair correndo.

— Eu vim no lugar delas. — Engoli seco e ergui o queixo com um fiapo de coragem e ousadia que ainda tinha quando se tratava de minha família. — Eu serei seu prisioneiro.

— Isso é uma calamidade! — O relógio falou esganiçado. — O mestre vai ficar furioso!

— Se acalme, Horloge. — O candelabro gesticulava para ter calma.

— É impossível, Lumière! — Vociferou. — Estamos condenados de vez!

— Tenha esperança, homem! — O candelabro me olhou. — Se o mestre descobrir você, não sei o que seria capaz de fazer.

Certamente seria capaz de me matar, eu imaginava, e aquilo fazia minhas pernas tremerem incontrolavelmente.

— E como acha que vamos esconder isso?! Botando uma saia nele?! — O relógio foi irônico.

— Não, mas você me deu uma ideia. — Voltou sua atenção para mim. — Venha comigo, precisamos sair rápido, antes que o mestre chegue!

— Pra onde vai levá-lo?

— Pro quarto dela! Err, dele! — Falou e saiu saltitando, correndo da forma que podia de volta para as escadas.

Em uma situação normal eu jamais seguiria aquele objeto. No entanto, meu medo de ver a fera era maior. Eu não queria descobrir o que a ira do monstro faria comigo. Engoli seco e corri para alcançar os outros dois. Se não estivesse atordoado de pavor, me perguntaria como conseguiam se mover tão rápido com aqueles corpos estranhos.

Perdi a conta de quantos degraus eu subi nos vários lances de escada. Minhas pernas queimavam pelo esforço de ter subido ao topo de uma das torres. Paramos diante de uma porta dupla antiga que havia sido polida há pouco tempo, bem ornamentada com detalhes em ouro.

Não era só a bela porta que parecia destoar do resto do castelo. Assim que entramos no quarto, olhei surpreso. A janela larga estava aberta e a luz do Sol entrava iluminando o recinto, mostrando um cômodo limpo e bem arrumado, mais requintado do que eu já vira mesmo na época próspera de minha família, preparado para receber a mais nobre dama.

— Fique aqui, vamos arrumar um jeito de consertar isso. — Lumière falou e eles saíram fechando a porta.

Corri e tranquei-a rapidamente. O que eu deveria fazer? Como conseguiria resolver o problema em que me meti? Eu precisava escapar dali. Tinha certeza que o monstro me mataria e iria atrás da minha família para se vingar de meu pai e raptar minhas irmãs. Só de pensar no que ele poderia fazer com elas já me sentia enjoado. Se eu pudesse ao menos alertar alguém, talvez Gaston e seus amigos caçadores, teríamos uma chance de nos defendermos.

Fui até a janela em busca de uma rota de fuga. Me debrucei no parapeito para olhar e voltei para dentro no mesmo instante, a vertigem me tomou ao ver a altura onde estava. Era inviável sair por ali e eu descobri que tinha pavor de altura, mas o medo de ser comido era maior. Eu precisava tentar.

Precisava do maior número possível de lençóis, talvez pudesse improvisar uma corda. Fui até o guarda roupa e a abri suas portas para olhar dentro, mas elas se fecharam com violência.

— Será que pode pedir licença antes de sair abrindo a porta dos outros?!

Pulei para trás e caí sobre a cama com o susto. O guarda roupas se aproximou de mim e eu me encolhi. Foi quando ela notou que eu não era uma mulher.

— Um rapaz! — Exclamou escandalosa. — Onde está a garota?!

— Eu vim no lugar dela. — Repeti com um fiapo de voz. Falar com um candelabro e um relógio que não batiam no meu joelho era uma coisa, falar com um móvel enorme que podia me esmagar era outra.

O guarda roupas apontou a tranca pra mim como se apontasse um dedo.

— Sua mãe não o ensinou que não pode tocar uma dama sem o consentimento dela?! — Brigou com sua voz feminina.

Meu rosto corou.

— Desculpe. — Murmurei, tentando não pensar besteiras.

O guarda-roupa resmungou e se afastou de volta ao lugar onde estava.

— E agora, o que vou fazer? Havia preparado todo o meu figurino especial para a donzela! Os mais finos vestidos do castelo! Quanto trabalho, quanto trabalho! — Ela me olhou, aquela fisionomia estranha, feita de partes do objeto que compunham o semblante. — Vou ter que arranjar vestes novas pra você, querido, esses trapinhos não vão servir.

Eu olhei para minhas roupas simples e surradas de camponês e voltei a encará-la enquanto ouvia algo se remexendo em seu interior, ela parecia procurar algo entre os tecidos coloridos.

— Não, não tenho nada aqui. Será que posso colocar um espartilho em você?

— Não! — Exclamei negando veemente com a cabeça.

— Que pena. — Ela andou, ou saltitou, até a porta. — Espere aqui que eu vou te trazer roupas novinhas.

— Não! — Saltei da cama e parei ao lado dela, com as mãos juntas suplicando. — Por favor, não. Se ele souber que eu estou aqui…

— O mestre ainda não sabe sobre o senhor? — Indagou intrigada.

— Não, ele acha que foi uma de minhas irmãs quem veio.

— Oh… O mestre ficará furioso. — Ela fez uma expressão preocupada, ou eu acho que foi aquilo.

— Por favor, ele não pode saber ainda que eu estou aqui. Não até eu descobrir o que fazer…

O móvel deu um longo suspiro que fez as roupas dentro de si farfalharem.

— Está bem. Vamos pensar em uma solução, eu não quero ver ninguém ferido.

Dei um sorriso aliviado. Estava prestes a agradecê-la, quando meu corpo gelou ao ouvir batidas pesadas na porta.

Próximo Capítulo

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

Leia mais Histórias

>
Rolar para o topo