Leve neblina. Na rua, Caio para de frente uma casa e observa a porta fechada. Ameaça ir embora, volta, com alguém abrindo. Dalva se alegra ao vê-lo.

Caio — Como sabia que eu estava aqui?

Dalva — Meu coração quem disse. De repente ele bateu forte e saí para confirmar se era você que estava aqui, como imaginei. — Depois de pausa, sem ele se manifestar. — Como está Glória? Ela está bem?

Caio — Está com a mãe na fazenda. Eu a levei faz algum tempo. Deve estar bem.

Dalva — Está frio aqui fora. Aceita um café quente? Acabei de passar. — dá passagem a ele, na porta.

Caio permanece no lugar. Entreolham em silêncio. Ele menciona ir embora, retorna olhar ela, e as palavras de Eduardo lhe volta a memória — Um homem não pode viver dividido entre duas mulheres. — Depois relembra as do pai: — Por que não ouve a voz do seu coração? Não acredito que um homem possa ter por duas mulheres idêntico sentimento.

As advertências do primo voltam a atormentá-lo: ─ Faça Glória feliz. Ainda que um dia descubram que fizeram a escolha errada. E de novo as do pai: — O coração é que descobre o verdadeiro amor. Não quero que você sofra ou faça uma delas sofrer.

Dalva, ainda parada, o esperava.

num impulso, ele retorna, puxando-a para dentro da casa. Os corpos trêmulos queriam mais que beijos apaixonados.

Ao se deitar na cama, ela sussurra-lhe aos ouvidos. — Eu amo você. Quero-o para mim. Só para mim. Sempre, de corpo e alma. — Num impulso ele se coloca de pé. Ela fica sem entender. — O que falei de errado?

Caio — Não está certo. Não é assim que quero viver, dividido entre o amor de duas mulheres. Antes de tomar uma decisão com você, preciso saber se Glória vai ficar bem, longe de mim.

Dalva ameaça dizer algo, não tem tempo, Caio se apressa. Ela o vê indo distante, sem olhar para trás, quando sai na rua. Decepcionada, fecha a porta que ele deixou aberta.

Ao amanhecer, ele segue no navio. No porto de Santos continua a viagem, numa charrete, durante o resto do dia e a noite inteira. O Sol desperta os primeiros raios quando chega à fazenda. Ele vê Glória, alegre, acenando da janela, no pavimento superior e aguarda.

Cocheiro — O lugar parece deserto.

Caio — Claro que não! Acabei de ver minha esposa na janela.

Cocheiro, cabreiro — Que janela? Não vi ninguém, as janelas estão todas fechadas.

Caio firma os olhos e constata que o homem está certo. Fica sem entender — Tenho certeza que vi Glória na janela, e ela também me viu. Chegou acenar. Como pode ser isso?

Cocheiro encolhe os ombros, sem saber.

Caio vai a porta da frente, bate e chama —Glória? Glória? Você está aqui?

Cocheiro — Parece que não tem mesmo ninguém por aqui.

Caio — Venha, vamos dar volta pelos fundos?

Caio mexe na porta que está trancada — Onde foram todos?

Cocheiro — Foram embora, com certeza.

Caio bate na porta — Glória, você está aqui? Onde estão todos? — sem resposta — Impossível! Tem que ter alguém. Como abandonariam tudo? O pessoal que trabalha na lavoura, devem estar no campo. Vamos lá? — e saem numa direção.

Os dois andam no corredor que dividi em duas partes a plantação de café. Caio grita — Tem alguém aqui?

Cocheiro também — Hei, tem alguém?

Depois de longa caminhada.

Cocheiro — Melhor voltarmos. Não tem se quer uma alma viva neste lugar.

Caio concorda, e voltam no casarão. Os dois arrombam a porta, entram na cozinha. Caio se assusta ao ver uma mocinha perto do fogão.

Francisca fala com ele — Me acompanha, ele está bem ali.

Caio, amarelo, acompanha ela até a sala, e geme surpreso, ao ver José Carlos, sentado, bêbado no chão.

Cocheiro — O senhor não está bem? O que está sentindo?

Caio, voz tremula, aponta em direção ao chão — O senhor não está vendo?

O homem arregala os olhos e gagueja assustado — O, o, o quê? Eu, eu não estou vendo nada.

Naquele instante, uma janela bate no andar de cima. Os dois sobressaltam assustados.

Cocheiro, treme de medo — O que foi isso? Esse lugar parece assombrado. Vamos, embora daqui?

Caio sobe correndo a escada, entra e sai de cada cômodo, chamando: — Tem alguém aqui? Glória é você? Onde está? Aparece, tem alguém aqui? — Ao entrar em um dos quartos vê a janela aberta. Lentamente se aproxima e olha para o lado de fora. Quando ameaça fechar a janela, vê de longe a capela. Rapidamente passa pelo cocheiro que também chega no quarto.

Cocheiro, muito assustado também olha para o lado de fora, pela janela, vê a capela e Caio saindo no jardim. Desce as escadas correndo. Quase cai.

Próximo à capela. A terra remexida com flores em cima, Caio lê o nome na madeira: “Glória Maria.”

Cocheiro chega — Vamos embora desse lugar, estou quase borrando as calças de susto? Quase caí por aquela escada.

Caio, de joelhos ao chão, desnorteado começa a remover a terra com as mãos.

Cocheiro — Pare com isso, o que está fazendo?

Caio — Ela está morta! Minha mulher está morta! Glória morreu! — e chora em desespero, chamando-a, ainda removendo a terra.

Cocheiro lhe puxa — Pare com isso, está maluco. Venha, vamos embora daqui. — e o leva com ele. Sobem na charrete e o cocheiro coloca os animais em disparada, seguindo a estrada.

Caio, desnorteado, revive cada angústia que vivera no passado, seguindo os mesmos passos, como reprise, enquanto o navio segue viagem de Santos ao porto do Rio de Janeiro.

Um marinheiro se aproxima: — Soldado, chegamos. Vai ficar por aqui?

Caio faz um gesto que sim e desembarca. Deixa o cais. Para, sem ânimo de prosseguir. Quando levanta os olhos buscando a direção que deve seguir, vê Dalva surgir entre as pessoas. Ele franzi o cenho, confuso. Aquela cena não lhe era conhecida. Espera-a se aproximar. Entreolham, tensos. Rapidamente ela se afasta, como se fugisse.

Caio segue-a com o olhar. O navio dá sinal de partida. Caio espera ele seguir viagem e vai embora, passos lentos.

Quando chega à frente do quartel, olha tudo. Deixa-se cair de joelhos, com a impressão de que um soldado se aproxima.  Chega ouvir a voz dele a lhe dizer: — A guerra acabou soldado. Caio firma os olhos, quando o guarda sai da guarita e segue outra direção. Ele aperta os olhos, com as pontas dos dedos e lamenta: — Devo estar enlouquecendo.

Adalberto o desperta: — Filho?

Caio abre os olhos, surpreso — Pai?!

Adalberto — O que aconteceu? O que está sentindo? Porque está de joelhos aqui?

Caio, em desespero — Ela está morta! Glória morreu.

Adalberto — O que está falando?

Caio, ainda perturbado — Eu pressenti que isso poderia acontecer, quando a deixei na fazenda, por causa da outra eu perdi Gloria para sempre.

Adalberto — Não diga bobagens! Glória acabou de sair daqui. Veio saber onde você estava, porque não apareceu em casa desde ontem, quando ela chegou com a mãe de viagem. Vocês desencontraram no caminho.

Caio ameniza — Glória está aqui?!

Adalberto — Sim! Foi para casa, depois que falei que você tinha ido a fazenda.

Caio levanta, e segue a rua, correndo.

Soldado que chamou Adalberto — Pelo desespero dele, acho que morreria junto com a esposa se ela tivesse morrido.

Adalberto — E que pensei que ele não amava ela. Não tanto assim! — Faz um gesto negativo com a cabeça e volta ao trabalho.

Caio abre a porta, encontra a esposa, na sala, com a mãe. Sente alivio: — Que susto você me deu, Glória. Pensei que estava morta. Vi o seu nome gravado na madeira.

Glória — Não é o meu. É o de Glorinha. Meu avô Eduardo quem gravou o nome dela.

Caio, confuso — Quem morreu? A terra estava remexida.

Glória — Meu avô Eduardo. Antes de nos deixar, ele pediu para ser enterrado junto ao tumulo dela. Fizemos prevalecer o desejo dele. Depois que meu avô se foi, ficamos sem saber o que fazer lá. Viemos todos embora. Ninguém quis ficar lá. Ficou tudo abandonado.

Caio — Eu sei! Quase enlouqueci imaginando ser você enterrada naquele lugar. — abre os braços para recebê-la.

Glória, sente receio.

Caio — Não vai me dar um abraço?

Ela corre para o aconchego.

Caio — Que bom ver você. Não imagina como estou feliz. Sinto alívio, vendo-a que está bem. É como se saísse um peso da minha alma.

Glória pega a mão dele e leva na sua barriga — Confesso que desejei a minha morte. Perdi a vontade de viver depois que você me deixou na fazenda, sem a certeza que voltaria para mim. Mas, consegui superar a minha dor, pelo nosso filho.

Caio, surpreso — Filho?

Glória — Sim! Vamos ter um bebê. Um filho nosso, meu e seu.

Caio, fixa ela no olhar, sem nada dizer.

Glória — Não está feliz em saber que vai ser pai?

Caio — Claro que estou! Você sabe que quero ser pai. Quero filhos. Muitos filhos. Esse é o primeiro, dos muitos que vamos ter. — Acaricia a barriga dela, e depois beija.

Meses depois. ela, sentada na cama após o parto, pega o bebê. Ele não reage:

Glória — Por que não chora. Está vivo, não está?

Clara — Sim, filha, está.

Parteira — Vou avisar o pai que a criança nasceu.

Glória mexe com ele, que não se move.

Caio aparece e observa.

Clara pega o bebê: — Meu neto é uma criança especial. Isso tem explicação. O que você passou no início da gravidez, como o sofrimento pela morte do pai, do seu irmão e tudo mais, prejudicou-o. — Sorri, olhos avermelhados: — Ele é lindo. Será uma criança muito amada por mim.

Glória pega o filho. Aperta-o, no peito, e chora.

Clara procura confortá-la.

Caio faz menção de deixar o quarto, muda de ideia e vai conhecer o filho. Puxa os panos que envolve a criança para ver o rostinho:

Caio — Nosso bebê é lindo, Glória. Você me deu um filho maravilhoso. — Pega-o com cuidado, querendo conhecê-lo melhor.

Ester e Adalberto chegam. Ele também pega o neto e o aconchega no peito:

Adalberto — Posso escolher o nome do meu neto?

Glória e Caio concordam.

Adalberto — Vai se chamar José Carlos, em homenagem ao meu avô, que não conheci.

Ezequiel, que estava ali, assistia a tudo. Alegre faz um sinal positivo com a cabeça. Em meio a uma luz desaparece.

Aproxima-se de Eduardo, que repousa em um leito hospitalar, entre muitos, na casa dos mortos.

Gesticula com as mãos e a luz que o ungia, faz o espírito, agora de novo jovem, repousar. Eduardo acorda.

Ezequiel — Meu amigo, como se sente?

Eduardo — Renovado.

Ezequiel — A ponto de viver outra vida, paralela à que já viveu? Precisa saber, desde já: não terá a aquela que desejou antes de deixar o corpo em que habitava. A personalidade de muitos que viveram, e ainda vivem, deve estar preparada para uma nova fase na Terra.

Eduardo – Como assim?

Ezequiel – Como você já soube antes de sua primeira experiência terrena, encontrará obstáculos pelo caminho. Mas acredito que irá superá-los outra vez.

Eles serviram de alicerce, de aprendizado, para todos aqueles que fizeram parte do mesmo círculo existencial, entre os muitos em quem ainda precisam fluir bons sentimentos. Como um ser bom que foi, deve, agora, ensinar aos seus irmãos o verdadeiro amor.

Não como o existente entre homem e mulher, mas um sentimento que jamais será esquecido.

Amor entre aqueles que participam de um círculo de sangue: pais, filhos, irmãos, avós, tios, primos.

Eduardo – Fico feliz em saber que terei irmãos. Sempre desejei.

Ezequiel – Sua missão será mostrar a eles esses sentimentos esquecidos no decorrer da existência. E corrigir as falhas cometidas. O tempo dará a oportunidade de um recomeço, sem erros, sem sombras do passado.

Eduardo se alegra. — Roberto Lacerda será meu pai outra vez?

Ezequiel — Venha, comigo. Faço questão de levá-lo a sua nova família. Estarei do seu lado, sempre. Para orientá-lo no que for preciso.

Uma luz aparece. Os dois caminham lado a lado por um longo corredor. Saem em um quarto, passando pelo portal que se abre na parede.

Ezequiel aponta para a criança que nascia — Aí está Roberto Lacerda. Ele será seu irmão.

Eduardo reconhece a mulher que acabava de dar à luz, e a parteira: — Noemi, minha filha. Francisca, como estou feliz em vê-la também.

Ezequiel — Lembra-se do seu último desejo para com ela?

Eduardo busca na memória a conversa dele com Francisca.

Os dois diante a lapide de Glorinha no jardim do casarão.

Francisca — Devia ter contado toda a verdade à nossa neta?

Eduardo — De que está falando?

Francisca — Se for de fato o que pensamos, ser Glorinha reencarnada e o marido Neto, alguém que conhecemos, seria Zequinha. Você sabe de quem estou falando.

Eduardo — Não quero nem pensar no que está querendo me dizer, Francisca.

Francisca — Você começou essa história, não foi?

Eduardo — Errei. Meu pai estava certo. Essa é a verdade.

Francisca — Tem certeza que quer pensar assim?

Eduardo — Não. Nunca vou acreditar. Meus lábios podem repetir mil vezes, e o meu coração jamais irá concordar.

Francisca — Um homem que morreu sem perdoar ao filho a escolha que fez e sem aceitar a neta, mesmo ela herdando a cor branca do pai.

Eduardo — Porque estamos falando nisso?

Francisca — Talvez, por me sentir cansada de vê-lo sofrer todos esses anos, com tudo o que aconteceu. Se colocasse para fora a mágoa que tem no coração seria mais fácil superar a sua dor.

Eduardo — Nunca parei para pensar que… Não, eu não acredito, Francisca, que nosso neto seja meu pai reencarnado, recebendo, na pele, o que ele renegou.

Se for, peço a Deus que tenha misericórdia de sua alma e encontre a paz no corpo em que está.

Que o pai o aceite e o ame como ele é, e não como desejava que fosse.

Essa foi uma diferença que também existia entre mim e meu pai.

Nunca consegui ser o filho que ele queria.

Ele não foi um pai perfeito de que eu pudesse me orgulhar. Você é testemunha disso, e eu já perdoei, faz muito tempo, tudo que ele fez contra mim. Mas com a minha filha.

Eduardo mira Francisca nos olhos.

— Com a nossa filha. E ainda dói muito dentro do meu peito, pensar que todos os sofrimentos dela são consequências do meu pai, por não entender o que é amar de verdade.

Quando perdi Glorinha, pensei que a minha vida não teria mais sentido.

Tornei-me em um homem frio e solitário.

Clara surgiu na minha vida, no momento, em que eu mais precisava de forças para continuar a viver.

Com ela reaprendi a amar.

Meu pai não entendeu meus sentimentos.

Foi através de Clara que descobri que ele não tinha nenhum sentimento de amor por mim, pela minha mãe, por qualquer pessoa que vivia ao seu lado. Um homem que não amava a si mesmo.

Francisca — Ontem à noite, depois que você se recolheu, fiquei um bom tempo conversando com a nossa neta.

Eduardo – O que conversaram?

Francisca – Gloria Maria me disse que Zequinha não aceita ser como ele é. Se senti inferior. Isso é não ter amor a si próprio. Sem dizer que o pai não tem nenhum sentimento de amor por ele.

Eduardo — Francisca, você está querendo me convencer de que… — faz um gesto com a mão. — Vamos mudar de assunto, por favor. Relatar os sofrimento do meu neto é me fazer voltar o tempo. Nunca desejei mal ao meu pai. Deus é testemunha disso.

Francisca o abraça e sente ternura.

— Perdoe-me. Queria tanto, um dia, consegui fazê-lo feliz de verdade.

Eduardo — Sabe qual é o meu desejo também?

Francisca — Não faço a menor ideia!

Eduardo — Um dia retribuir todo o amor, carinho, paciência e tudo o mais que você dedicou a mim, como mãe de nossas filhas, e por fazer parte de nossa caminhada.

Francisca — Essa foi a missão que acredito ter recebido e que vou cumprir até o ultimo dia.

Eduardo, deixando as lembranças, fica atento em Francisca, cuidando do bebê.

— Cumprirei a minha promessa com Francisca quando a encontrar novamente. — Mira o anjo. — Diga-me. Meu pai era meu neto Zequinha?

Ezequiel — Sim! Roberto Lacerda quem escolheu o próprio destino.

Eduardo — Por que ele era um homem tão amargo, quando era meu pai?

Ezequiel — Com o tempo você entenderá. Como seu irmão, Roberto Lacerda precisará de compreensão, para assim, conseguir se libertar dos medos e más índoles que ingeriu, desde quando, ainda garoto.

Ele foi abandonado pelo homem que acreditava ser seu pai. Esperamos que através do perdão que recebeu de Robson, quando o aceito como filho, tenha lhe influído bem estar na alma.

Roberto precisará provar a si mesmo, e escolher o caminho entre o bem e o mau.

Ele estará diante de Afonso e Noemi, que foi a madrasta que Roberto não aceitou, na primeira existência, criando um grande conflito entre ele e o pai.

Eduardo — Eu sempre procurei me entender com ele. E ainda o farei, agora como meu irmão mais velho.

Ezequiel sorri — Tenho certeza que sim! E para recompensá-lo das maldades e transtornos que recebeu dele como pai. Será o filho que Afonso desejava ser Roberto Lacerda. Ele será para você o pai que sempre desejou ser Roberto Lacerda.

Noemi geme sentindo dores.

Francisca vai ao auxílio da filha. Ela, de novo, entra em trabalho de parto.

Clara, ao terminar de ler a carta que recebera, estava alegre com as notícias.

Glória, a seu lado, alimentava o filho, já com cinco anos de idade.

Clara — Sua tia Noemi teve dois bebês. Adivinha como se chamam?

Glória — Não tenho a menor ideia.

Clara — Vou ler o que ela escreveu: “Dei ao meu primeiro filho o nome de Roberto Lacerda, por ser bravo; chora o tempo todo. Ao segundo, de Eduardo Lacerda, por ser manso e tranquilo como era nosso pai.”

Clara senta na poltrona, e suspira: — Seu avô Eduardo acreditava em vida após a morte.

Cria que nosso espírito não fica apenas dormindo, esperando o julgamento final.

Dizia que tanto o paraíso quanto o inferno eram na Terra, pois aqui temos dor, tristeza, sofrimento e morte, mas também amor, alegria e o renascimento a cada amanhecer.

As noites temerosas nos causam insegurança a ponto de nossa alma implorar um pouco de luz.

O Sol nos traz alegria, confiança, boas expectativas e claridade.

Meu pai era assim, um homem poético, e mesmo com o coração esmagado, procurava dar alegria para as pessoas que o rodeavam.

Com certeza, Deus preparou para ele um lugar abençoado e que esteja ao lado das pessoas que ele amava.

Glória — Acreditando nas palavras dele de que sou Glorinha, com certeza, não vai me encontrar do outro lado. Sem dizer que: de todas as histórias que ouvi a respeito do meu bisavô, ele não tinha pelo filho nenhum sentimento de amor. Não amava ninguém. Então, não acredito que vovô terá paz ao lado de Roberto Lacerda.

Clara encara-a — Pois, quero acreditar sim, que os dois estejam lado a lado, agora, como irmãos, em meus sobrinhos, e que encontrem paz ao lado um do outro, recebendo amor em igualdade, das pessoas que já os amam, sem diferenças.

Gloria faz um gesto qualquer.

No quartel.
Caio — O senhor tem ideia do que está me pedindo?

Adalberto — Não são ordens minhas, sim do General Artur de que devemos enviar para Canudos o maior números de soldados possíveis para derrotar Antônio Conselheiro. Você faz parte desse batalhão. Foi convocado.

Caio — E as tropas que já foram enviadas?

Adalberto — Seus componentes foram quase todos mortos. Para nós, agora, será uma questão de honra acabar com esse beato e seus seguidores.

Caio fica de costas. — Tenho um filho doente para cuidar, o senhor sabe disso. Indo para a guerra posso não voltar vivo.

Adalberto coloca a mão no ombro do filho. — Não posso lhe dizer nada a seu respeito. Sabemos que a luta é de vida ou morte. Outros também estão deixando a família, e para meu neto tanto faz o pai estar aqui quanto lá.

Canudos deve ser destruída.

Aquele homem é louco; precisamos detê-lo.

Temos de acabar com a seita que ele criou.

Somos filhos de guerra, que buscam a paz e honram nossa Pátria que foi conquistada por muitos que lutaram com bravura, oferecendo-se em sacrifício em troca da liberdade e harmonia.

Seu avô foi um desses.

Não podemos deixar que essa conquista seja destruída por um maluco qualquer.

Esta terra é nossa, por direito daqueles que aqui nasceram e querem a concórdia.

Jamais poderemos nos dar por derrotados.

Adalberto acariciou o rosto do filho:

— Sinto muito por não poder acompanhá-lo. Ficar ao seu lado como meu pai, um dia, esteve do meu. E, quem sabe, salvar a sua vida com a minha, para lhe dar o direito de viver. Mas vou estar com você em pensamento, rezando para que volte vivo para os que o amam.

Caio se afasta, ficando, outra vez, de costas para o pai:

— Acredito que meu avô esteja dentro de mim. Foi na Bahia que ele conheceu minha avô e o filho, que tem a idade do meu hoje. Faz quatorze anos que Dalva foi morar no local para onde devo ir agora.

Caio olha o pai: — Caso eu sobreviva, não voltarei para o Rio de Janeiro. Peço que cuide de Glória e do meu filho por mim. Se eu não regressar da guerra, diga a ela apenas que morri em combate. Se eu encontrar Dalva lá, não retornarei.

Adalberto encara-o. Depois o abraça.

— Eu amo muito você filho. A sua felicidade sempre foi e será meu desejo em primeiro lugar. Se não é feliz o bastante com sua mulher, siga seu caminho, o destino que julgar ser o certo, sem se preocupar com aqueles que ficarem para traz.

Caio — Eu nunca lhe disse isso antes, mas também o amo muito, pai. De todo o coração. Tenho orgulho se ser seu filho. — Emocionados se abraçam.

Na rua, as tropas se preparam para partir.

Na sala, Caio observa Glória alimentar o filho. Ele ouve o sinal de alerta e se aproxima da rede. Com afeição, aperta uma das mãos do filho entre as suas. Beija Glória na testa e sai sem nada dizer.

Glória chora.

Clara lhe oferece o ombro.

— Tudo vai acabar bem, filha. Vamos acreditar que seu esposo irá voltar para junto de nós. Precisamos acreditar que sim.

Na praça. Caio se junta ao batalhão.

Adalberto faz leve gesto de despedida.

Caio corresponde e seguem viagem noite a dentro.

Assim que amanhece, Glória abre a porta, ao ouvir batidas. Fica surpresa ao se deparar com Dalva.

— Eu soube que as tropas do Rio de Janeiro estão a caminho de Canudos. Concluí que Caio tivesse seguido junto. Achei melhor ficar com você para não correr o risco de o encontrar lá, porque lhe prometi que…

Glória — Quem é o menino com você?

Dalva alegre — Adalberto, meu sobrinho. Resolvi trazê-lo comigo.

Glória — Não podia ter dado outro nome ao filho? Tinha de ser o do avô?

Dalva — Do avô? — ri. — Sei o que está imaginando. Mas posso lhe garantir que está completamente enganada. É apenas coincidência ele ter o nome do seu sogro. Adalberto é meu sobrinho sim, filho de minha irmã e não meu e do seu marido.

Glória — Quer que eu acredite? Sei que vocês já me traíram.

Dalva — Claro que sabe. Eu mesma lhe contei quando chegou da fazenda e me pediu que não tirasse Caio de você; que eu o esquecesse pelo filho que você estava esperando.

Glória — E agora, depois de tanto anos, resolveu voltar trazendo um filho dele para que eu o conheça.

Dalva se irrita — Pare com isso, Glória! Eu e o Caio nunca traímos você da forma como pensa. Como deixei que você pensasse, e poderia ter acontecido sim, mas não aconteceu. Sabe por quê? Porque ele não quis. Antes de ficar comigo, Caio desejou saber como você ficaria, na fazenda, sem ele.

Glória – Ele escolheu ficar comigo novamente.

Dalva – Respeitei a escolha dele. E quando decidi, em definitivo, ir embora, não fiz isso porque você me pediu. Fiz pelo seu filho. Pensei nele como se fosse meu: nascendo e crescendo sem o pai. Não achei justo aceitar para o seu o que eu nunca iria querer para o meu. Caso contrário, eu teria permanecido aqui e lutado pelo amor do homem que ainda amo.

Glória — O que ainda espera? Que eu lhe diga para ficar com ele de vez? Ou, quem sabe, aceite coabitarem?

Dalva — Em nenhum momento desejei compartilhá-lo com você. E quando me aproximei foi para que Caio soubesse que eu estava pronta para fazê-lo feliz, porque sentia que ele não era com você, e, procurei entender, depois, que a culpa não era sua.

Gloria – Fico feliz em saber que não tenho culpa de nada.

Dalva – Glória, eu estou aqui em missão de paz.

Gloria – Será que está mesmo?

Dalva – Eu já lhe dei minha palavra, uma vez de que não tiraria Caio de você. E não vou tirá-lo. Tanto que preferi estar aqui, a ir encontra-lo no lugar para onde ele está indo. E eu não precisaria fazer isso, se não quisesse. Teria me inscrito como enfermeira voluntária para ficar perto dele. Não acha?

Glória fica calada, sem saber o que dizer.

Dalva — Uma coisa é certa. Se Deus achar que mereço uma recompensa pelo que ainda estou fazendo, vou ter Caio somente para mim. Sei que não será nesta vida, mas vou esperar por outra. Rezo todos os dias. Vou continuar rezando até o último momento, para que eu encontre Caio livre e desimpedido, sem você no nosso caminho. Porque nesta, abri mão, novamente do meu amor para deixá-lo para você.

Glória senta na poltrona. Frágil chora:

— Desculpe, Dalva. Sempre, tudo é tão complicado comigo. Às vezes penso que é um pesadelo que não terá fim. Eu queria um dia acordar e ver tudo diferente ao meu redor.

Dalva — Sabe o que penso? Se Caio não quisesse ficar com você, não ficaria. Você mesma me disse isso. Só tem mais sorte que eu.

Glória — Sorte? Você ainda acha isso sorte?

Dalva — Perdoe, eu não quis dizer isso. Nem sei por que falei. A única coisa que sei é que você deve amá-lo mais que eu. Você tem uma força muito grande, por mim desconhecida, que o envolve e é capaz de mantê-lo do seu lado. Confesso que já tentei tirá-lo de você e não consegui. Caio também tentou se afastar de você, sem sucesso. Quando eu soube que ele estava indo para a Bahia, lembrei-me do seu filho. Imaginei como ele ficaria com o pai partindo, talvez para nunca mais retornar. Caio está indo para uma guerra e sabemos que o pior lhe pode acontecer.

Glória — Para o meu filho não faz diferença o pai estar aqui, ou, em outra parte qualquer do mundo.

Dalva não entende. Aponta o sobrinho sentado em outra poltrona: — Adalberto tem a idade do seu filho e compreende o significado de guerra.

Glória observa o menino, atento à conversa: — Pensando bem, eu iria adorar se esse garoto fosse de Caio com você. Quer conhecer meu filho?

Dalva — Estou aqui para isso. Por ele, escolhi ser sua amiga e não inimiga.

Gloria sorri — Obrigada pela sua sinceridade. Venha. Carlinhos está dormindo.

Diante do menino, estirado na cama, inerte, o corpo frágil aparentando um cadáver, Dalva se surpreende. Fica calada.

Gloria — Você acredita em vida após a morte?

Dalva — Sim! Por que me pergunta?

Glória — Já que escolheu ser minha amiga pelo meu filho, prometo não atrapalhar você, caso, após nossa morte, eu estiver no seu caminho e de Caio. Será minha vez de ser sua melhor amiga e, quem sabe, ajudá-la com ele, no que for preciso. Vai ser minha dívida com você, por não tirá-lo de mim, mesmo tendo se apaixonado por ele.

Dalva — Não me apaixonei. Nasci amando Caio e acredito que vou morrer e renascer com este sentimento.

Glória — Não creio que haja vida após a morte. Não acredito mais em nada. Posso até acreditar no dia em que ver o meu filho normal, cheio de vigor, fazendo planos para o futuro. Mas sei que isso é esperar um milagre que não vai acontecer. Ele não tem cura.

Glória pega a mão da amiga.

— Você não precisa esperar outra existência, se pode fazer meu marido feliz nesta, e dar-lhe filhos.

Dalva balança a cabeça que não.

Gloria continua: – Eu e Caio decidimos não ter outros filhos, apenas dedicar todo amor ao nosso único. Estamos vivendo como irmãos, desde quando nosso filho nasceu.

Dalva fica surpresa. – Eu não imaginava isso.

Gloria – É a pura verdade. E pelo sentimento que diz ainda ter, e pela sua sinceridade. E também de estar aqui comigo, concordo que se una a ele. Aceito os filhos que possam ter.

Dalva — Pare com isso, Glória! Não é assim que quero. Como poderei ser feliz sabendo o que sei agora? Você precisa do seu marido para ajudá-la.

Gloria – Meu casamento com Caio foi um erro.

Dalva – Glória, quem seria eu se aceitasse sua proposta? Que tipo de pai seria Caio? Quando você chegou da fazenda dizendo que estava disposta a viver com ele pelo filho que esperava, e isso estava acima do meu amor por ele, confesso que senti inveja.

Pude ver o quanto você era forte, pois, mesmo sabendo do amor dele por outra, era capaz de lutar pela felicidade daquele a quem você estava gerando.

Eu tinha apenas duas opções:

Permanecer do seu lado como grande amiga, aceitando, de vez, você com ele ou me tornar sua pior inimiga e disputa-lo.

Hoje, a par do que testemunho, vejo que fiz a escolha certa.

Gloria não contem a emoção.

Dalva continua – Eu até prefiro que Caio nem fique sabendo que estive aqui.

Gloria – Por que?

Dalva – Acho melhor assim. Vou ajudá-la com o seu garoto enquanto ele estiver fora. Logo que volte, irei embora e procurarei esquecê-lo. Vou dar uma chance ao primo do meu cunhado, que tem interesse por mim, e me casar. É um homem livre e posso tentar ser feliz ao lado dele. E não pense que vou fazer isso por você, por mim nem por Caio, sim pelo filho de vocês. Tenho certeza de que Caio vai voltar. Eu não acredito que ele deixaria vocês por mim.

Ezequiel, ao surgir ao lado de ambas se alegra vê-las se abraçarem como grandes amigas.

Caio, ao entrar no ambulatório improvisado, onde estavam sendo atendidos os soldados, olha ao redor e se aproxima do médico que atende um deles: — Fui informado de que há, aqui, uma enfermeira voluntária chamada Dalva.

Médico aponta uma moça do outro lado, de costas para eles. Caio não sai do lugar. De longe, observa-a fazendo curativos em um jovem. — Vou chamá-la.

Caio, impede — Prefiro que não… Eu tenho um filho doente para cuidar com minha esposa. Ela me espera. Quero retornar para eles assim que esta maldita guerra termine.

General Artur, que chegava, observa os soldados feridos e outros mortos pelo chão, bate no ombro de Caio.

— Esta batalha está indo longe demais, soldado. Precisamos finalizá-la. Também tenho família me esperando. Pretendo voltar o mais rápido possível. Vamos invadir Canudos e pôr Conselheiro em seu lugar, debaixo da terra. Aí, sim, voltaremos tranquilos para nossa casa. Precisamos partir para o ataque. E que seja esta noite, sem falta.

Caio, com valentia e o desejo de vitória, sorri e faz continência:

— Conte comigo, general.

Juntos saem do ambulatório, sem que Caio vê o rosto da enfermeira, que tinha, por trás, os cabelos semelhantes aos de Dalva.

Durante a noite é feito o ataque. Canudos é destruído.

Meses depois, Dalva se casa com outro.

Ezequiel faz questão de assistir a cerimônia.

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