Cenário. Uma praça. Vinte cinco anos depois. Novos recrutas recebem contemplação diante a multidão. Entre todos estão Glória e Dalva, lado a lado. Dalva, alegre fala com a amiga – Ele é extraordinário, não é?
Glória – Não sei. Não o conheço. Nem dá para vê-lo daqui.
Dalva – Meu bisavô conheceu o avô dele, quando eram jovens. Disse que até parece ser a mesma pessoa. E se você quiser conhecer o soldado, ele está vindo aí. – e belisca Glória, no momento em que Caio passa por elas. Glória geme de dor. Caio para ao lado delas, e observa as duas. Carlos e outro soldado também param olhando as moças. Dalva pasma, dura. Glória sorri para o moço, que se aproxima e fala algo aos ouvidos dela. Glória se emocionada. Caio também sorri, e segue a fila passando por Carlos que o acompanha. O soldado também segue os dois. A multidão se espalha.
Dalva fica curiosa – O que ele lhe disse? – Glória olha o final da fila. Os soldados seguem a rua.
Carlos seguindo o primo – O que falou para a moça que a deixou tão alegre?
Caio – Que eu seria capaz de me casar com ela, se me desse outro sorriso tão lindo quanto aquele.
Carlos, surpreso – Você está brincando!
Soldado – Sabiam que ela tem um irmão negro?
Caio – Você conhece ela?
Soldado — O nome dela é Glória Maria. Ela mora perto da casa dos meus avôs. O pai dela é membro do Congresso Revolucionário. Ela tem um irmão de cor. Alguns dizem que a esposa traiu o marido. Outros que a mulher é uma pobre coitada, incapaz de fazer um gesto errado. A verdade ninguém conhece. Dizem ainda que a moça também corre o risco de ter um filho com a pele também escura. Isso é imprevisível se estiver no sangue. Como diz um velho ditado: “Tal pai, tal filho”, “tal mãe, tal filha” — e rindo levou dois dedos ao alto da cabeça, em sinal de chifres. — Quem sabe você pode ter mais sorte que o pai da moça, se falou sério com ela. Eu, por exemplo, apesar dela ser belíssima, não correria o risco. Quem garante que a moça não irá seguir o exemplo da mãe.
Caio olha para trás. — Tem certeza do que está dizendo?
Soldado vê Glória com Dalva – A moça continua no mesmo lugar, por que não vai tirar a dúvida com ela? – e sai. Caio encara Carlos que mexe as sobrancelhas com sinal de dúvidas.
Dalva – Você não levou a sério a conversa dele, não é?
Glória – Nem se eu levasse, será como qualquer outro quando souber que tenho um irmão negro. Todos pensam que a minha mãe traiu o meu pai e que posso seguir o exemplo dela. Mas isso não é verdade, minha mãe é inocente.
Dalva estremece vendo Caio se aproximar – O soldado vem vindo aí.
Glória olha para trás.
Caio chega – Verdade que você tem um irmão negro?
Glória olha para a amiga. – O que acabei de lhe dizer Dalva?
Zequinha chega correndo – Glória, a mãe mandou você ir para casa agora. Não é pra você ficar na rua.
Caio – Não precisa responder a minha pergunta, já tenho a resposta.
Glória puxa o menino e entra na frente, impedindo Caio sair. – Aqui está meu irmão negro. Olha bem a minha cor e a cor dele, é bem diferente. Mas o sangue que corre em minhas veias é o mesmo que corre dentro dele, porque somos filhos do mesmo pai e da mesma mãe, e não tenho motivos para me envergonhar disso. E pode retirar o que me disse àquela hora, soldado. Não levei em consideração.
Zequinha – É mentira dela. Glória não é minha irmã. Sou filho de uma escrava negra que me jogou no lixo, e a mãe dela me tirou de lá.
Glória – Zequinha para de inventar isso. – Zequinha foge correndo.
Dalva – Verdade o que disse ele, Glória?
Glória – Claro que não! É invenção da cabeça dele. – Olha Caio – Zequinha é meu irmão sim. Não tenho motivos para esconder isso de ninguém. – vira para a amiga – Tenho que ir. – faz continências em direção a Caio – Com a vossa permissão, soldado. Até nunca mais! – e sai sem olhar para trás.
Dalva e Caio ficam parados, acompanhando ela com o olhar, entreolham depois. Caio, outra vez, observa Glória indo distante – Nem todo o filho é como o pai. Nem toda a filha é como a mãe. – Dalva envergonhada se afasta. Caio indo embora passa por Carlos que o espera. Ele não gosta – Precisava me esperar? Até parece que nasceu grudado em mim. – Carlos nada responde e o segue.
Glória, sentando ao lado do irmão, no degrau da escada na frente da casa o reprime – Muito feio mentir, Zequinha. Muito mais quando é uma mentira dessa.
Zequinha encolhe os ombros e fala bicudo – Não menti! Você não é minha irmã mesmo. Olha a minha cor, olha a sua cor. É bem diferente. Nossa mãe que não devia mentir. Devia dizer que não sou mesmo filho dela, e pronto.
Glória – Se a mamãe ouvir você falar assim, vai ficar triste. Eu acredito nela. Posso me lembrar do dia em que você nasceu. Naquela época, eu já tinha doze anos, e lembro quando ela me disse que eu ia ganhar um irmãozinho. Você não imagina como fiquei feliz sabendo disso.
Zequinha – Você está falando isso porque quer me agradar, não precisa. Você e a nossa mãe deviam me desprezar também, como todo mundo. Até mesmo o nosso pai me despreza.
Glória continua – Papai ficou tão feliz no dia em que você nasceu e soube que era um menino. Ele queria tanto um menino. Lembro-me disso também.
Zequinha chora – Depois me odiou, quando descobriu que eu era diferente dele.
Glória – Você não é diferente do papai não, Zequinha. Você não é diferente de ninguém. O importante é o que você tem por dentro. No dia que papai descobrir o filho maravilhoso que tem, vai aceitar você do jeito que é. Tenho certeza disso. Depois, nem tudo na vida é como a gente quer. – levanta – Sabe de uma coisa. Vamos entrar que está na hora do papai chegar e a mamãe deve estar preocupada com a nossa demora, e seca o rosto, não deixe que ela perceba que chorou.
Zequinha entra na cozinha com Glória e encontra Clara preparando o almoço – Por que demoraram tanto? Eu já estava preocupada.
Glória rindo – O que falei, Zequinha? Que a mamãe estava preocupada com a nossa demora. – Zequinha, cabisbaixo, nada responde.
Clara – O que aconteceu, filho?
Glória – Nada mãe. Não aconteceu nada. A senhora precisa de ajuda com o almoço?
Clara – Preciso! Acabei me atrasando e seu pai deve estar chegando.
Glória joga a toalha no irmão – Não fica aí parado desse jeito Zequinha. Não ouviu a mamãe dizer que está atrasada com o almoço. Coloca a toalha na mesa, enquanto pego os pratos.
Clara – Você recebeu outra humilhação, não foi? – Zequinha continua imóvel.
Glória – Não foi nada disso mãe, ele só está…
Clara – Deixe seu irmão responder, Glória. – Ouvem barulho na porta da sala. Zequinha se apressa, estendendo a toalha na mesa.
Robson entra – O que é isso? Além de negro, vai virar marica ajudando na cozinha? – Zequinha corre.
Glória – A culpa foi minha, papai. Eu que pedi a ele que colocasse a toalha na mesa. Vou ver onde ele foi?
Robson – Volte e ajude sua mãe. Chega de bajular aquele negro.
Glória – Primeiro vou ver onde está o meu irmão, depois volto e ajudo a mamãe.
Robson segura ela – Não me desobedeça Gloria Maria, e não responda assim, sou seu pai e exijo respeito. Posso esquecer que já é uma moça e lhe dou uma boa surra. E depois, você não é criança faz tempo, para não entender certas coisas, como não entendeu o que eu estava fazendo, quando me impediu de matar esse negrinho no dia em que ele nasceu. Mas se você pensa que vai me impedir, está muito enganada. Ainda vou limpar a minha honra, com o sangue derramado daquele negrinho, da sua mãe e do maldito negro com quem ela me traiu. – Clara que mexia as panelas em cima da chapa do fogão, de costas para os dois, fecha os olhos em prantos silenciosos.
Glória sem medo das ameaças do pai – O senhor terá que me matar junto com eles. Porque acredito na inocência da minha mãe, e um dia a verdade vai aparecer.
Robson – A única verdade que existe é que sua mãe fez à mesma coisa que fez o pai dela. Quem garante que a sua avó não se matou de propósito, quando descobriu a traição do marido com uma escrava negra, que incentivou sua mãe fazer o mesmo, trazendo ao mundo um negrinho fedorento que destruiu nossas vidas desde o momento em que veio ao mundo. E se ainda tenho ele e sua mãe, vivos dentro desta casa, é porque limparei a minha honra, em praça pública, diante de todos nesta cidade, onde a maioria nem sequer me cumprimenta na rua, pela vergonha que a sua mãe me causou. – Clara tapa os ouvidos para não ouvir a discussão. Zequinha chora às escondidas na sala, próximo à porta, ouvindo a conversa. Robson prossegue com ironia – Esse negrinho só veio ao mundo para destruir tudo, até mesmo a sua vida ele está destruindo. Olha você! Com a idade que tem ainda não tem um pretendente. Nunca um homem de brilho, de respeito, vai aceitá-la como esposa, como consequências dos bons exemplos que recebeu. Todos lhe viram as costas quando descobrem de quem filha é. Ou será que estou mentindo? Diga-me Glória, estou certo ou errado? – Glória baixa os olhos, as lágrimas molham sua face.
Robson – Ainda bem que sabe que tenho razão. – vê Clara tapando os ouvidos e puxa bruscamente as mãos dela – Porque cobre os ouvidos? Tem vergonha de ouvir a verdade?
Clara – Você está me machucando.
Glória – Solte-a, pai! Pare com isso.
Zequinha entra correndo – Solte minha mãe, pai, não machuque ela.
Robson acerta um violento bofetão no menino – Não me chame de pai. Não fale comigo assim. – Glória entra na frente do irmão, antes que o pai o agarre novamente. Robson grita descontrolado – Desapareça da minha frente, maldito, se não quiser morrer agora.
Glória chora – Pare com isso, pai. Por favor? – e corre atrás do irmão que foge. Saindo no jardim grita, em desespero: – Zequinha! Zequinha, volte aqui.
Zequinha sai na rua, olha para trás – Diz pra mãe que nunca mais volto. – e foge.
Glória corre gritando – Zequinha! Zequinha! Volte aqui. Zequinha? – mas para, quando Zequinha vira a esquina. Curiosos param observando o desespero dela.
Na cozinha. Robson, senta ao lado da mesa – Estou esperando meu almoço.
Clara seca o rosto, pega um prato e serve o marido. Vê Glória entrar – Onde está seu irmão?
Glória – Fugiu! Não consegui alcançá-lo.
Robson – Melhor assim! Melhor ele nunca mais voltar, assim impede de eu matar a sua mãe, quando eu encontrar o maldito negro com quem ela me traiu.
Glória fala com a mãe – Vou atrás do meu irmão.
Robson grita com ela – Fique dentro desta casa, Glória Maria. Se me desobedecer indo atrás daquele negrinho, vou pensar que também não é minha filha. Então, não complique ainda mais a minha situação com a sua mãe. – senta novamente, puxa o prato – Agora me deixe comer em paz. Tenho que trabalhar. Ainda sou o homem que sustenta esta casa. Caso contrário, se ir atrás daquele moleque, se trazer ele para dentro desta casa, coloco as duas para a rua também. – olha para a filha – Agora senta você também e almoça comigo. O que aconteceu nesta casa hoje é um assunto encerrado.
Clara pega um prato e se serve – Faça o que se pai pediu, filha. Não vamos complicar a situação. Seu irmão vai ficar bem. Deus vai protegê-lo. – Glória balança a cabeça negando. Seca as lágrimas, puxa a cadeira e senta ao lado do pai.
Zequinha, andando pela rua entra em um beco sem saída. Encolhe em um canto e chora. Um homem negro se aproxima e o observa. Zequinha engole a saliva olhando o homem comer um pedaço de pão – Deve estar com fome – estende o pão – Coma. Vai se sentir melhor.
Zequinha chora – Quero a minha mãe.
Homem – Por que não vai onde está sua mãe? Somos livres agora, podemos ir e vir onde quisermos.
Zequinha – Não sou ex-escravo. Meu pai não me quer porque não tenho a cor dele.
Homem – Você pediu para nascer diferente da cor do seu pai?
Zequinha – Não. Mas eu queria ser igual a ele. Igual a minha mãe, e também igual a minha irmã. Não sei por que nasci diferente.
Homem – Ninguém é igual a ninguém, garoto. Devemos aceitar as pessoas como elas são. Cada um nasce com o seu jeito, e você tem que agir do seu jeito para que o seu pai o aceite, como é. Não é querendo ser igual a ele, ou igual a uma outra pessoa da sua família que vai conseguir provar que é um bom filho. Alguém, lá em cima, no céu, é quem escolhe como devemos ser aqui na terra, e você pode ser diferente do seu pai, por fora, mas por dentro, é igualzinho a ele. Tem o mesmo sangue dele, correndo em suas veias, fazendo bater no seu peito um coração. Como o sangue do seu pai também faz bater o coração dele.
Zequinha – Minha irmã também me falou isso.
Homem – Então, vê agora que sua irmã está certa?
Zequinha – Ela está certa porque não é igual a mim, é como os meus pais, e não sabe como me sinto por dentro.
Homem – Por que não pega o pão e come. Amanhã é um novo dia, atrás de um outro dia que virá e tudo se ajeita na vida. Basta acreditar! – Zequinha pega o pão e come. O homem vai saindo – Venha se juntar com os nossos, do outro lado. Lá ninguém é diferente, somos todos iguais, por fora e por dentro. – Zequinha não se manifesta – Bom, venha se quiser, lá tem comida, água e cobertores. Até mais ver, meu jovenzinho. Boa sorte.
Um Vento forte sopra, girando as folhas na rua. Zequinha se encolhe, sentindo frio e medo. Olha o homem um pouco distante, corre gritando: – Espere, vou com o senhor. – O homem espera e juntos seguem a rua. Logo se juntam com ex-escravos, do outro lado da vila. Alguns dormem no chão, outros comem na frente da fogueira. Zequinha e o homem sentam e comem com eles, depois vão dormir. No chão duro o menino vira de um lado para o outro. O vento sopra mais forte, Zequinha se encolhe de frio, levanta e vai na fogueira quase apagada, a um canto, protegida do vento. Tenta acender o carvão, mas não consegue. Ezequiel observa cada movimento dele e se alegra ao vê-lo se juntar às crianças, dividindo o cobertor. Levanta e se afasta sem ser notado. Desaparece em meio à luz que surgi do alto.
O vento forte percorre as ruas desertas. Entra pela janela de uma casa. Caio, estirado na cama, dorme. Em sonho, sua alma busca as recordações do passado. Ele vê Glorinha, em prantos, se jogando em seus braços, quando ele estava indo para a guerra. Também sonha com Dalva, no ambulatório improvisado, e depois indo com ela para a cama, entre carícias e beijos. Caio acorda assustado ao ouvir barulho. A cortina, em balanços, esbarra em algo, que caiu. Ele levanta fecha a janela. Lembra das duas moças, na praça, quando Glória sorri emocionada, após ele lhe cochichar aos ouvidos. Depois ela fazendo continência e seguindo a rua. Dalva parada ao lado dele. Decidido ele vai na cozinha, pega água e bebe. Ainda perturbado abre a porta e sai no jardim.
No quarto ao lado, Adalberto se mexe na cama, com o vento frio invadindo o ambiente. Sua alma também volta no tempo. Através do sonho se vê observando Ester colhendo rosas no jardim. Eram da mesma idade: quatorze anos. Ela sorri ao vê-lo. Adalberto se vê aborrecido, viajando numa carroça de boi por uma estrada deserta. Depois, moço feito, volta a pé, pela mesma estrada e chega no jardim. Uma senhora o atende na porta.
Mulher – Ester se casou, faz algum tempo.
Desapontado, Adalberto se vê seguindo pelas ruas, sem rumo. Dez anos mais velho, dentro de um estabelecimento, próximo ao balcão, toma vinho, observando uma moça loira, olhos azuis e cabelos cacheados, servindo os clientes. Tinha ela semelhanças de Ester. Tereza sorri, envergonhada, quando ele puxa conversa. Acaba levando ela na garupa do cavalo. Quinze anos depois, em praça pública, como soldado da realeza, faz barreira para dar passagem a um prisioneiro. Helena, treze anos, é arrastada por soldados, impedida de atravessar o cerco. Mauro (o soldado que estava com Caio e Carlos na praça) segura ele pelo braço, quando ameaça deixar o posto. O prisioneiro estava sendo colocado na forca.
Soldado — Você não pode sair daqui agora.
Adalberto se agita na cama, e sussurra: — Minha filha. Não era para ela estar aqui. Alguma coisa está errado.
Adalberto volta a se agitar, e vê Tereza deitada na cama, banhada em sangue, segurando o filho recém-nascido. Ele pega o bebê. A imagem de Tereza passa a ser de Helena, deitada em outra cama, com a mesma criança nos braços. Adalberto gira a cabeça de um lado a outro, e se vê próximo ao rancho. Ele aponta José Carlos e fala com ele. — Se chegar perto de minha filha de novo, sem a minha permissão, eu mato você.
E diante de Neto, segurando-o pelos ombros lhe diz: — Sua alegria é a minha felicidade. Sua tristeza é a minha angústia. – E ao acertar José Carlos no abdômen, com um punhal, acorda em sobressalto. Perturbado, e sem entender o sonho, percorre o olhar ao redor. Sente alívio em ver Ester dormindo. Levanta e vai no quarto ao lado. A filha de treze anos, dorme tranquilamente. Tem ela a fisionomia de Helena. Ele arruma o cobertor, cobrindo-a melhor. Quando entra no outro quarto, estranha vendo a cama vazia e desarrumada. Na cozinha, encontra a porta entreaberta. Pega o lampião e sai no jardim. Encontra o filho, sentado, olhando a lua que surgia entre as nuvens.
Adalberto — O que está fazendo aqui?
Caio — Pensando.
Adalberto — Em quê?
Caio, com ar alegre: — Não era para o senhor estar dormindo?
Adalberto senta ao lado dele e também brinca: — Não era para você também estar dormindo? — riam. O pai explica: — Você saiu com seus amigos depois do jantar. Como não escutei chegar, fiquei preocupado. Na verdade, levantei porque tive um pesadelo. Não quero nem lembrar. Ainda bem que só foi um sonho tolo, com o seu primo, com a sua irmã, com você, e como não estava na cama saí a sua procura. Achei que não estava bem.
Caio – Não acredito que sonhos tem algum significado. Não tem explicação lógica, pelo menos eu penso assim. Eu também tive um sonho estranho. Primeiro sonhei que estava indo para uma guerra, deixando alguém me esperando, em algum lugar, não sei onde, e acabei conhecendo outra moça. – Adalberto fixa o filho. Caio estranha: — Por que me olha assim?
Adalberto — De qual delas você gostou mais?
Caio — Não sei. As duas mexeram comigo. — Depois de pausa — Diz uma coisa, pai? Um homem pode se apaixonar por duas mulheres ao mesmo tempo.
Adalberto — Pelo que falou do sonho, deixou uma e depois conheceu a outra.
Caio — Não me refiro ao sonho. Estou falando o que aconteceu comigo, outro dia, quando vi duas moças juntas, na praça. Não consigo parar de pensar em nenhuma delas. Na verdade, senti uma sensação estranha vendo as duas juntas. Não sei qual delas me chamou mais a atenção — sorri. — Bom, vai ver que foi por isso que sonhei com elas, deixando uma e ficando com a outra. Estranho meu sonho, não acha?
Adalberto fica em silêncio. Depois de alguns segundos, bate de leve no peito do filho: — Escuta a voz do seu coração. Não acredito que um homem possa ter por duas mulheres o mesmo sentimento. O coração é quem descobre o verdadeiro amor, aquele que vem da alma. “Almas gêmeas”, podemos assim dizer, é quando um homem e uma mulher nascem determinados por Deus a viverem um grande amor e se multiplicarem através dos filhos. É assim que vejo a minha vida ao lado de sua mãe. Um homem realizado em tudo que fez e ainda faz. Quero isso também a você. Que encontre a sua metade, sua Alma Gêmea, e que seja um homem completo. Que não se deixe levar pelo desejo da carne, por uma paixão qualquer. Esse tipo de sentimento acaba com o tempo, o amor não. Nem o tempo consegue destruí-lo.
Caio — Nunca pensei ouvir do senhor palavras tão bonitas. Fico feliz em saber que é apaixonado pela minha mãe.
Adalberto — O amor, quando é puro e verdadeiro, é para a eternidade. Amei sua mãe desde o primeiro momento que a vi.
Caio — No dia em que a minha avó Dalva revelou ser sua verdadeira mãe e Neto seu pai. Já me contou isso.
Adalberto busca, na lembrança, a conversa com a mãe, após Neto deixar a casa de Dalva. — Por que titia está chorando assim? O que aconteceu? O capitão lhe fez algum mal?
Dalva abraçou-o: — Preciso lhe dizer uma coisa, Adalberto. Você deve saber por que sempre foi meu sobrinho mais querido. Mas só digo se me fizer um juramento. Jura que nem mesmo o capitão irá saber desta nossa conversa, caso um dia você volte a encontrá-lo? Jura que será um segredo só nosso, pelo resto da vida.
Adalberto — Juro, tia, que nada conto a ninguém. Agora, me diga, por que está chorando?
Dalva — Minha vida está toda errada. Logo você se tornará adulto, um homem feito. E você precisa saber a verdade — toca-o no rosto com carinho. — Você é meu filho, Adalberto. Meu e do capitão Neto.
Adalberto, confuso balança a cabeça que não, se distanciando dela.
Dalva puxa ele e o abraça pelo pescoço, chora: — Perdão, Adalberto. Eu não devia ter-lhe dito nada. Desculpe.
Adalberto se livra do abraço, e sai em disparada em direção à rua.
Dalva – Adalberto! Volte aqui.
O garoto corre, sem rumo. Ao virar a esquina choca-se, de frente, com Ester. Tinha ela sua idade, e carregava alguns pacotes, os quais caem pelo chão. Ele para, assustado. Com ela lhe dizendo.
Ester — Você é maluco, garoto? Que susto me deu.
Adalberto, com o rosto banhado de lágrimas, pede desculpas e vai saindo, mas retorna, com ela, brava: — Hem, garoto, volte aqui. Não vai pegar os meus pacotes do chão? Você quem os derrubou. Seus pais não lhe ensinam bons modos?
Adalberto seca o rosto com as mãos, volta e pega os embrulhos, coloca-os de volta aos braços dela. Vai saindo. — Espere? — e aponta, com o queixo, o outro lado onde havia um pacote. Envergonhado, Adalberto pega e o coloca também com os outros. Ela sorri — Obrigada. Você é um bom cavalheiro. – Ficam parados, um esperando o outro sair. Um pouco desapontada Ester pergunta: — Você estava chorando por quê? – Ele olha o chão. Ainda aguardava ela sair primeiro. ─ Meu nome é Ester. Qual é a sua graça?
Adalberto — Adalberto Montovane.
Ester — Mora aonde?
Adalberto — Do outro lado do bairro. E você?
Ela aponta, com o queixo, a casa atrás dele. Adalberto estava na frente do portão, impedindo a sua passagem. Ele ri, e abre o portão.
Ester — Obrigada, Adalberto. Você é mesmo um bom cavalheiro.
Adalberto. No jardim com o filho. — Como estava anoitecendo, voltei no outro dia bem cedo para falar com a sua avó. Saber, em detalhes, o que ela tinha para me contar a respeito do meu pai. Passei em frente a casa de Ester — sorri, emocionado. — Confesso que meu coração bateu mais forte, quando a vi no jardim colhendo rosas. Ela estava tão linda que me apaixonei na mesma hora. Nunca me senti atraído por outra, então, não creio que um homem possa amar duas mulheres com o mesmo amor. Ele se realiza quando encontra a pessoa certa. Você vai descobrir qual é. Ame-a, sem medo de ser feliz. Só não pense em querer ficar com as duas. Isso acaba não dando certo. Bom, pensando bem, não vejo nenhum mal, se as duas concordarem, é claro.
Caio ri — Não acredito que estou ouvindo isso de alguém tão sério, rígido e disciplinado como é meu pai.
Adalberto — Vai ver que é porque você é meu filho e lhe abro uma exceção. Mas, voltando a falar sério, o que não quero é que você sofra por nada. Seja qual for o seu caminho, estarei sempre do seu lado, aconteça o que acontecer. Pode sempre contar com o meu apoio em qualquer escolha que fizer. “Sua felicidade é a minha alegria e a sua tristeza é a minha angústia”. Falei isso a você agorinha mesmo, no sonho que tive. -Caio o olha sério. — Não está acredita em mim?
Caio — Claro que sim! É que senti uma sensação estranha ouvindo o senhor falar assim, como se já estivesse me dito antes. E me fez bem essa nossa conversa. Sempre pensei que o senhor seria contra eu escolher, sem sua ajuda, uma moça para se tornar minha esposa.
Adalberto — Não sei por que pensou assim. Nunca falamos a respeito disso antes.
Caio — Talvez pelo costume dos pais, de escolher com quem seus filhos devem se casar.
Adalberto — E depois que conheceu as duas moças, pensou que eu poderia ser contra você escolher uma delas?
Caio — Vou deixar meu coração escolher qual devo amar de verdade.
Adalberto — Isso mesmo, filho. O coração é a chave da felicidade. Nunca devemos esquecer isso — olha o tempo — Melhor voltarmos para cama. Pelo jeito ainda vai demorar a amanhecer. Podemos dormir um bom tempo ainda. — Caio concorda e juntos entram, fechando a porta.