O dia amanhece. Glória, sentada em volta da mesa com a mãe, serve as duas, com chá e bolo.

Clara aborrecida – O que seu irmão deve está comendo? Onde dormiu? Como dormiu? Ventou frio a noite toda.

Glória levanta – Não vou ficar aqui sentada, sem saber onde está meu irmão. Vou sair e procurá-lo, o dia inteiro se for preciso.

Clara – Não piore tudo com seu pai, filha, ele está certo, a culpa é toda minha!

Glória senta – Mamãe, o que está dizendo.

Clara – Não é o que você está pensando. Não é nada como pensa o seu pai, nem o que essa cidade inteira imagina. Tudo é apenas o que eu e o seu pai merecemos. Ele odeia uma negra que a eu tenho como minha mãe. Passei a odiá-lo, depois que ele também me afastou do meu pai. Esse ódio foi se transformando em nojo, e cada vez que ele tocava em mim, eu rezava, pedia a Deus que seu pai morresse. Depois que o seu irmão nasceu, seu pai nunca mais tocou em mim.

Glória – Que culpa tem o meu irmão da ignorância de meu pai e do amor que a senhora sente por uma negra que a criou desde o dia em que nasceu, como se fosse sua verdadeira mãe? Isso não é uma explicação lógica mamãe! Meu irmão é quem mais sofre com tudo isso. – pega a mão da mãe – A senhora nunca pensou que Francisca possa ser, sim, a sua verdadeira mãe? Isso seria a resposta certa?

Clara – Seu avô não mentiria pra mim. Ele não teria escolhido a você o nome de sua avó, Glória Maria, se Francisca fosse minha verdadeira mãe. Porque meu pai faria isso? Por que ele me deixaria sofrer tanto, sem me dar essa resposta certa?

Glória – Será que o vovô não estava querendo poupar todos nós de uma humilhação maior? Mesmo a senhora sendo filha dele não deixaria de ser uma escrava, e eu também seria, apesar de que a escravidão acabou, e seríamos hoje, mulheres livres, como qualquer outra.

Clara se afasta – Para com isso, Glória! Não vamos procurar razão onde não existe. Seu avô me daria uma mãe morta. O que ele estaria ganhando com isso? Não acredito que meu pai, aquele que muitas vezes disse que me amava, me deixaria se casar com um homem branco, sem me alertar que poderia ter um filho da cor de minha mãe, se Francisca fosse minha mãe, é claro!

Glória – E se a verdade for mesmo essa, mamãe? Se um dia surgir essa verdade!

Clara – Seu pai terá que cumprir a promessa dele comigo, com ele e com o seu irmão, porque Francisca não tem culpa de ser negra, muito menos teria culpa de ser minha mãe.

Glória – O que me intriga, por que papai odeia tanto essa mulher. Só por que ela é negra. Quanto ao meu irmão, que culpa tem ele de ser negro! Será que talvez não fosse para que vovô dissesse toda a verdade para a senhora.

Clara – Você não sabe o que está dizendo, Glória. A desavença entre eu e seu pai não começou quando o seu irmão nasceu. Tudo começou bem antes, mesmo antes de você nascer. Começou no dia do meu casamento. Seu pai não gostou da presença de Francisca ao meu lado, no altar, e tudo piorou no dia em que você nasceu. Seu pai também não aceitou a filha dele nascer pelas mãos de uma negra, e a expulsou de dentro desta casa, como se ela fosse uma cadela sarnenta. Foi onde começou o meu ódio por ele. Se tiver alguém culpado pelo ódio que sinto pelo seu pai, esse alguém é você, por ter nascido, justamente, no dia em que Francisca e meu pai chegaram aqui para me visitar. Pelas minhas contas ainda faltava dois meses pra você nascer, e eu sei que não estava errada.
Glória chora. Clara o abraça, também em prantos – Desculpe, filha, me perdoe! Eu não devia ter-lhe dito isso. Sempre guardei de você. Claro que você não tem culpa de nada. Que culpa tem você dá implicância do seu pai com Francisca?

Glória – Uma explicação tem que ter sim, mamãe! Se eu tenho culpa pelo seu casamento fracassado, um dia essa explicação vai aparecer. Eu tenho certeza que vai! Se for preciso, vou atrás dela, onde quer que esteja e vou tentar corrigir o meu erro. Eu juro que vou! – Abraçadas, choram.

Carlos passa numa rua e vê Zequinha entre os ex-escravos. Matuta e segue o caminho. Para de frente à casa de Glória. Ela sai no jardim e vê Carlos, quando olha para os dois lados na rua. Ela e Carlos entreolham. Alguém aparece na rua, tirando a atenção dos dois. Glória entra em casa, fecha a porta e se apoia nela.
Clara, na sala, percebe a tensão da filha. – O que foi, Glória? Você está pálida.

Glória – Fui na rua, com esperança de ver Zequinha e… Deixe pra lá. Não aconteceu nada. Vou colocar as roupas que lavei, no varal.
Sem nada entender, Clara olha pela janela, em direção à rua. Nada vê. Carlos havia se afastado. Ele para um pouco distante, suspira fundo e decidido segue o caminho. Logo chega no barracão do quartel. Olha sério para o primo que troca de botinas. Caio percebe e é grosseiro: – Porque está parado me olhando desse jeito? Por acaso quer me dizer alguma coisa? Se quiser desembucha. Diz logo, porque não tenho tempo a perder com você.
Carlos nada responde. Vai no armário e pega um par de botinas. Olha novamente o primo que também mexe no armário ao lado. Caio volta a falar com ele, com arrogância – Sabe qual é o seu problema, Carlos? Vou lhe dizer qual é! Você parece sentir medo de abrir a sua boca, dizer até mesmo o que pensa. Quando quiser dizer alguma coisa, diga, mesmo que seja uma tolice. Melhor que ficar calado, esperando que adivinhe seus pensamentos. É isso, não é? Você olha uma pessoa, principalmente a mim, esperando eu adivinhar o que pensa. Devia ter nascido mudo, assim seria mais fácil aceitar esse seu comportamento. Odeio quando me olha de boca fechada, como se esperasse eu sentir pena de você. Isso não vai acontecer nunca. Você é uma pessoa tão normal quanto eu.
Calado, Carlos troca as botinas. Caio o empurra quando passa por ele, como se Carlos estivesse no seu caminho. Carlos continua no lugar, pensativo, logo também sai, na direção onde o primo saiu.

Cenário. Rua iluminada com lampiões. Juntamente com outros soldados, Carlos e Caio descem a rua. Eles param quando vê Glória vindo na direção. Glória passa pelos soldados que a segue com o olhar. Glória aperta os passos. O soldado brinca com Caio – Não vai pedir a moça novamente em casamento?

Caio encara os companheiros. Depois Glória indo distante. Olha Carlos e rapidamente segue a moça. Os companheiros ficam no lugar, menos Carlos que o segue. Caio alcança Glória e chama: – Moça?

Glória para, fica tensa com a presença de Carlos que também chega. Caio fala com ela – Perigoso uma moça andar sozinha na rua a esta hora da noite. Precisa de ajuda?
Glória pensa e depois responde – Meu irmão fugiu de casa, depois de uma discussão com meu pai. Estou tentando encontrá-lo. Com licença? – e sai quando chegam outros soldados. Os rapazes ficam parados.

Caio – Temos até o amanhecer para encontrar o garoto.
Um soldado – Estou fora disso. Estou indo pra casa.

Caio segura ele – Isso não é um pedido, é uma ordem.

Carlos – Sei onde está o garoto. Eu o vi, outro dia, na companhia de alguns ex-escravos, no alojamento onde estão depois que foram expulsos pelos seus donos.
Outro soldado – Espere, aí? Meu pai também tinha escravos, e teria ficado com eles depois da abolição, se não preferissem vir para a cidade, abandonando a fazenda do meu pai. Muitos fizeram isso com seus donos.

Carlos – Será que não continuariam trabalhando de graça, apenas em troca de serem livres das correntes e um pouco mais de remédio e comida?

Caio encolhe ás sobrancelhas, surpreso pelo comentário do primo.
Outro soldado – Seria melhor que ficarem nas ruas, sem casa, sem comida, vivendo como mendigos, implorando um pedaço de pão. A princesa Isabel pensou na liberdade deles, mas esqueceu de todo o resto.

Caio – Esperem, aí! Não vamos ficar aqui discutindo quem fez o certo ou errado com essa pobre gente. Tem um garoto perdido entre eles e precisamos encontrá-lo.
Carlos – Vou com você atrás do garoto. Vamos embora, não precisamos do resto. – Os dois se afastam, apenas um dos companheiros segue junto.

Glória entra em casa e fica surpresa em ver a mãe na sala – Onde estava, Glória?

Glória – Não consegui dormir, então saí pela rua na esperança de encontrar meu irmão. Não imaginei que a senhora fosse acordar antes que eu chegasse.

Clara – Eu também não consegui pregar os olhos, ouvi barulho, vim ver quem era. Você tinha saído. Não fui atrás porque não sabia onde encontrá-la, e seria pior se o seu pai descobrisse que saímos no meio da noite.
Naquele instante, batidas na porta.

Glória – Quem deve ser a esta hora? – e se alegra – Será que meu irmão voltou? – Fica surpresa com a presença de Caio, Carlos e o outro soldado.

Caio coloca o menino na frente dele – Tem alguém aqui que precisa de banho morno e uma sopa bem quente.

Glória pega o irmão – Você não devia ter fugido daquele jeito, Zequinha.
O menino ameaça dizer algo, vê o pai chegar. Caio alegre fala com ele – Vê se não foge mais de casa, garoto. Assim não deixa a sua irmã tão preocupada.

Glória – Obrigada, por trazê-lo de volta. Onde o encontrou?

Caio – Não fui eu! – aponta Carlos ao lado – Foi o soldado Carlos, que viu ele, outro dia, juntos com os ex-escravos, do outro lado da vila.

Glória e Carlos entreolham. Glória disfarça – Obrigada, por trazê-lo de volta. – Carlos nada responde, olhos fixos na moça.

Clara – Que bom vê-lo novamente em casa, filho. Obrigada, por encontrá-lo, soldado. Sou grata por trazê-lo de volta.
Glória puxa o irmão – Você está sujo, todo molhado, precisando de banho. Venha comigo. E nunca mais faça a besteira de fugir de casa, como fez. – saem.

No quartinho, Glória coloca água na banheira falando com o irmão – Você queria matar a mim e a mamãe de tristeza, fazendo o que fez?

Zequinha – Já matei nossa mãe quando nasci. E ele está certo. Vim a este mundo só para trazer tristeza.

Glória, brava – Nunca mais fale assim! Quando você nasceu à vida do papai e da mamãe já não eram mil maravilhas. A mamãe me contou tudo. Você não tem culpa de nada. A briga entre os dois começou quando eu nasci e não você.

Zequinha – Eu só vim porque o soldado me disse que você estava andando sozinha, no meio da noite, procurando por mim. Fiquei preocupado com você.

Glória – Nunca mais fuja de casa. Como poderia viver no meio da rua? Olha como você está? Parece um mendigo!
Zequinha, aborrecido – Eu só era mais um negro no meio dos outros. Ele não me quer aqui, pude ver isso nos olhos dele.

Glória se irrita – Ele é o seu pai, Zequinha! Nada que você faça, vivendo na rua, vai mudar a vida dele com a mamãe. Bota isso na sua cabeça.

Zequinha – Pelo menos a sua vida eu posso mudar. Ouvi, muito bem, o que ele disse aquele dia. Então é só você dizer a todos que não sou seu irmão, e nem ir atrás de mim, assim vai encontrar um homem bom que se case com você, sem eu por perto.

Glória, com ternura, faz um chamego no irmão – Não vou mudar a minha vida, Zequinha, em troca de você sair pelo mundo. Você ainda é uma criança, não sabe se cuidar. Mas, eu prometo. Não sei como, mas prometo que vou encontrar um jeito de ajudar você. Confia em mim!

Zequinha – Como vai fazer isso? Vai inventar uma mágica e mudar a minha cor?

Glória – Claro que não! Isso é impossível. Vou procurar a verdade e provar ao nosso pai que você é filho dele. Vou fazer isso nem que custe a minha vida. Nunca vou deixar que papai faça algum mal a você, ou a nossa mãe.

Zequinha – E se você não encontrar um homem de bem, que aceite se case com você, por eu ser seu irmão?

Glória se emociona – Pois, fique sabendo. Não me importo de morrer solteira, se eu não encontrar um homem que aceite você como meu verdadeiro irmão. Agora tome seu banho. Vou lhe preparar uma sopa bem quente. – Glória se afasta. Zequinha percebe alguém chegar, fica espantado vendo o pai, de pé, na soleira. Robson encara ele, fazendo gestos positivos com a cabeça, com ar ignorante, e se afasta. Zequinha, muito assustado tira a roupa e entra na água tomando banho apressadamente.

Na cozinha, Clara termina de fazer o prato. Zequinha ainda muito assustado chega. Clara nada percebe, pede que ele come. Zequinha senta ao lado da mesa, treme muito. Glória que preparava o suco percebe – Você deve estar com muita fome, olha como está tremendo. Deve ser de fraqueza.

Zequinha engole, com dificuldade, o alimento. Clara percebe a inquietação. Senta ao lado e pega a mão dele – Não precisa mais fugir de casa, filho. Seu pai nunca vai lhe fazer um mal pior. Ele não vai encontrar a resposta que procura. Quanto a você, Glória, nenhum homem precisa ter o preconceito de se casar com você. Basta ele não ser racista e aceitar seu irmão como parte da família. Eu descobri que o seu pai era racista, depois que estava casada. – Pega a mão da filha, colocando junto com a mão do filho. – Olhem bem essas duas mãos, são perfeitas e iguaizinhas. A única diferença que existe entre elas é a cor. Mas não passam de mãos, que não fazem nada, não teriam movimento, nem vida, se não estivesse junto delas um corpo, um coração, tudo que o ser humano tem por dentro. Ninguém é melhor que ninguém, filhos. A cor da pele não significa nada, se não existir o sangue que gera a vida. – vira para o filho – Dentro de você e de sua irmã correm o mesmo sangue, porque são filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Você pode ser diferente da sua irmã por fora, mas por dentro é igualzinho a ela, ao seu pai e a mim também. Você é igual a qualquer outra pessoa que existe no mundo. Todos nós temos a mesma cor de sangue. Sangue que corre dentro das veias fazendo bater o coração.

Clara pega uma faca de ponta fina, em cima da mesa, e fura a ponta do dedo, secando o sangue em um pano branco. Depois estende a faca e o pano para a filha – Faça você agora, Glória, o mesmo que fiz? – Glória obedece. Clara pega a faca o pano e os estende ao filho – Agora é a sua vez. – Zequinha hesita um instante, cria coragem, pega a faca e também fura a ponta do dedo. Clara dobra o tecido, depois estende sobre a mesa. Pede ao filho – Agora mostre. Qual mancha de sangue é a sua, a minha e de sua irmã?

Zequinha, sem ver diferença se alegra – Você não precisa buscar a verdade, como me prometeu, Glória. Sou mesmo igualzinho a você, a nossa mãe, e também ao nosso pai. Nada me importa agora, e não vou ter medo dele. Nunca mais. Vou ser o melhor filho. E um dia, ele terá muito orgulho de mim. – Mexe os ombros – Pelo menos vou acreditar e esperar. Nem que eu morra tentando.

Clara faz chamego no filho – Isso mesmo, filho! O importante é ser o que somos por dentro, e não o que desejamos ser por fora. Agora termine seu jantar. Ainda temos tempo de dormir um pouco, antes de amanhecer o dia.

No quartel. Os soldados comem sentados em volta da mesa. O soldado que acompanhou Carlos e Caio a casa de Glória, comenta: – O soldado Caio está mesmo apaixonado. Precisavam de ver a satisfação dele, fazendo a caridade de levar o garoto de volta para a casa dos pais, entregando-o para a irmã. – Todos riem, menos Caio que não gosta do comentário, olhando seriamente o soldado.

Carlos – Tem homem que nasce para ser corno.

Caio joga ele longe, com socos certeiros no nariz – Repete! Repete o que você disse se for homem? – Os companheiros tiram ele de cima do primo. Adalberto ouvindo a gritaria aparece correndo no pátio.

Na sala. Adalberto – Qual dos dois vai me dizer o que aconteceu? – Os dois ficam calados. Adalberto se irrita – Estou aguardando uma explicação! Quero saber o motivo da briga entre os dois?
Caio e Carlos entreolham calados. Adalberto decide – Os dois estão suspensos por um mês. Podem ir para casa.

Carlos, desapontado – Meu pai vai me matar. – vira para o primo – Falei aquilo sem pensar, sem querer, nem sei por que falei, me desculpe? – Caio não se manifesta olhando-o com ódio.

Adalberto – O que foi que disse ao seu primo que mereceu pancadas?

Carlos – Falei mesmo sem pensar, tio. Nem sei por que falei.

Adalberto – Estranho! Você nunca é de falar nada mesmo. Sempre está calado. Confesso que estou surpreso pelo que tenha dito ao seu primo. – Vira para o filho – O que ele disse a ponto de você enchê-lo de pancadas?

Caio – Me chamou de corno. – Um soldado que está de pé, próximo à porta, solta risos. Os três olham ele, que pede desculpas e se mantêm sério.

Adalberto olha sério os rapazes. Depois solta gargalhada. Até mesmo o soldado próximo à porta, estranha a atitude dele, que rindo pergunta ao filho – Isso é motivos para quebrar a cara do seu primo como quebrou? Olha o estado em que o deixou?

Caio, indignado – Não acredito que o senhor está levando isso como brincadeira. De muito mau gosto, pela minha parte.

Adalberto – Acaso, você é casado para atribuir como tanta ofensa? – vira para o sobrinho – Quanto a você, Carlos? Qual motivo que o levou a chamá-lo assim? Não vão me dizer que é o resultado da boa ação que praticaram ontem, encontrando um garoto perdido na rua, levando-o de volta para a casa dos pais?

Caio – O senhor já soube?

Adalberto – Até mesmo que foi ordem sua encontrar o menino. – Aponta o filho – Que isso não se repita aqui dentro. E não estou falando da boa ação que praticaram, mas sim, das indecentes pancadas que recebeu seu primo, por uma bobagem dita por parte dele. Os dois têm nome a zelar aqui dentro, principalmente você que é meu filho. Pensa que não sei, que desde criança, sempre procura motivos para implicar com o seu primo, que nunca lhe faz mal. E, conhecendo ele como conheço, com certeza falou o que falou sem pensar. Ou, será que existe outro motivo maior que levou os dois a essa confusão toda?

Carlos – Claro que não, tio. Foi apenas uma brincadeira. Um mal-entendido que meu primo levou a sério, talvez, por levar a sério também o que ele falou para a moça.

Adalberto – Não sei porquê, mas imaginei que existia um rabo-de-saia envolvido nessa briga dos dois.

Carlos, cabisbaixo – Não sou contra meu primo se casar com ela, apesar de que preconceitos existe.

Adalberto – Preconceitos? De quê preconceito você está falando?
Carlos nada responde, apenas olha o primo cabisbaixo. Adalberto também olha o filho, depois Carlos que monstra perturbação, e pergunta ao filho – Ela é uma das moças que você me falou outro dia?

Caio ainda cabisbaixo, pensativo – Sim!

Adalberto percebe que Carlos encara o primo outra vez, quase o devorando com o olhar – Quanto a você Carlos, qual seu interesse pela moça?

Carlos disfarça – Não sei porque meu tio pensa que também tenho interesse nela.
Adalberto – Não tem mesmo?!
Carlos, sem encará-lo – Não, senhor! Apesar de ela ser uma belíssima moça.

Adalberto – Em meio a um preconceito. Acho que começo a entender o motivo da briga. Quanto você Caio José, o que me diz?

Caio – O senhor se casaria com a minha mãe, se soubesse que a mãe dela traiu o esposo com outro, diferente da sua cor?

Adalberto franze o cenho, senta na cadeira e calmamente responde – Eu depositaria toda a minha confiança nela, deixando de lado todos os preconceitos, é claro, depois da certeza do meu amor por ela e do amor dela por mim. E não deixaria que nada impedisse de vivermos um grande amor. – Os dois rapazes entreolham tensos, e olha Adalberto que continua – Refiro-me também aos dois, que deveriam pensar bem a respeito disso, principalmente você, Carlos. Não acredito que falou o que falou ao seu primo sem saber o que dizia. Tudo tem uma explicação lógica. Não concorda comigo?

Carlos – Não sei o que meu tio querer dizer com isso.

Adalberto – Tudo bem! Vamos fingir que você não sabe mesmo o que estou falando. E lhe digo ainda. Na vida de uma pessoa nada acontece por acaso, só porque tem que acontecer. Existem mistérios entre o céu e a terra que jamais o homem vai conseguir entender, e vocês dois, com certeza, não são o que são por acaso. A única coisa que não quero, nesta minha vida, é ver meu filho inimigo de alguém, muito menos que ele tenha inimigos, principalmente você, Carlos. Muito mais ainda por causa de uma moça. Agora me deixe sozinho com o seu primo, eu preciso ter uma conversa a sós com ele. Vá cuidar dos ferimentos e trocar o uniforme. – Carlos pede licença e sai. Para no corredor. Suspira fundo e se afasta.

Na sala. Caio – Meu pai não está pensando que o Carlos está apaixonado pela moça?

Adalberto – Eu poderia me meter nesse assunto, mas não vou. Porque outro dia, você me disse que deixaria seu coração escolher a pessoa certa para ser sua esposa. – dá pausa, enquanto pega algo para beber. – Ás vezes, você me lembra muito o seu avô. Sei que já conhece partes de muitas coisas que aconteceu com ele, mas, existem outras que você ainda não sabe, porque não contei a ninguém, nem mesmo para a sua mãe. Seu avô Neto teve dois grandes amores, e não foi feliz com nenhuma. Como isso parece repetir com você, espero que faça a escolha certa. Não quero que sofra nenhuma decepção na vida, como meu pai sofreu. Quero que descubra qual delas você realmente gosta, antes de pensar em casamento. – Caio ameaça dizer algo, o pai fala primeiro – Não precisa me dizer nada, já falamos a respeito disso, outro dia. Apenas irei repetir. Ouça a voz do seu coração. Deixe que ele fale por você, e qual for a sua escolha, estarei do seu lado. Agora pode ir também. Está dispensado. Espero que o que aconteceu hoje não se repita aqui dentro e muito menos lá fora. Tenta combinar um pouco com seu primo. Ele não passa de um pobre coitado que não tem boca pra nada, e sempre procura ser seu amigo. Tanto que não lhe deu nenhum arranhão.

Caio – Acabei agindo por impulso. Quando me dei por conta estava batendo nele. Bom, vou falar com o Carlos. Pedir desculpas pelo que aconteceu. – sorri – Devo reconhecer que ele não passa mesmo de um pobre coitado, incapaz de matar uma mosca.

No vestuário. Da soleira Caio observa Carlos. O sangue ainda lhe escorria pelo nariz. Um dos olhos estava roxo e a boca inchada.

Caio se aproxima: — Quero que saiba de uma coisa, Carlos. E pode não acreditar no que vou lhe dizer, mas é verdade. Desde quando me entendo por gente, sentia uma vontade louca de quebrar sua cara. Sei que você nunca me fez mal, mas era algo que vinha do meu interior. Não sei explicar. Meu sangue fervia todas as vezes que você chegava perto de mim. Era uma sensação horrível como se esse desejo viesse da minha alma. O que hoje aconteceu, foi eu aproveitar o momento e lhe dar a surra que sempre desejei. E agora, vendo você todo quebrado, aquela vontade inexplicável acabou. Acho que coloquei para fora o que estava preso dentro de mim. Tanto assim, que estou sentindo pena de você. Outro dia, falei que isso jamais iria acontecer, mas aconteceu. Devo reconhecer que se eu quisesse matá-lo com minhas mãos eu o teria feito, porque você não reagiu. Não me deu nem sequer um arranhão para se defender. Na verdade, nem sei como conseguiu ser soldado. Acredito que se tiver de eliminar alguém, corre o risco de se deixar matar. Olhe lá se não for com a própria arma — e ri.

Carlos continua sério. Ainda limpa o ferimento: — Acho que tento ser aquilo que nunca imaginei ser na vida. Eu sempre quis ser como você, como seu pai. Duas pessoas fortes, orgulho de nossa família. Eu, um fracassado em tudo. Nunca vou conseguir ser como você. Não nasci com a sua sorte, tendo o seu pai ao seu lado vinte e quatro horas por dia, apoiando-o em tudo. Quanto ao meu pai, ele me trata como se eu fosse um estranho, num lugar que também sinto não ser o meu. Nem sei por que vivo. Minha vida não tem graça. Nunca vou conseguir nada de bom.

Caio, aponta ele, com gestos arrogantes: — Essa é a bronca que sempre tive de você, Carlos. De sempre se achar incapaz. Porque não tenta conseguir tudo o que deseja por si mesmo, sem esperar que seu pai o faça por você? Não quero que o meu decida, por mim, o meu futuro. Ele também prefere não fazer isso, e aceito a atitude dele, sabe por quê? Se eu fizer uma escolha errada, não culparei ninguém nem mesmo a família pelo meu fracasso. A escolha foi minha. Quem garante que seu pai, agindo da maneira dele não deseja que você também faça o mesmo, escolhendo o seu próprio futuro? Você é muito mais inteligente do que imagina. Tem bom-senso, respeita as pessoas, os sentimentos delas, sem se importar com quem são e como elas são. Isso é bom em um homem, que só tem a ganhar.

Carlos — Até agora não ganhei nada de bom.

Caio — Será que não? Pelo menos eu acredito que ganhou, e muito. Prometo ser, de agora em diante, seu melhor amigo, sem mágoas. Podemos ser amigos, de verdade?
Carlos olha a mão estendida. Lembra de Glória, das vezes que se entreolharam, depois ela agradecendo pela volta do irmão e também de seu sorriso quando Caio cochichou-lhe ao ouvido.
Caio, ainda de braço estendido — Não aceita ser meu amigo?

Carlos sorri e aperta-lhe a mão: — Amigos, de verdade, para sempre.

Caio — Olhe que “para sempre” é tempo demais. Mas, aceito. Amigos, de verdade, para sempre.

Carlos — Se deseja mesmo se casar com a moça, decida de vez. Não a deixe esperando tanto tempo. Faça-a feliz. Ainda que um dia descubram que fizeram a escolha errada.

Caio — Porque está me dizendo isso? Não vá me dizer que você também…

Carlos saindo — A gente se vê. Boa sorte. Felicidade aos noivos.
Caio permanece no vestiário, intrigado pela conversa. Também sai e na rua para pensativo. É despertado por uma senhora que lhe estende uma rosa vermelha. Ela usa vestido velho e lenço na cabeça. Falta dentes na boca — Compre uma rosa, seu moço, e leve de presente para sua amada.

Caio observa a flor, depois o cesto que a mulher segura, e fica com todas. Senhora, com sorriso, enquanto lhe estende o ramalhete. — Mais linda que seja uma rosa ela não entra no paraíso, por causa dos espinhos. – gira em torno dele e continua: – Rosa simboliza o amor que desabrocha nos corações, que muitas vezes fere a alma, como se fosse espinho.

Caio fica sem entender: – Quanto lhe devo?

Senhora — Quanto vale para o moço o amor puro e verdadeiro?
Caio sorri, coloca todo o dinheiro que tinha, na mão dela: — Boa comerciante a senhora. Isso é tudo que tenho no momento. Mas o amor para mim não tem preço.

Senhora canta — O Amor vale mais que uma vida. Ou será que a vida vale mais que o amor? — Sem conferir as notas, coloca-as no cesto e se afasta jogando, para o alto, pétalas que haviam ficado no cesto. Passos à frente ela para, observando Caio ainda parado no lugar, refletindo as palavras: “O amor vale mais que uma vida. Ou a vida vale mais que o amor?” A mulher vê José Carlos também saindo do quartel. Ele para na entrada ao ver o primo hirto no meio da rua. Caio, sem vê-lo, começa a caminhar. Carlos ameaça segui-lo, muda de ideia, parando próximo à mulher. Ela vira fumaça, circula, várias vezes, em torno do corpo dele, e desaparece. Carlos estremece, senti arrepios. Olha na direção que Caio seguiu, e retorna ao quartel.

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