Caio para na frente a casa de Robson. Zequinha, no jardim, brinca com bolinhas de barro seco.

Caio — Como vai, garoto?

Zequinha, surpreso — Soldado, você aqui! E agradeço por me trazer de volta para casa. Essas rosas são para a minha irmã?

Caio — Pode entregá-las, em meu nome?

Zequinha — Não! – ri — Entregue você mesmo. Glória está chegando. Olha atrás de você.
Caio vira e fica pálido, ao ver Glória e Dalva.

Zequinha — O soldado trouxe rosas para você, Glória — E vira para ele: — Você está querendo casar com minha irmã?

Glória o reprime — Zequinha!!!
O menino balança os ombros: — Oras, sei qual o interesse de um homem quando manda flores para uma moça.

Caio sorri, envergonhado. Zequinha pega as rosas: — Tudo bem, soldado, eu faço o que me pediu, já que está com vergonha.

Glória pega o bilhete que cai no chão e lê. Estava entre as rosas. Solta um largo sorriso.

Zequinha quer pegar o papel: — Posso ler o que ele escreveu?

Gloria — Deixe de ser atrevido, garoto.

Zequinha faz gestos com os olhos: — Hum! Posso imaginar o que está escrito. O soldado está mesmo querendo casar com você. Não é isso soldado?

Caio nada responde. Ainda olhava, sério, as duas moças. Dalva pálida quanto ele.

Glória sorri, acanhada: — Sim! Minha resposta é sim.

Robson chega: — O que está acontecendo na porta da minha casa?

Zequinha — Diga logo, soldado, que você está querendo se casar com minha irmã.

Robson — Isso é verdade, soldado?

Caio, depois de olhar as duas — Sim!

Robson lhe estende a mão: — Seja bem-vindo à minha família. Faço questão de dar uma grande festa.
Decepcionada, Dalva observa os dois homens apertar as mãos, e não aceita acompanhar a amiga quando Robson convida todos brindar o pedido. Dalva segue a rua, olhando várias vezes para trás, chega aonde morava, e chora, desiludida.

Nos preparativos do matrimônio, Glória, a mãe e o irmão, sentados à mesa, terminam de escrever o nome dos convidados nos convites. Restando apenas três em branco, Clara pega um: — Este vou enviar para seu avô. Ele vai adorar saber que a neta está se casando. Ainda que não venha, gostaria de avisá-lo. E que isso fique entre nós três. O pai de vocês não pode saber.

Zequinha encolhe os ombros: — Meu pai nunca fala comigo mesmo.

Gloria — Seria maravilhoso se o vovô Eduardo estivesse aqui nesse dia.

Clara — Não espere, filha. Não ser que deseja uma guerra no dia do seu casamento.

Zequinha ri — Soldados que vão faltar para defender você, Glória.
Ela mostra a ponta da língua enquanto junta os convites.

Cenário. Um quarto. Glória na frente do espelho termina de se arrumar para a cerimônia. Clara, olhando-a dos pés à cabeça, vestida de noiva, se emociona: — Você está linda, filha. Não vou desejar felicidades a você e ao seu marido como também não me desejou meu pai no dia em que me casei. Vou apenas repetir o que ele disse: “Felicidade não existe, são apenas momentos de alegria que podemos viver”. Com o tempo entendi o significado dessas palavras, porque tive momentos de alegria, mas também tive de inferno em minha vida. E agora, usando minhas palavras, quero lhe pedir uma única coisa: nunca esqueça quem você é. Eu não sei mais quem sou faz muito tempo. Sinto-me uma laranja sem miolo, uma casca vazia.

Glória, emocionada, abraça a mãe: — O que posso fazer para ajudá-la, mamãe?

Clara lhe faz um chamego — Seja sempre você mesma. Nunca deixe que nada destrua a sua alma; só assim conseguirá ser realmente feliz.

Glória — Lembrarei sempre disso, mamãe.

Na catedral, os violinistas saúdam a chegada da noiva. Carlos na entrada; é o primeiro vê-la entrar de braços dados com o pai. Espera que passassem por ele e sai da igreja, passando por Dalva, que também chega, observando o noivo. Caio próximo ao altar vai ao encontro de Glória.

Na quarta fileira de bancos, alguém o segura pelo braço: — Está mesmo preparado para tudo nesta vida, soldado?

Caio fica confuso, sem entender a atitude do homem: — Quem é o senhor?

Ele fala-lhe bem próximo — Não tenho tempo para explicar agora. Há algo que você precisa saber antes de se casar com a moça — e se aproxima melhor para que Caio seja o único a ouvi-lo.

Caio, intrigado — O que está dizendo?

Homem — Imaginei que não soubesse de nada. Ainda tem tempo de dizer não, caso não esteja bem preparado para uma batalha — e se afasta rápido.

Caio fica paralisado, seguindo-o com o olhar. Vê Dalva entre os convidados, com os olhos repletos de lágrimas.

Adalberto se aproxima: — Quem era aquele senhor, filho? O que ele queria com você? – Caio encara o pai, depois Glória, parada no corredor, esperando. Olha também Zequinha do outro lado.
O pai insiste: — Filho, o que está acontecendo? O que lhe disse aquele homem para deixá-lo assim, sem reação?
Caio olha, outra vez, Zequinha. Glória no mesmo lugar e depois Dalva e os convidados. Retorna olhar a noiva, quando Adalberto insiste: — Sua noiva está esperando. Não continue assim, parado. Fale, faça alguma coisa.

Caio sorri — Ela está linda. Maravilhosa — e vai ao encontro.

Robson suspira, preocupado, ao entregar-lhe a filha. Adalberto e os convidados, boquiabertos nada entendem. Glória, com as pernas trêmulas acompanha o noivo. Senti alívio com a resposta positiva dele, diante do vigário, aceitando-a como esposa.

Clara chora, em silêncio, ao ver seu pai em meio aos convidados. Eduardo, que também a vê, sorri fazendo um gesto positivo com a cabeça e se retira. Clara segui-o com o olhar. Eduardo sai da catedral. Dalva também vai embora, e chora desiludida.

Quando a cerimônia acaba, Clara, ao abraçar a filha, sussurra ao ouvido dela: — Seu avô Eduardo esteve aqui. Saiu antes que terminasse a cerimônia, talvez para que seu pai não o visse.

Glória também fala em voz baixa: — Vou pedir ao meu marido que me leve à fazenda um dia desses. Prometo trazer notícias dele e de sua mãe preta.

Depois da festa, sozinha no quarto, Glória, tensa e envergonhada, termina de colocar a camisola. Percebe Caio parado, à soleira, observando-a. Ele também tenso se aproxima de mansinho: — Por que mentiu para mim?

Gloria nada entende: — O que está falando? Em que menti?

Caio — A respeito do seu irmão. Por que não me falou que ele é mesmo filho do seu pai e da sua mãe?

Glória sorri, aliviada: — Não me lembro de ter lhe dito o contrário?

Caio, desapontado, senta na ponta da cama: — Desculpe. Acho que foi aquele homem que me deixou atordoado, confuso.

Glória — O que lhe disse ele?

Caio — Que você pode me dar um filho igual ao seu irmão. Que isso está no seu sangue.

Glória, alegre, senta ao lado dele: — Meu avô Eduardo, quem falou com você. Minha mãe viu ele na igreja. De onde eu estava não conseguia vê-lo. E eu sabia. Sabia que toda a verdade era essa. Minha mãe é, sim, filha de Francisca. — Vira para o marido: — Um dia desses você me leva à fazenda do meu avô? Quero saber dessa história direito, com detalhes.

Caio — Vamos agora. Essa história agora também me pertence.

Chegam à fazenda, Glória, ao descer da charrete, tem a sensação de se ver correndo em uma direção. Chega ouvir uma voz de mulher lhe chamando: “Glorinha!”

Caio percebe a inquietação da moça: — O que foi, Glória?

Glória — Engraçado, senti uma sensação estranha, como se eu já tivesse estado neste lugar. Cheguei a ouvir alguém me chamando de Glorinha. Meu avô Eduardo quem me chamava assim, quando eu era criança. Depois da briga entre ele e papai, meu pai nunca mais deixou que alguém me tratasse desse jeito.

Eduardo chega e se surpreende: — Minha neta, é você mesma?

Glória — Sim, vovô.

Eduardo — Imaginei ser outra alucinação. Quando a vi na igreja, pensei que estava vendo sua avó. É inexplicável como você se parece com ela — abre os braços para recebê-la. — Não vem abraçar seu velho avô?

Glória corre ao encontro e se emociona: — Quanto tempo que eu não o vejo, vovô. Que saudade.

Eduardo — Doze anos, contado dias e horas. – E se emociona — Como esperei esse momento, minha neta. Um dia, ver você nesta casa.

Glorinha — Papai nunca permitiu.

Eduardo — Eu sei! Mas Deus é maior. Rezei muito, pedindo essa graça. E hoje Ele me concedeu. – e fala com Caio — Prazer em vê-lo, soldado? E obrigado por trazer minha neta aqui. Estou feliz por não tê-la deixado sozinha no altar.

Caio — Estamos aqui para acabar com uma guerra. O senhor nos convocou.

Eduardo — Uma guerra que está indo longe demais. Agora, vamos entrar? Temos tempo para conversar.

Ao entrarem no casarão, Glória se coloca ante a escadaria que dava ao andar de cima: — Essa escada. Sonhei várias vezes subindo ou descendo uma igual a essa — olha o avô e acrescenta, com alegria: — Acho que foi de tanto ouvir mamãe falar daqui. Ela me contou que o senhor pôs um escravo sentado no primeiro degrau para vigiá-la o tempo todo, com medo de que caísse. Ela quase deixou o escravo maluco porque tinha adoração por subi-la e descê-la. Na verdade, ela queria mesmo era provocá-lo.

Eduardo ri: — Lembro-me disso. E a única maneira de acabar com a brincadeira de Clara foi ameaçar amarrá-la de corrente. Mas sei que ela não fazia por maldade. Queria mesmo me provocar porque eu a proibia de ficar perto da escada. Tinha medo de que caísse e morresse como a sua avó.

Gloria, confusa — Minha avó? Ela não morreu no parto da minha mãe? Foi essa história que conheci.
Eduardo senta no divã. Se sente frágil: — Não. Eu inventei essa mentira. Queria esquecer o que aconteceu. Ainda me dói quando lembro de que essa escada quase levou minha filha também. Clara tinha dois anos de idade quando a subiu, sem que ninguém percebesse. Ao chegar no último degrau, ficou de pé, no instante em que eu apareci. Ela se assustou, e ainda não sei como consegui segurá-la a tempo. Tão pequena e abaixo de meus pés. Acredito que foi a prova que recebi pela minha inocência, me mostrando que eu poderia ter salvado Glorinha se fosse para salvá-la também. Ela estava presa em minhas mãos e eu a deixei cair. Morreu na hora, quebrando o pescoço. Dei a você o nome dela, no dia em que você nasceu. E Deus brincou comigo outra vez, porque você é igualzinha a ela. Eu só não sei como isso pode ter acontecido, pois você não tem o mesmo sangue dela. – E falou com Caio: — De onde veio seu nome, soldado? Pelo convite, sei que é Caio José de Lucas.

Caio — Recebi o nome do meu avô.

Eduardo — Caio José Neto. Era esse o nome do seu avô?

Caio — Sim. O senhor o conheceu?

Eduardo — Não tive a felicidade. Por isso não posso afirmar se você é parecido com ele. Espere. Há uma pessoa aqui que o conheceu. Ela pode dizer se você tem ou não a aparência dele. –  Toca um pequeno sino.

Francisca não demora a aparecer. A velha negra arregala os olhos, quando vê o casal: — Meu Deus, estou vendo fantasmas.

Eduardo — Quanto à nossa neta posso concordar, Francisca, mas e o rapaz?

Francisca — É igualzinho ao filho de Helena e José Carlos. Igualzinho ao Neto. Posso me lembrar dele quando era jovem assim.

Caio, surpreso — Neto?

Francisca — Sim! O avô dele o apelidou assim.

Eduardo — Caio José Filho era o nome do seu bisavô, por parte da sua avó Helena, que morreu após o parto do filho. Neto foi criado sozinho pelo avô. O pai de Neto foi dono desta fazenda por muitos anos.

Caio — Meu pai me contou parte dessa história. Mas ele não sabe o nome do meu outro bisavô. Nunca ficou sabendo. E eu jamais imaginaria que encontraria, aqui, notícias de meus antepassados. Estou completamente perplexo e surpreso.

Eduardo — Eu também estou muito contente em saber que Neto refez a vida depois que se foi daqui, construindo uma família feliz.

Caio — Olhe, meu senhor, eu e minha esposa viemos aqui…

Eduardo — Sei o motivo que os trouxeram aqui.

Glória entra na conversa: — E a explicação é somente uma: minha mãe é filha de Francisca. Não tenho mais dúvidas. Ouvi quando o senhor lhe disse “nossa neta”. Francisca é a minha verdadeira avó. Estou certa, vovô?

Eduardo — Sim, minha neta. Ela é a mãe de Clara. Cometi o pior erro quando dei à minha filha o nome da morta. Mas Deus sabe o motivo que me levou a isso. Além de desejar que Clara ficasse livre de preconceitos, não queria que fosse tratada como escrava branca. Dei a liberdade à minha filha, mas destruí a vida dela.

Glória — Ela precisa saber. Meu pai e meu irmão também. A convivência deles é um inferno por causa disso.

Eduardo — Sei, minha neta, melhor do que ninguém. Não revelei a verdade antes por causa do seu pai. Ele jurou matar sua mãe, seu irmão e também o pai do menino no dia em que souber quem é.

Glória — Não acredito que faça isso a si próprio.

Eduardo — Tenho minhas dúvidas. Ele é orgulhoso demais. Não acredito que aceite algo que sempre desprezou.

Glória — E não teria se casado com minha mãe se soubesse que era filha de uma escrava negra. Posso imaginar isso.

Eduardo — Quando você nasceu, acreditei que tinha feito a escolha certa. Mas depois veio seu irmão e… — aperta os olhos sem conter o pranto.

Glória o aconchega. — Já sabemos de tudo, vovô. Posso Imaginar que não foi fácil para o senhor também.

Eduardo — Não, minha neta. Você não tem ideia do que aconteceu. É uma longa história que levaria horas e horas para ser contada. Mas de uma coisa tenho certeza. Glorinha e Neto receberam a chance, em vocês dois, de viverem o amor que era proibido. Quando recebi o convite de casamento, custei acreditar vendo o nome dos dois juntos. Deus me deixou viver para que visse, com meus próprios, vocês unidos, e acreditar que Ele me perdoou pelo que fiz com José Carlos nesta casa.

O casal se entreolha, confuso. Eduardo continua: — Por anos e anos eu não conseguia aceitar a morte da minha mulher. Sentia-me culpado, achando que a culpa era minha quando a impedi de ir ao encontro de Neto, que voltava da guerra. Glorinha ouviu minha conversa com José Carlos. Eu tinha amigos na milícia do Rio de Janeiro que me mantinham informado do andamento da guerra. Quando ela acabou, foi a minha maior decepção não encontrar o nome do soldado na lista dos mortos. Então jurei matá-lo com minhas próprias mãos, no meio do caminho, antes que chegasse aqui. Implorei a Deus, muitas vezes, para que Neto morresse na guerra. Assim Glorinha não teria motivos para continuar esperando ele e me aceitaria fazendo parte da sua vida. Por amor a ela acabei mudando de ideia. Como poderia tê-la em meus braços por completo depois, com a morte do soldado em minhas costas? Deus sabe que aquela seria minha última tentativa de convencê-la a ficar comigo. Tive a esperança de conseguir o amor dela se Neto, ao chegar aqui, a encontrasse casada comigo, esperando um filho.

Eduardo busca na memória o acontecido. Glória Maria revive, com as palavras dele, o mesmo momento, buscando no íntimo, o que aconteceu naquele dia. ele, 40 anos mais jovem, chega a cavalo no casarão, entra e sobe a escada correndo, fazendo barulho na madeira, com a sola das botinas.

José Carlos ouvindo o barulho, sai no corredor. Fica surpreso em ver

Eduardo: — Você! Pensei que nunca mais fosse vê-lo aqui.

Eduardo — Onde está Glorinha? Não vou deixá-la ir embora com o soldado.

José Carlos senti desespero: — A guerra acabou?

Eduardo — Sim!

Glorinha, que também saíra do quarto pelo estrépito que ouvira, se alegra: — Neto está voltando?

Eduardo segura-a, quando ela ameaça descer a escada: — Aonde pensa que vai? Não vou deixá-la ir ao encontro de outro homem, levando um filho meu no ventre.

Glorinha — Você está me machucando.

Eduardo — Quanto a mim, o que pensa que está fazendo?

Glorinha puxa o braço, na tentativa de se livrar dele, o pé resvala no degrau. Eduardo não consegui segurá-la, apesar do esforço. O braço dela lhe escapa da mão: ─ Nãoooo ─ grita ao vê-la rolar escada abaixo. Ela caí desfalecida no chão.

Glória Maria se vê ali, diante de seus pés, enquanto Eduardo continua: — Antes de acontecer com Glorinha, o que aconteceu, nossa vida era um inferno. Houve momentos em que pensei que ela me amava, mas descobri que não. Ela queria apenas esperar pelo soldado. José Carlos chegou a me pedir que fosse embora. Que deixasse a filha ser feliz com quem ela havia escolhido desde criança. Ele acreditava que era o espírito de Helena que atormentava os filhos, levando-os a terem amor doentio um pelo outro. Morreu acreditando que, pelo menos do outro lado, se assim Deus o permitisse, reencontraria ambos, quando Neto também partisse desta vida. E, caso se encontrassem lá, tentaria conquistar o amor dos dois, mesmo que isso lhe custasse o que um dia sentiu por Helena.

Caio — Uma coisa ainda não entendi. Por que Helena e José Carlos não viveram juntos se ele a amava tanto? — indagou Caio.

Eduardo — Não conheci, em detalhes, essa história. O que sei é que José Carlos era casado com outra mulher quando Helena ficou grávida dele. O pai dela jurou vingar a morte da filha e não permitia que o pai se aproximasse do menino. Neto cresceu sem conhecer o motivo da briga entre o pai e o avô.

Caio — Onde moravam Neto e o avô?

Eduardo — Em um rancho, a alguns quilômetros daqui. O avô morreu alguns meses depois que Neto foi embora. Escravos saíram para caçar e o encontraram morto. Disseram que foi picado por cobra. Nunca ninguém voltou lá. Tudo ficou abandonado.

Francisca — Na época, alguns dos meus, que presenciaram o que aconteceu, ficaram sem entender por que o patrão insistiu em enterrar o velho no mesmo lugar onde Helena foi enterrada. O Coronel alegou que estava fazendo aquilo por Helena e pelos filhos. Seria uma maneira de perdoar o velho, caso ele, do outro lado, desfizesse o erro de não ter aceitado, desde o início, a união dele com Helena, por ela ser tão menina. Pelo que sabemos, o pai dela foi o maior responsável pelo que aconteceu entre Neto e Glorinha, e pela separação definitiva de José Carlos e Helena.

Eduardo — José Carlos uma vez me disse, que havia cometido dois graves erros na vida. O primeiro foi amar Helena como ele amou, e o segundo aceitar Júlia como esposa. Os filhos eram consequência desses erros. Só a morte lhe daria a sentença merecida. E como prova de arrependimento, seria capaz aceitar morrer. Tiraria a vida, com as próprias mãos, por amor à mulher que amava e pela felicidade dos filhos.

No Rio de janeiro, na sede militar, um soldado encontra José Carlos morto no barracão. Avisa Adalberto, que senti desespero ao ver o sobrinho pendurado pelo pescoço. Assim que o corpo é descido ao chão, sem entender o motivo do suicídio, pergunta, sem obter resposta: — Por que você fez isso? meu Deus! Por quê? Como vou dizer à sua mãe o que você fez? — e chora, se curvando ao corpo inerte.

Na fazenda, Caio e Glória, mãos dadas, seguem a trilha, em meio à floresta. Chegam aonde Neto e o avô moravam. O esqueleto do rancho ainda se mantinha de pé, apesar dos cipós e cupins. Glória cruza os braços ao sentir calafrios. Caio, que também observava tudo, apoia as mãos no alto da trave que segurava o que fora a cobertura: — Engraçado — diz, confuso —, para mim tudo aparenta tão pessoal. Parece que também já estive neste lugar antes. Vai ver é porque cresci ouvindo meu pai contar partes da história do que aconteceu com meu avô Neto. Meu pai só não me contou que Glorinha e Neto eram irmãos — fixa Glória, atenta a tudo, assustada e trêmula. — Loucura pensar na história que contou seu avô e… — se cala ao ouvir ruídos. Empurra Glória, para evitar que o esqueleto do rancho caía sobre eles. Ela, que não esperava o impacto, cai para trás ao enroscar o calcanhar numa raiz. E se debate, em desespero, com o corpo debaixo do dele.

Glória grita em pânico — Não quero. Me solte. Me deixe ir embora. Não quero.

Caio — Tudo está bem, Glória. Calma.

Glória abre os olhos, confusa, sem entender o que tinha acontecido.

Caio — Você está bem?

Glória nada responde. Apenas mexe as mãos, presa pelos pulsos.

Caio solta-a, deixando livre. Ela levanta e corre pela trilha. Caio corre atrás, pedindo que espere.

Desnorteada Glória se vê perdida no meio da floresta. Para ao chegar à margem do rio, se coloca de joelhos na margens lavando o rosto.

Caio chega: — O que aconteceu, Glória? Não entendi nada.

Glória ainda se sente perturbada — Não sei! Por um instante, pensei que você fosse… — e se cala, sem coragem de prosseguir.

Caio — Fosse o quê?

Ela o olha nos olhos: — Não. Não era você. Foi outro que vi em cima de mim. Era como se ele… — interrompe, envergonhada.

Caio — Fazer amor com você à força?

Glória — Sim! Era o seu primo Carlos. Ele quem eu vi me segurando, sem que eu pudesse me defender.

Caio encara-a, depois solta gargalhada, fazendo gestos negativos com a cabeça.

Glória se defende — Estou falando sério. Não sei porque tive esse pressentimento, mas era como se fosse real. Suas mãos eram como se fossem as dele me segurando.

Caio, sério — Pare com isso, Glória! Se você dissesse qualquer outro, eu acreditaria. Mas o Carlos, não. Eu conheço ele melhor que ninguém. Cresci ao lado dele, que é incapaz de fazer mal a qualquer pessoa, principalmente uma moça.
Glória nada responde. Olha, assustada. Caio conclui: — Espere, aí? Você não está querendo acreditar na história que seu avô nos contou, incluindo nela também meu primo!

Glória — De onde veio o nome dele?

Caio — Sei lá. É um nome qualquer que meu tio colocou nele. E o que isso tem haver? Um nome não influi em nada. — Agacha perto dela que está sentada no chão: — Vamos parar de pensar nessas maluquices, antes que enlouqueçamos. E, depois, Glorinha era filha de José Carlos. Não acredito que um pai seria capaz de violentar a própria filha.

Glória — Será que não foi isso que aconteceu entre ele e Helena?

Caio — Nesse caso, então quem seria você? Helena ou Glorinha reencarnada?

Glória fica de pé: — Está certo! Não vamos mais pensar nisso. Não quero enlouquecer. Não temos nada a ver com o passado deles. E, depois, viemos aqui pela minha mãe, Zequinha e meu pai. E eles não estão incluídos na história que meu avô nos contou. Se eu sou Glorinha reencarnada e você Neto, quem foram os meus pais e meu irmão no passado? E por que eles estão vivendo o que vivem agora?

Caio — Meu pai sempre diz que ninguém recebe aquilo que não merece. Mas eu não acredito nisso.

Glória — Como assim?
Caio — Nós dois, por exemplo, o que podemos receber da vida? Vamos deixar que ela decida, por nós, os filhos que vamos ter?

Glória — Não entendi aonde quer chegar.

Caio — Pense no seu irmão. Eu, por exemplo, não quero que um filho meu passe pelo que ele está passando.

Glória — Podemos não ter filhos. Sei, melhor que ninguém, como é a vida de Zequinha, que não pode frequentar os lugares que gostaria. Nem mesmo à escola ele pode ir. Eu é que o ensinei a ler e a escrever.

Caio — E não termos filhos seria a solução certa para que não corram os mesmos riscos? Então eu lhe pergunto: Para que nós nos casamos? Quero ter filhos, Glória. Quero construir uma família bem grande. Foi também para isso que me casei. Quero dar netos ao meu pai.

Glória — Não sei, então, porque estamos preocupados com o futuro deles.

Caio fica pensativo. Lembra de Dalva, quando a vê na igreja entre os convidados. Balança a cabeça, querendo espantar o pensamento. Glória espera a resposta.

Caio — É lamentável, mas em minha família há pessoas racistas. Não sei como dizer a eles que pensam Zezinho ser fruto de traição da sua mãe com um negro.

Glória — Você quem disse isso a eles?

Caio — É o que todos os conhecidos de seus pais pensam.

Glória, deprimida, mira o chão: — Quanto a você, o que pensa?

Caio — Agora, conhecendo a verdade, não sei se quero ter filhos para que, um dia, não possam frequentar o mesmo lugar que nós, por talvez nascerem com a cor um pouco mais escura.

Glória fica de costas: — Me leve de volta para casa. Não quero pra mim a vida infernal da minha mãe, o sofrimento dela sabendo que o filho é rejeitado pelo próprio pai. — Olha ele e prossegue, em voz firme: — Posso entender a situação do meu pai, ele desconhecer a verdade. Quanto a você, como pode pensar que não vai amar um filho o bastante para que ele se sinta amado pelo menos dentro da própria casa, caso não herde sua cor?

Caio — Glória, não foi isso que eu quis dizer.

Glória — Você me pediu para pensar na vida do meu irmão. É na dele que estou pensando. Tudo o que Zequinha deseja é ter o amor do pai. É acreditar que um dia possa ser amado por ele, pelo que tem por dentro. O que ele tem por fora não o faz mais nem menos filho do meu pai, que depois que souber a verdade, talvez possa aceitá-lo, porque o filho existe. Quanto a você, não se preocupe como vai receber ou não um filho nosso, porque ele nunca vai existir entre nós. — Dá alguns passos e acrescenta: — Estou esperando você na casa do meu avô para me devolver aos meus pais e anular o nosso casamento — e sai de vez.

Caio continua sentado. Pega uma pedra e a joga na água. O íntimo da alma busca Neto, quando menino, com os olhos banhados em lágrimas fazendo o mesmo. Caio olha para o lado, como se pressentisse alguém chegar, e vê, na imagem do homem, o pai, ali sentado. Outra pessoa, na margem do rio, revela a estampa de Glorinha. Ela sorri abrindo os braços para Neto que se vê dentro da água. Ele fecha os olhos. Sente arrepios e corre gritando: — Glória, espere por mim.

Não muito longe dali, Glória para, lembrando as palavras da mãe.
Clara – “Nunca deixe que nada destrua a sua alma; só assim conseguirá ser feliz de verdade.” Glória soluça. Quando pretende prosseguir o caminho, Caio chega e a segura pela cintura, abraçando por trás. Sente, com ela, a mesma aflição de perda.

Caio — Me perdoe. Não quero perdê-la. Sei que viemos a este lugar para descobrir sobre sua família. Acabei sabendo da minha família também. Assim, não acredito que nosso encontro. Nosso casamento tenham sido um acaso. Desde o primeiro instante em que a vi, tive uma sensação estranha, de uma força que nos une. E, de repente, senti um desespero tomar conta da minha alma, como se eu nunca mais fosse vê-la. — Vira-a para que o olhe nos olhos. Seca com os dedos as lágrimas que descem pelo rosto dela: — Quem sabe sou mesmo Neto e você Glorinha e a vida nos deu a chance de vivermos o amor que lhes foi proibido?

Glória acaricia o rosto dele: — Como posso dizer o que estou sentindo? É como se minha alma…

Caio a impedi de continuar, tocando os lábios dela com o dedo — Não vamos dizer mais nada. Vamos deixar que a vida nos leve pelos caminhos que estiverem a nós reservados. — Troca os dedos pelos lábios, beijando-a. Puxa-a melhor envolvendo pela cintura, querendo sentir o corpo dela junto ao seu. Glória percebe as intenções.

Glória — Não! Aqui e assim, não.

Caio — Então corre. Não deixe que eu a alcance, senão vamos fazer um filho aqui mesmo.

Glória, alegre, corre. Caio espera um pouco e logo alcança e rolam pelo chão em algazarra. Aos poucos perdem a timidez e se entregam aos beijos e às carícias.

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