Estação Medicina
Capítulo 02
A Operação
FADE IN
CENA 01/ INT. AEROPORTO DE GUARULHOS/ TARDE
Ligar Instrumental Melodramático
Goram chega ao saguão principal e contempla a vista de São Paulo ao longe por grande janela de vidro que se estende por uma parede inteira.
Aumentar temperatura da filmagem, aspecto solar, familiar.
GORAM (V.O) – Égua. É impossível não sentir techanga desses ares. Parece que nada mudou.É como se a cidade esperasse pelo meu retorno para fechar o seu ciclo.
Ele se senta em um banco próximo vazio. Nostálgico. Mostrar imagens de pessoas indo e vindo em movimentos rápidos. Os olhos dele as acompanhando até que se perde num ponto fixo. Mostrar ponto fixo: uma garotinha comprando pipoca doce com a mãe. Voltar para o rosto de Goram. Emocionado.
Ele abre sua mochila e dela retira seu urso de pelúcia sem um botão no olho com o colar de pena azul e o abraça.
Desligar instrumental Melodramático.
CENA 02/TARDE/SÃO PAULO/VILA MADALENA/ INT. APARTAMENTO DE RITA/QUARTO DE RITA/TARDE
Rita(39 anos, branca, cabelos pretos encaracolados, neurologista) termina de passar seu jaleco branco.
CAMPAINHA TOCA. Ela para.
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Sala de Estar
Ela abre a porta.
RITA- Meire, querida. Como você está? (Abraça-a com um beijo no rosto). Estou um pouco atrasada, mãe de uma paciente ligou preocupada, a filha dela teve sepse como agravante de meningite meningocócica. Senta um pouco, fico pronta num minuto.
Meire(27 anos, branca, cabelos pretos lisos, residente de obstetrícia) entra e se senta.
MEIRE – Estou bem, professora e a senhora? Fica tranquila, não tenho mais compromissos hoje a noite na Obstetrícia.
RITA – Ótimo. Ótimo. Acredito que consigamos instruir os presidiários até umas 20h da noite.
E volta para o quarto.
MEIRE – Sim. Vai dar bom essa palestra, é essencial que eles conheçam os métodos contraceptivos e auxiliem suas parceiras.
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CENA 03/AEROPORTO DE GUARULHOS/ LANCHONETE/ FIM DA TARDE
Goram termina de tomar um café com leite. Está sentado, mexendo no celular.
GORAM – Eita porra! Já era para alguém ter aparecido. Sy disse que me viriam buscar no aeroporto. O que será que aconteceu?
Ele manda mensagem para sua mãe no whats, mas ela não se encontra online.
Ele se assusta quando uma voz robótica sai de um amplificador do teto bem acima dele: Terminal Portuguesa-Tietê- 17h30! Partindo em dez minutos!
CENA 04/SÃO PAULO/TATUAPÉ/HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ORLANDO MOÇA/ ENFERMARIA de MOLÉSTIAS INFECCIOSAS/FIM DA TARDE
DESESPERO.Adelaide(45anos,indígena,cima do peso)espera Hugo(50 anos, indígena,alto e magro)chegar.
HUGO – Quadro de Laurinha piorou?
ADELAIDE(Fala atropelada) – Eu não sei…Ela tinha voltado para enfermaria, tava tudo certo para Doutora dar alta entre hoje e amanhã, mas ela começou a passar mal, a enfermeira levou ela para UTI numa maca.Liguei para Doutora Rita, ela disse que evoluiu o quadro dela.Eu estou com medo de perdê-la, Hugo.
O homem a abraça. MEDO.
HUGO- Ela vai se recuperar, meu amor. Fique calma, os médicos daqui são muito bons.
ADELAIDE – Eu não quero perder nossa filha, Hugo.
HUGO – Escuta, Themise já está te aguardando no carro, acho melhor vocês irem buscar o garoto no aeroporto, se não vai ficar muito tarde. Precisa dar um tempo de hospital.
ADELAIDE(preocupada)-É verdade.
(Ela pega a chave do carro com ele). Isso tudo está me deixando num estágio de nervos. Me mantenha informada de qualquer coisa.
E sai apressada para o estacionamento.
CENA 05/SÃO PAULO/ CENTRO/ BORDEL BOVARY/NOITE
Não olhe para trás de Capital Inicial começa a tocar
Os aplausos tomam conta daquele hall rodeado por “mulheres da vida”. Marcela(42 anos, alta de vestido e batom vermelho berrante, prostituta) discursa.
MARCELA – É minha gente,hoje diferente da Marcela de Memórias Póstumas de Brás Cubas, essa Marcela aqui não viverá a vida dando golpe a clientes milionários. Saibam que é um dia histórico para mulheres da nossa profissão. Sim, porque não podemos temer em dizer, prostituição é uma profissão. Amanhã será o dia em que uma prostituta fará matrícula em uma universidade de medicina!
As outras jovens sorriem emocionadas, ela continua.
MARCELA – Não é porque estou velha, com meus 40 anos nas costas, que desisti do meu sonho de menina e é isso que precisam entender. Às vezes, a vida nos prega peças e acabamos ficando com poucas escolhas. Às vezes ou é a vender o corpo em troca de comida ou é morrer de fome. Mas apesar dessa realidade, não podemos desistir de quem somos, nem para onde vamos. Sempre dá para continuar acreditando. Continuar lutando! Ajudas vão aparecendo! Deus coloca em nossas vidas pessoas certas e quando menos imaginamos, chegamos lá!
Desligar música.
Bovary(63 anos,baixa e obesa,ruiva,cafetina) se aproxima aplaudindo irônica aquela fala.
BOVARY – Excitante a sua declaração, Marcelinha. Pena que discurso não enche barriga. Eu se fosse vocês, bonequinhas, voltava lá para dentro e iria se arrumar, porque os clientes não tardarão a chegar e não quero ver reclamações de atraso! Possuem tudo de mão beijada aqui dentro, deveriam fazerem jus ao tratamento vip que as condiciono e não dar ouvido ao que essa louca,desvirtuada caindo aos pedaços tem a dizer!
Marcela retruca
MARCELA – Alto lá, sua velha. Primeiramente não estou caindo aos pedaços, ainda tenho muitos clientes exclusivos, diferente da sua carcaça e dei muito sangue para levantar esse seu bordel de quinta que nos oferece! Velhota ingrata! E que tratamento Vip nos condiciona? É uma piada isso? Chama aquela feijoada requentada de tratamento vip? E ovos mexidos passados todos os dias no café da manhã?
BOVARY – Tem muita gente nesse país que não tem um prato de comida na mesa. Tirei vocês da miséria absoluta!Da sarjeta! Das relações familiares conturbadas que estavam imersas! Sim! Porque vocês não nasceram para vestir jalequinho branco receitando bulas de remédio ou donas de casa que tomam conta dos filhos. São putas! E como toda puta precisam(ela gesticula o traseiro para ilustrar num tom medonho) mexer bem o traseiro se quiserem se dar bem na vida.
Marcela a esbofeteia. Todas ficam perplexas com a reação da amiga.
MARCELA – Eu tenho nojo de você!
Bovary se volta esbaforida.
BOVARY – Tem nojo de mim? Pois então utilize esse nojo para procurar um novo lugar para ficar porque vivendo às minhas custas, debaixo do mesmo teto que eu, você não vive nunca mais!
MARCELA – Que suas custas, o quê? Minhas custas! Dei o meu suor, paguei com juros e correção monetária essa espelunca aqui!
Bovary ri
BOVARY – E me agradeça por não te denunciar por agressão ao idoso! Sua Estúpida! Vou te dar 24 horas para juntar suas traças e picar a mula daqui!
E saiu satisfeita. As meninas se aproximam.
LARISSA(loira,19 anos) – E agora? O que será de você, Marcela? Onde irá ficar?
Marcela a abraça e olha carinhosamente para as demais.
MARCELA – Eu darei o meu jeito! Mas é isso que precisam fazer, estão ouvindo? Ninguém! Mas ninguém neste mundo mesmo merece nos tratar com desdém pela nossa profissão! Ninguém!
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CENA 06/AEROPORTO DE GUARULHOS/ LANCHONETE/NOITE
Mostrar cadeira onde Goram estava sentado vazia. Som de passos ao fundo.
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CENA 07/SÃO PAULO/TERMINAL PORTUGUESA TIETÊ/NOITE
Close visor do ônibus Portuguesa Tietê-18h. Assentos vazios. Close nas escadas rolantes descendo a todo vapor. Sapatos diversos. Som de vozes ao fundo. Placa que indicava linha azul.
METRÔ
Porta do metrô Sé fecha, Goram puxa a mala e se senta, pondo a mochila em seu colo.Respira aliviado. Um rapaz negro em sua frente lia sério Ângela Davis.
GORAM(V.O)- Ufa!Finalmente indo para casa de Sy’y Adelaide.
Ele olha para a mensagem que mandou a Iracema, mas a mãe não visualizou. O metrô para em outra estação e entra muita gente. INSEGURANÇA.Goram não consegue mais ver a porta.
Ele não percebe quando alguns rapazes chavosos sentam em seu lado. Suspeitos.
CENA 08/SÃO PAULO/ MORUMBI/ CONDOMÍNIO DOS RAPOZZO/BANHEIRO SOCIAL/NOITE
Úrsula(43 anos,alemã, milionária) desce as escadas e observa Cacau(60 anos, negra, mãe de Fabiana) limpar seu banheiro de visitas
ÚRSULA – Você desde pequena lava privada, Carolina? Faz com tanto afinco essa limpeza! Parece que é sua vocação!
CACAU – Meu trabalho, Dona Úrsula! Se eu não me dedicar, não tiro o sustento para casa.
ÚRSULA – Que bom que você sabe seu lugar! Só peço para que da próxima vez comece pelo banheiro para não correr o risco de chegar uma visita ali na sala e verem você… saindo mal-cheirosa, com baldes coloridos por aí,nada de sermos baianos nesta casa.
Cacau se sente mal com os maus tratos. Mas fica quieta. Eliane, filha única de Úrsula, loira, 21 anos, patricinha, chega em casa animada.
ELIANE – Fui conhecer o pessoal do basquete da atlética, as meninas são demais! Amanhã vai ter festa depois do primeiro dia da matrícula. Nem acredito, mãe. Depois de tanto tempo lutando no cursinho, consegui.
CACAU – Passou na faculdade, Eliane?
ELIANE – Sim! Medicina na Olímpius!
CACAU – Nossa! Que nem minha filha!
Úrsula solta um grito incrédulo.
ÚRSULA – Sua filha passou em medicina na Olimpius? Mas esse mundo está perdido mesmo! Aposto que é culpa desse sistema de cotas petista!
ELIANE – Ai mãe, nem ligue para isso! Bolsonaro há de acabar logo com essa situação deplorável! Agora vamos para meu quarto, quero te contar cada detalhe do nossa quadra de treino.
ÚRSULA – Vamos!
A matriarca sai com nariz em pé. Focar no rosto triste de Cacau. Mas isso dura pouco, ela se felicita com a mensagem de sua filha, Fabiana.
“Pedi demissão para Glorinha. Ela chorou, disse que fui a telemarketing mais aplicada da empresa”.
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CENA 09/SÃO PAULO/METRÔ/NOITE
Os garotos chavosos descem junto com uma multidão. Goram se sente sufocado pelo aumento de pessoas que entram no metrô. Ele se levanta para ficar próximo da porta e seu celular escapa da mão, escorregando pelo vão da porta na estação. O mocinho se desespera.
GORAM – aratiri! Meu celular!
DESESPERO. O jovem negro percebe. Goram se ajoelha para tentar pegar. As pessoas reclamam, chutando-O. Sai da porta, caralho! Goram não consegue, é jogado para trás. A porta se fecha.
GORAM – ÉGUA NÃO!
Ele escuta o celular ser triturado nos trilhos, aquilo dá agonia. O rapaz negro se preocupa, era um pouco atlético.
ANDRÉ – Cara, não acredito que isso aconteceu!
Goram se volta para cima. Sente-se levemente ameaçado. Mas depois percebe a solidariedade do estranho.
GORAM – O que será de che agora? Eu não sei andar pela capital! Não me lembro da ogapy exata de Tia Adelaide!
Policiais se revelam no metrô. Um homem branco, quarenta anos de farda azul toma a palavra.
DELEGADO FRANÇA – Todos sentados, por favor. Estamos atrás de uns rapazes com drogas, é desconfortável, mas teremos que vistoriar a bolsa, mochila de vocês!
MEDO. Goram se senta totalmente perdido. Os policiais vistoriam de uma senhora, depois de uma mãe com seu filho, não demora a chegar a Goram e André e ao abrirem suas mochilas e malas, pacotes se revelam.
INSTRUMENTAL DRAMÁTICO. GORAM SE CHOCA.
DELEGADO FRANÇA – Bingo. Podem parar de vistoriar os passageiros. Aqui tem bem menos drogas, onde está o resto, meu rapaz?
Goram treme.
GORAM – Ani kuaa, não sei como foram parar aí.
França ri. André se retorce ao ser algemado por outros policiais.
ANDRÉ – ME SOLTEM! EU NÃO FIZ NADA!
FRANÇA (irônico) – Todos falam que não sabiam, que não fizeram nada. Mas isso vamos ver na delegacia. Peguem esse aqui também!
Goram se desespera. Alguns passageiros batem palma para aquela operação. Eles desembarcam na próxima estação.
CONTINUA…