Todo ato de maldade tem seu revés

Primeiro Ester. Ele levou muito tempo para se recuperar da morte de sua esposa. Agora, Henrique. Talvez Miguel nunca conseguisse curar a ferida aberta com a morte do filho. Espancado. Deixado para morrer numa rua escura e fria. E ele não fez nada, além de permitir que aquilo acontecesse outra vez.

Culpa.

Miguel se sentia, sim, culpado. Ele abaixara a cabeça quando a sua primeira esposa foi encontrada morta, mesmo sabendo que ela havia sido assassinada. O que fazia dele um cúmplice. O sangue de Ester estava em suas mãos.

Remorso.

Seu único filho, que ele obrigara a ir estudar em um internato no Recôncavo. Que ele manteve em Salvador escondido, como se a distância de Timbaúba o fizesse esquecer que a sua mãe foi assassinada. Seu único filho, que ele nunca compreendeu. Que, ao invés de sentar para uma conversa, execrou. Henrique não sentia o amor de seu pai. E Miguel sentia a luta do filho para se sentir amado, importante. Necessário.

Dor.

Soluços violentos tomaram conta de Miguel. Seu corpo de contraía, as lágrimas escorriam torrencialmente pelo seu rosto, seu corpo parecia estar se dividindo ao meio. E não poderia ser diferente: ele estava meio morto. Uma parte da sua vida, provavelmente a mais feliz, seria enterrada a sete palmos do chão junto com Henrique. Os jantares em família, Ester sempre experimentando novas receitas e surpreendendo o paladar do marido e do filho. Os primeiros passos de Henrique, a sua primeira palavra: papai. A voz doce e infantil do filho retumbava na cabeça de Miguel, a imagem da pequena criança abrindo os braços e caminhando tropegamente em direção ao pai. O Natal, o último em que passara com Ester, quando Henrique se animara em decorar toda a casa depois de ter assistido a um filme na televisão.

Miguel não sabia de onde vinham tantas lágrimas. E nem onde havia guardado essas memórias. Como ele queria voltar no tempo. Chegar em casa e Ester estar lhe esperando com o jantar na mesa, enquanto Henrique brincava com seus carrinhos na sala. A esposa lhe perguntando como foi o seu dia. Ele contando-a sobre os mais recentes acontecimentos políticos na cidade.

Aquilo nunca mais voltaria.

Miguel nunca mais seria o mesmo.

Seu filho, seu único filho, deixado para morrer em uma noite escura e fria de Timbaúba.

E ele ali, chorando a morte de Henrique, como se não fosse tão culpado quanto o Coronel.

– Meu amor, meu amorzinho, a Excelentíssima está lhe esperando lá fora – Teodora pôs a mão no ombro do marido.

Miguel enxugou o rosto com o antebraço. Ele já conhecia aquela dor, só lhe restava segurar a sua mão e aceita-la.

– Peça que ela entre.

Teodora não sabia lidar com momentos tristes, pensou Miguel. Sua vida fútil e alheia não a preparara para lidar com a dor da perda.

– Miguel, eu sinto muito – Jurema disse, ainda na soleira da porta. O sol a iluminava por trás, o que fez Miguel enxergar apenas a sua silhueta escura.

– Um pai não deveria enterrar o seu próprio filho, essa inversão da ordem natural deveria ser proibida – ressentiu Miguel.

– Eu garanto a você que encontrar o culpado pela morte do jovem Henrique será a prioridade número um.

Miguel quis rir. A prefeita teria coragem de jogar o idolatrado avô na cadeia?

– Tenho certeza que será, Jurema – respondeu.

Jurema notou Teodora atrás dela e abriu espaço para que ela entrasse. Teodora se sentou ao lado de Miguel no sofá. Calada. Inerte. Imóvel.

– Não consigo imaginar a dor que você – Jurema lembrou-se da atual esposa de Miguel e se corrigiu – vocês estão sentindo nesse momento. A vida de Henrique estava começando, jovem, empossado num concurso público, inteligente. Deveria ser o orgulho da família.

O peito de Miguel ficou apertado e ele desejou gritar para toda Timbaúba ouvir que ele foi um péssimo pai, um péssimo marido, que permitira sua esposa e filho serem assassinados e nada fez para vinga-los.

– Nós sempre estimaremos Henrique – a voz de Teodora surpreendeu Miguel. – É uma lástima para mim e para o meu marido que ele tenha sido levado do nosso plano de uma maneira tão brutal, depois de tantos anos longe de nós.

A mão frágil de Teodora pousou na mão calejada de Miguel. Ela olhou para o marido e deu um sorriso complacente. Ele notou os olhos dela inundado de lágrimas, como uma barragem prestes a romper.

E se sentiu um monstro por tê-la julgado. Aquele momento estava sendo igualmente difícil para ela, sobretudo porque Teodora não carregava culpa pela morte do enteado.

– A justiça será feita, meus amigos – garantiu Jurema. – Quem quer que tenha cometido esse ato desumano, cruel, demoníaco, será encontrado. E eu mesma me encarregarei de trancá-lo na cela mais escura e suja do pior presídio do nosso estado.

– É uma honra para nós dois que a prefeita de nossa cidade esteja ao nosso lado neste momento – disse Teodora.

Miguel assentiu.

– Sempre estarei ao lado dos cidadãos de bem – respondeu a prefeita. – Agora, eu preciso ir. Encontrarei vocês no velório.

Jurema se aproximou de Miguel e agachou-se em sua frente.

– Faço questão que você tire férias, o tempo que precisar, sem prejuízo em seus vencimentos. É o mínimo que posso fazer.

Os lábios de Miguel tentaram se esticar em um sorriso, mas ele caiu no choro. Jurema se levantou, despediu-se de Teodora e foi embora.

– Meu amor, meu amorzinho, tudo ficará bem.

“Não enquanto aquele velho impiedoso, desalmado, continuar impune pelos seus atos”, pensou Miguel.

 …

A comoção com a chegada do caixão, fechado, de Henrique fez Camila experienciar um novo sentimento.

– Cami, você está bem?

O sangue do rapaz respingara nela. Ela poderia ter avisado.

Ela deveria ter avisado.

Uma tontura forte bagunçou a sua visão e Camila sentiu que iria desmaiar. Se apoiou no ombro de Álvaro, sem conseguir disfarçar o mal-estar (menos um ponto para as aulas de teatro). O mundo parou de girar no exato momento em que seus olhos caíram sobre Miguel. Pobre homem. Abatido, cansado, um oceano de lágrimas prestes a rolar pelo rosto. A culpa é pesada demais. Camila se sentia como Atlas, segurando o peso do mundo com as mãos.

As mãos que arrancaram a vida de um inocente eram suas também.

– Camila, você quer ir respirar um pouco lá fora? Eu te acompanho.

A voz de Álvaro soou distante, como se viesse do outro lado do Salão Nobre da Prefeitura.

Uma vida. Que poderia ter sido a dela. Se ela tivesse avisado a Henrique e o Coronel descobrisse, o que ele faria?

Por esse lado, foi uma boa escolha ter mantido o silêncio. Mas por que isso não a conformava?

– Quero.

Álvaro segurou a sua mão e abriu espaço pelo aglomerado de pessoas, que mal cabiam no espaço, até chegar à porta do Salão Nobre. Ele virou à esquerda, em direção à porta de saída, puxando Camila delicadamente. Finalmente chegaram ao céu aberto. Camila se encostou na parede da Prefeitura e Álvaro puxou um maço de cigarro do bolso e começou a fumar um.

– Não imaginei que você ficaria tão abalada com a morte do rapaz – disse Álvaro após acender o cigarro.

Camila retomou o controle da sua respiração.

– Eu poderia ter impedido que isso acontecesse, Álvaro.

Ele fez uma cara de descrença.

– Não me venha com essa, Cami. Ninguém iria imaginar que – seu tom de voz diminuiu – o Coronel agiria abertamente.

– Eu sabia, Álvaro – revelou Camila.

O jornalista pareceu absorver a informação por um instante.

– Como?

– No dia em que entrei escondida aqui na Prefeitura, ouvi uma conversa entre o Juca e outra pessoa.

– Só ouviu?

– Seria muito arriscado parar e gravar. Poderia ser meu corpo dentro de um caixão hoje.

Álvaro pigarreou.

– O Coronel não é muito inteligente – Álvaro deu um trago e balançou o cigarro para cair as cinzas. – Assassinar o rapaz logo depois que ele invadiu a Câmara para acusa-lo de – fez uma pausa dramática – assassinato.

 A situação realmente parecia cômica. Um enredo de filme B de Hollywood, que estava acontecendo a um palmo de Camila.

– Ele sabe que nunca será nem suspeito do crime.

– A gente precisa fazer algo, Cami – Álvaro se aproximou da colega. – Nós viemos aqui para colocar fogo no curral eleitoral dos Pinheiro e agora estamos com a faca e o queijo na mão.

– A faca, o queijo e nenhuma prova.

– E desde quando precisamos de prova quando temos os fatos? Eu aposto que as pessoas farão a ligação e, se a gente der sorte, o Ministério Público também.

– E depois? Com certeza iríamos precisar de um programa de proteção ou algo do tipo. Viraríamos alvo fácil.

– Nós viemos para cá já sabendo em que buraco estávamos entrando.

Camila olhou para o céu. Poucas nuvens, sol forte, pássaros indo de uma árvore para outra.

– Vamos com calma – respondeu Camila.

Um rapaz segurando uma coroa de flores saiu da Prefeitura, seguido pelo cotejo funerário de Henrique. Teodora e Miguel vinham logo a frente, de mãos dadas, acompanhado pela prefeita Jurema. Camila e Álvaro se aprumaram para acompanhar o cotejo.

O percurso entre a Prefeitura e o cemitério foi curto demais para Camila pensar sobre seus próximos passos.

O último velório que Antônia se lembrava de ter ido foi o da Velha Geralda, muitos anos atrás. Ela odiou. A obrigação de usar preto, o espaço apertado, as pessoas chorando, os gritos viscerais quando o caixão foi descendo para dentro do túmulo. Jurou a si mesma que nunca mais iria a outro.

Porém, o controle do corpo das mulheres da família Pinheiro estava condicionado ao patriarca. O Coronel a obrigou a usar um vestido preto longo e a comparecer ao Salão Nobre. Antônia mal conhecia o rapaz, lembrava apenas que ele estudava na sala ao lado da sua e era calado. Tanto ela quanto ele moraram em Salvador por algum tempo, mas nunca haviam se encontrado por lá.

Antônia preferiu ficar sentada numa das cadeiras de plástico, cedidas junto ao Salão Nobre, inerte, olhando para o horizonte, usando seus óculos escuro. O que ela poderia fazer ou falar? A eloquência da família pulara a sua geração, a simpatia forçada também. Ficaria sentada, em silêncio. Miguel nunca fora próximo dela, conhecia Teodora apenas por causa de algumas idas à Ser-tão Elegante. Não havia nada para falar, portanto, não falaria.

Por uns instantes, seus olhos vasculharam a multidão de pessoas – parecia que toda a Timbaúba decidira ir ao velório – buscando por Álvaro. Besteira. Por que ele perderia tempo para se despedir de alguém que nunca conheceu? Não, ele não estaria lá.

Ou estaria?

Antônia pensou ter visto Álvaro abrir caminho entre as pessoas para chegar até a saída… segurando a mão de uma mulher. Estranho. Com certeza não era ele. Álvaro não parecia fazer o tipo de homem afeito a momentos tristes.

Horas se passaram. As costas de Antônia doíam por passar tanto tempo na mesma posição, mas ela se manteve imóvel. Talvez fosse até um ato de protesto: foi obrigada a ir, mas, não deixaria perceberem que o seu Sobrenome, o seu companheiro, quase a sua sombra, estava ali perto dela. Antônia poderia mudar seu rosto completamente, se tornar outra pessoa, mas, em Timbaúba, ela sempre seria uma Pinheiro.

Quando o caixão foi erguido da base em que ficou durante o velório por quatro voluntários, Antônia notou que Miguel deixou escorrer, em total silêncio, uma lágrima.

E se perguntou como ele poderia estar tão em paz sabendo que o assassino do seu filho estava no mesmo ambiente em que ele. A cidade poderia fingir desconhecimento, entretanto, até as formigas conheciam o assassino de Henrique.

O Coronel Juca Pinheiro.

Ele nem se preocupara em esperar a fumaça do fogo que Henrique causou ao acusa-lo publicamente na Câmara de Vereadores se dissipar. Pagou algum matador de aluguel para espancar um homem, um opositor, até a morte. O assassinato de Henrique era, acima de tudo, simbólico: mostrava o poder infinito do Coronel e, ao mesmo tempo, mostrava que ninguém poderia ter opiniões contrárias. Não em Timbaúba. Não no curral da fazenda do Coronel.

Antônia se questionou sobre a publicidade do caso. Na noite anterior, assistira ao jornal para ver como eles noticiariam a morte do rapaz. Uma matéria curta, menos de um minuto, falando sobre um assassinato cruel em uma cidadezinha do oeste baiano. Nenhuma menção ao nome ou ao que o morto havia feito dias antes. Nenhuma ligação com o Coronel.

Ponto para a família Pinheiro. Mais um espírito vingativo para habitar as paredes da casa colonial.

Olavo Gusmão fez questão de comparecer ao cemitério no momento em que o cotejo fúnebre de Henrique estava chegando. Como de costume, ele e o Coronel se encararam por alguns segundos, mas logo voltaram a seguir o roteiro de vereadores em uma cerimônia como aquela: cumprimentar os pais do morto, cumprimentar a maioria dos presentes, falar rapidamente com um repórter d’A Voz de Timbaúba. Olavo esperava que Miguel fosse frio, não falasse mais do que duas palavras secas. Mas ele se surpreendeu quando o marqueteiro apertou a sua mão, gesto fotografado pelo repórter do jornal da cidade, e Olavo aproveitou a oportunidade para demonstrar compaixão e se pôr a disposição para eventuais necessidades.

E se divertiu quando percebeu que o Coronel observava a conversa dos dois do outro lado do cemitério. Provavelmente Miguel pagaria por aquela demonstração pública de proximidade a um opositor, porém, qual o preço maior do que perder um filho e a esposa pela fúria cega do Coronel Juca Pinheiro?

Olavo Gusmão, acompanhado de sua exótica esposa, Vera, seguiu pela multidão que acompanhava o cotejo de Henrique cumprimentando e sendo cumprimentado por muitos.

– Mais um para a conta, não é, Juca? – disse Olavo ao ficar frente a frente com o Coronel.

– Não faça politicagem barata no meio de um funeral, Olavo – respondeu, rispidamente, o Coronel. – Tenha compaixão, se não pelo morto, pelos que ficaram.

– É um ato de extrema crueldade comparecer no velório de quem você mandou matar – retrucou Olavo Gusmão.

– Outra mentira dessas e você sai daqui algemado, Olavo – o Coronel engrossou a voz. – Os repórteres d’A Voz de Timbaúba iriam adorar a cena do velhinho de bengala sendo conduzido pelos policiais.

– Seu fim será triste, Juca. Triste, doloroso e, acima de tudo, solitário – disse Olavo Gusmão. – Todos que te conhecem sentiriam um prazer imenso em te ver morto… se bem que a morte é pouco para tanto que você já fez.

O Coronel Juca Pinheiro fez uma cara de desdém.

– Ledo engano, excelentíssimo colega.

O Coronel fitou Olavo Gusmão e deu de costas, indo até a sua neta, Jurema Pinheiro.

Olavo observou o Coronel se afastar. Todo ato de maldade tem seu revés. E Juca Pinheiro já acumulara muitos atos perversos em sua vida.

Vera Gusmão pôs a mão no ombro do marido.

– Esse homem me desalinha os chacras, Olavo.

– Ele vai pagar por tudo que fez, Vera.

Olavo Gusmão só não sabia quando e nem como.

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