A visão me incomodou. A estranheza permaneceu por um tempo, até que a luz ofuscante dos holofotes no auditório trouxe-me de volta à realidade.

A multidão de jornalistas aguardava ansiosa. Vozes sobrepunham-se num marulhar ensurdecedor. Assim que me viram, amontoaram-se apontando os microfones e gravadores:

— Doutor! Doutor! Doutor Naggy, por favor, — gritou um jornalista. — o papa acaba de declarar que a Igreja condena a utilização de células embrionárias, seja para recuperação de doentes degenerativos, seja para pesquisas. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

— A ciência não deveria ter nenhum compromisso com a Igreja. Mas ambas devem se importar com a humanidade. Com todo respeito, o papa deveria que se preocupar com questões espirituais. A religião é importante para aqueles que se sentem desamparados. A ciência busca atender necessidades mais imediatas, aliviar a dor e o sofrimento físico.

— Doutor Naggy, o senhor acha que os experimentos serão interrompidos? — Indagou outro jornalista.

— Não sei. Ainda não recebemos nenhum comunicado oficial. Se a política atual concordar com as diretrizes da Igreja, o que seria lamentável, voltaremos à Idade Média. O que precisamos entender é que um embrião não é um ser. Não pensa nem sente. É apenas um amontoado de células. Só isso.

Uma jornalista importante e de aparência frágil levantou-se em meio à multidão.

— Doutor Naggy, qual é a primeira parte que se forma assim que a concepção ocorre?

— Essa é uma pergunta irrelevante para nossa coletiva.

Ouviu-se um murmúrio.

— Por favor, o senhor se importaria em responder? — Insistiu.

— Placa neural. No décimo oitavo dia após a concepção. Em linguagem leiga, é o início do sistema nervoso.

— Acredito que o sentir seja importante para a vida; primordial, mesmo. Não é por isso que o sistema nervoso se forma tão precocemente? O embrião, de alguma forma, não seria capaz de perceber e sentir seu meio?

— A senhora tem filhos? — Perguntei, tentando colocar um ponto final naquela digressão sentimentaloide.

— Ainda não, mas pretendo.

— Imagino o que está por detrás do seu questionamento. Especulação de cunho emocional é sempre um risco para o entendimento. Evito especulações. Lido com dados concretos. Estou acostumado com a manipulação de células embrionárias e uma coisa posso afirmar com toda a certeza: em todos esses anos, nenhum embrião falou comigo ou demonstrou qualquer reação. — Finalizei visivelmente irritado. — Diante desse tipo de indagação, peço desculpas, mas não tenho mais nada a acrescentar.

Outro jornalista ainda arriscou um comentário:

— Doutor, o embrião pertence à vida, à natureza, certo? Destruir um ser sob o pretexto da cura, como o senhor pode defender uma coisa dessas?

— Isso é filosofia. Como já disse e repito, sou um cientista. Espero que nenhum de vocês necessite dos benefícios decorrentes dessa descoberta — Retruquei.

Dei as costas, abandonando a multidão. Mais tarde, soube que o reitor não ficou nem um pouco satisfeito com meu comportamento, mas confesso que não tive a menor paciência para lidar com aquela gente desinformada e estúpida.

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