Cheguei exausto, mais do que nos outros dias. Passava das onze. Lara dormia. Servi-me de um bom vinho. Apreciei o aroma antes de dar o primeiro gole. Em seguida me acomodei na poltrona. O silêncio só foi quebrado pelo meu ruído mental: Jornalistas, pesquisas, o reitor angustiado, tudo se tornou uma coisa só. Subitamente, a lembrança daquele episódio com o menino arrebatou-me. A recordação do rosto calmo, sorridente me aquietou até que, finalmente, adormeci.

***

O clarão da manhã despertou-me de outro sonho. Aquele semblante agora era bem definido, traços semelhantes ao meu quando criança. No sonho, estávamos próximos, mas eu não conseguia ouvi-lo apesar de perceber que movia os lábios como se tentasse falar algo. Busquei desesperadamente compreendê-lo, mas apesar do esforço só pude compreender uma frase:

— Estou aqui.

Custei levantar da poltrona. Diferente dos outros dias, notei um cansaço extremo que jamais sentira em toda minha vida. “Ressaca do vinho? Mas só foi um cálice?” Uma espécie de náusea acompanhada de leve vertigem.

— Você dormiu na poltrona?! Devia estar exausto. Quer um pouco de café? — Perguntou Lara com as xícaras nas mãos.

O aroma de café passado na hora cortou o mal-estar por completo. Sentei-me à mesa para desfrutar do momento com minha amada. Há tantos anos juntos, mantínhamos o carinho e o respeito de quando nos conhecemos. Nossas conversas triviais me ajudavam a sair daquele turbilhão de pensamentos. Sua voz trazia a doçura e suavidade ao mundo tedioso no qual eu vivia imerso. Então, ela veio com uma conversa que me deixou intrigado:

— Sabe, querido, tive um sonho interessante. Vi um menino aqui em casa. Ele sorria sem dizer nada. Deitou-se no seu lado da cama e continuou a me olhar. Depois desapareceu devagarzinho, como neblina — contou ela, ondulando os dedos no ar para representar a sutileza do sonho.

— Também tenho sonhado com um menino de cerca de seis anos. Sempre acena pra mim, e nunca consigo alcançá-lo.

— Será que não está na hora de você cumprir o mandamento biológico? — Sugeriu Lara.

— Mandamento biológico? Que mandamento biológico?

— Termos um herdeiro, ora! O que você acha da ideia?

— Sabe muito bem que não tenho a menor condição. Tentamos tudo, nada funcionou. Qualquer expectativa só gerará mais frustração.

— Quem sabe um milagre. Tudo pode acontecer…

— Não no meu caso. Melhor pararmos de falar nisso. Estou atrasado. Preciso ir.

— Nem terminou seu café! Coma alguma coisa, pelo menos.

— Depois telefono. Voltarei cedo.

Ao sair, junto à soleira da porta, deparei-me com o jornal matinal. De relance, li a manchete: “Apesar do apelo da Igreja, pesquisas com células embrionárias prosseguem”. Os jornalistas levaram ao pé da letra o que eu dissera. Chutei o jornal para o lado e ao entrar no carro, meu celular tocou. Era André. Acionei o viva-voz e dei a partida.

— Bom dia, professor. O senhor está a caminho? — Soava um tanto ansioso.

— Bom dia. Sim. Algo urgente?

— Na verdade, é sobre uma coisa que descobri com relação à captação de impulsos neuronais. Reporto assim que o senhor chegar.

— Vinte minutos.

Foi o percurso mais longo de toda minha vida. A curiosidade me fazia imaginar o que André teria descoberto. Jamais ligaria se não fosse importante. Ainda mais ele, rapaz compenetrado e dono de uma invejável criatividade. Desde que ingressara na faculdade, sempre lidou com seus desafios acadêmicos com afinco e pontualidade. Se ligou, é porque se trata de algo importante.

Cheguei ao laboratório. André transpirava diante de uma pilha de livros, a rabiscar fórmulas e cálculos. Ao me ver, precipitou-se por entre as cadeiras e disparou a falar sem pausas:

— Professor! Várias coisas. Muitos dos seus questionamentos serão respondidos sob um enfoque multidisciplinar. A eletrônica, a mecatrônica, a biofísica, a bioengenharia, a neurociência… todas fornecerão bases para aquilo que procuramos.

— Calma, rapaz. Sente-se. Se continuar a falar assim não conseguirei acompanhar seu raciocínio. Tente explicar devagar.

André endireitou-se na cadeira, passou a mão trêmula pelo cabelo, respirou fundo e começou:

— Professor, em todos os nossos experimentos anteriores, interpretamos os registros captados pelos equipamentos de maneira equivocada. Ao longo das duas últimas semanas, consultei dezenas de publicações sobre impulsos eletrônicos. Uma curiosidade pessoal. E aí descobri algo que pode resolver nossos problemas.

— Minha nossa, André! Seu otimismo é contagiante. O que descobriu? — Apesar de querer acompanhar suas ideias, minha mente se desviava para o problema da universidade.

— Primeiro, os impulsos neuronais são sempre captados por aparelhos sensíveis à corrente alternada. É dessa forma que são captadas as frequências. Na verdade, esses aparelhos filtram transientes, interferências de radiofrequência, pois o mais importante é identificar o ritmo com que os neurônios ligam e desligam. Enfim, as células se polarizam e despolarizam. Esse é o princípio do eletroencefalógrafo.

— Até aí, nenhuma novidade.

— Muito bem. A novidade, professor, é que a informação que buscamos nos neurônios não pode ser captada por frequências comuns, ainda mais filtradas. Tudo está contido nos harmônicos de baixa frequência existentes nas ondas principais de corrente contínua, e não de corrente alternada.

— Explique melhor.

— Do ponto de vista conceitual, é um tanto complexo, mas na prática é super fácil. Estava diante de nós o tempo todo. Só que não víamos. Bastava mudar a chave do osciloscópio para corrente contínua. Observe esta onda.

André tornou a tela do osciloscópio para mim. Um certo tipo de onda apareceu. Quando ampliada, surgiram pequenas oscilações.

— Vê isso? Ao ampliarmos, é possível ver pequeninas formas espiculares bem na crista da onda. Estes são os harmônicos, que estão recheados de informação — concluiu André, orgulhoso de sua descoberta.

— É isso? Como sabe que estão cheios de informação? — Queria acelerar as coisas. Meu tempo era curto.

— Eu mostro. Realizei alguns testes em casa mesmo. Observe e contemple, professor!

André inseriu o pendrive no computador. Seu rosto transbordava de ansiedade. Na tela, imagens pálidas, pouco definidas, de um lugar que parecia um laboratório improvisado e muito bagunçado. Era possível ver um camundongo com parte dos pelos da cabeça raspada e um eletrodo de aderência fixado (já havíamos evoluído com nossas cobaias: de lulas para camundongos).

— Pensei que tentasse captar impulsos neuronais e transformá-los em sons e imagens. Os eletrodos deveriam estar inseridos no cérebro. Hei, espere aí, você filmou o experimento? É sigiloso.

— Foi exatamente o que eu fiz. Precisava registrar os preparativos do experimento passo a passo. Quanto ao eletrodo, é aí que está o segredo. Veja o conceito: os aparelhos detectores de mentiras, por exemplo, partem do princípio de que, quando o indivíduo mente, as correntes elétricas da pele alteram. Ora, o aparelho capta através da pele o que ocorre internamente no indivíduo. Isso significa que, ao pensarmos, o corpo todo responde, e não unicamente o cérebro. A pele, por ser o maior órgão e estar coberta de sensores, reage às flutuações bioelétricas com muita facilidade. Seria como captar um eco do cérebro através das alterações da pele. Ela é o nosso transdutor.

À medida que André explicava, tudo fazia sentido:

— E quais foram os resultados?

— Observe.

Vi cenas daquele mesmo laboratório improvisado, agora sob uma perspectiva estranha. A imagem permanecia embaçada como antes, cheia de interferências, pálida. Vi André manipulando algo.

— Quem filmou você? Já disse que esse experimento é secreto. Ninguém deveria saber — disse eu, em tom de repreensão.

— Calma, professor. Esta é a visão do camundongo. Capturei os harmônicos frequenciais elétricos da pele produzidos pelos neurônios e os converti em imagens. Não para por aí. Ouça isso!

Ao ligar o amplificador, um chiado se alternava com estalidos rápidos, como uma estação de rádio fora do ar. Depois, a voz de André, falando e gritando em completa euforia e, em seguida, surgiu uma imagem cheia de chuviscos.

— Professor, este é o som e a imagem que o camundongo captou do meu quarto.

— Tem ideia do que isso significa?

— Acho que sim.

— É a maior revolução tecnológica de toda a existência humana. A partir deste momento, e se esta descoberta se consolidar, a humanidade terá dado um passo enorme para um novo enfoque existencial. Seremos capazes de gravar os pensamentos e entender finalmente a complexidade da mente humana.

Minhas mãos ficaram trêmulas e suadas. Senti uma euforia a qual tive que controlar.

— É certo que temos muito a pesquisar, professor — disse André, tentando se recompor.

— Claro que sim, meu rapaz. Temos que nos dedicar integralmente a isso. Conversarei com a reitoria para ver se instituímos um termo de confidencialidade sobre essa pesquisa. O Comitê de Ética também deverá ser informado. Talvez tenhamos um subsídio governamental para ampliar o projeto. E não comente com mais ninguém.

* * * *

Após longas horas de reunião com o reitor sobre a tal descoberta, conseguimos obter o apoio necessário. O objetivo: construir um equipamento específico e realizar mais testes. Por motivo de segurança, eu e André decidimos dispensar três outros membros da equipe de menor confiança. Somente quatro permaneceram.

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