Ele nunca se imaginou naquela situação sem o pai. Na verdade, ele nunca imaginou que aquilo que seu pai dizia durante todos os anos de treinamento fizesse algum sentido. Se alguém, algum dia lhe dissesse que ele presenciaria o surgimento de uma entidade maligna aprisionada há milhares de anos por um grupo de garotos da idade dele, ele estaria rindo uma hora dessas.
No entanto tudo o que ale presenciou aquela noite era real, um ser espectral envolto pelas sombras lutando com todos os artifícios para corromper almas humanas convencendo-as a abandonar sua verdadeira natureza em prol de um mundo onde não existiria o livre arbítrio, e se Lucca quisesse ser bem sucedido na missão que fora forçado a aceitar, teria de aprender a magia antiga o mais rápido possível, para prender novamente aquele ser sem corpo que acabara de ameaçar sua vida.
Teoricamente, o garoto de 17 anos sabia de todas as coisas que era possível saber sobre a magia dos homens, também conhecida como alquimia, ensinada a ele pelo pai desde os oito anos de idade.
A alquimia leva em consideração os estados da matéria, sua composição química e as diversas misturas possíveis entre seus compostos, ou seja, a decomposição e a recomposição molecular de cada objeto, descrita por Nicolau Flamel em seus estudos sobre o assunto no inicio do século XVIII.
O lugar estava exatamente do mesmo jeito que ele havia deixado no dia da briga com o pai há algumas semanas atrás, a única diferença era o cheiro de mofo que começava a impregnar o lugar afinal, ninguém limpava aquele lugar há semanas.
─ Seu pai é um homem muito sábio garoto. Para adquirir todo esse conhecimento é preciso muito tempo e dedicação aos estudos alquímicos. Alguem com as abilidades dele merece muito respeito. ─ Disse Samuel correndo o olho por todo o ambiente assim que desceu a escadaria que dava acesso ao porão da casa.
O lugar estava abarrotado de papeis colados por todas as paredes, alguns cobertos por teias de aranhas, outros já amarelados pelo tempo apresentavam em algumas partes o bolor de mofo recém formado. Sob a mesa frascos tampados e etiquetados com formulas químicas perigosas descansavam esperando para serem usados em algum experimento maluco que com certeza Lucca desaprovaria, folhas avulsas com anotações e desenhos básicos usados no ensinamento de jovens alquimistas.
─ Meu pai gosta muito desse lugar, ele passa horas aqui quando esta em casa. ─ Lucca respondeu vendo o interesse de Samuel por tudo aquilo.
─ Você esta pronto? ─ Samuel perguntou retirando do bolso uma caixa de fósforo.
─ O que vai fazer com isso? ─ Ele perguntou curioso.
─ Ora garoto, vou ensina-lo a magia dos homens. Você esta pronto?
─ Eu não sei se posso conseguir. ─ Lucca disse temeroso de que algo desse errado mais uma vez.
─ Você esta destinado a isso, você só precisa acreditar. ─ Disse Samuel estalando os dedos.
O crepitar de uma chama azulada chamou a atenção de Lucca no exato momento em que ela surgiu fazendo com que ele desse um salto para trás.
─ Como você fez isso? ─ Ele perguntou maravilhado pelo bruxulear da chama crescente.
─ Alquimia básica.
─ Sem o circulo de transmutação?
─ O circulo de transmutação só facilita o processo, nada mais que isso. ─ Disse ele lançando uma bola flamejante na direção de Lucca. ─ Vamos lá, tente.
Ele não teria tempo para desviar daquele ataque surpresa então fez a única coisa que veio em sua mente naquele momento. Tentando se proteger da bola de fogo vinda em sua direção ele simplesmente cruzou os braços diante do rosto e esperou pelo inevitável.
Ser consumido pelo fogo.
─ Do que você tem medo? ─ Sam perguntou diante da cena que acabava de se formar.
Lucca era um menino acuado, com medo, as mãos postas diante do rosto tentando se proteger de algo que não estava mais ali.
Abrindo os olhos, Lucca se viu acuado diante da expressão seria de um homem, cuja preocupação era apenas a de ensina-lo a se proteger dos perigos que ele teria pela frente. De alguma forma a bola de fogo gigantesca que havia sido arremessada contra ele desapareceu da mesma fora que apareceu, sumindo no ar a sua volta.
─ Eu não consigo fazer isso. ─ Ele respondeu com a voz alterada.
─ Isso não é verdade. Eu vi do que você é capaz.
─ Eu não fiz aquilo sozinho, fiz porque ela estava lá. Eu dependo dela para que minhas magias funcionem.
Com as pernas bambas o garoto sentiu uma vontade incontrolável de chorar, as lagrimas se formavam contra a sua vontade e ele deixou escapar uma ou outra antes de se dar conta do que acabara de acontecer. Suas mãos ainda escondiam o rosto abalado pela frustração de não ter conseguido, o menino desabou no chão.
─ Você fala da Alice? ─ Ele perguntou chegando mais perto de onde o menino estava.
─ Não sei como, mas, perto dela eu me sinto mais forte, mais corajoso…
─ Perto dela você se permite ser quem realmente é, sem mascaras, sem Anjo, perto dela você é apenas o Lucca. Não há nada de errado nisso. Diferente de você ela sabe quem é e o que ela é capaz de fazer.
─ Como assim?
─ Ela simplesmente não tem medo de se entregar a sua verdadeira natureza como você teima em fazer. Aprenda uma coisa, quanto mais rápido você aceitar seu destino, mais fácil será lutar por ele.
─ É hora do mago tomar seu lugar de direito. ─ Ele disse a si mesmo enxugando as lagrimas em seu rosto.
Com um sorriso no rosto Samuel estendeu a mão para que Lucca pudesse levantar preparado ou não, ele passaria pelo mais rigoroso treinamento de sua vida.
***
─ O mundo é dividido em finas camadas onde simultâneas realidades consistem entre si, independentes umas das outras. Todas elas são envoltas em uma fina membrana que as separa, impedindo a passagem de um plano para outro. Alguns indivíduos mais capazes podem atravessar essa fina camada através do subconsciente seja em forma de sonho ou a meditação constante. ─ Disse Sam encarando-o nos olhos.
Mantendo os olhos fixos no dele Lucca esperou que algo mirabolante acontecesse, imagens aparecessem do nada ou as coisas começassem a voar. Mas para sua surpresa nada disso aconteceu, ele continuou ali com os olhos fixos nos dele.
─ Todos os seres vivos carregam consigo uma aura mágica invisível aos olhos humanos, mas comum a todas as camadas do mundo, e o verdadeiro alquimista usa sua própria energia interior para manipula essa membrana.
─ Então… a alquimia não passa de uma grande mentira? ─ Ele perguntou incrédulo.
─ Não. A alquimia é uma ramificação da magia onde se prega o conceito da troca equivalente…
─ Para se obter algo, é preciso dar algo de igual valor em troca. ─ Ele o interrompeu.
Lucca ouvira aquela lei milhares de vezes em sua vida, e só agora ela começava a fazer sentido.
─ Exato.
─ Então, quer dizer que eu tenho que misturar a energia exterior das múltiplas dimensões com a minha energia interior para que haja alquimia. É isso?
─ Basicamente. É assim que você molda os objetos, como é o caso do ouro ou da pedra filosofal.
Na cabeça dele tudo começava a fazer sentido, todas as teorias malucas do pai, as historias fantásticas que ele contava sobre a cidade submersa de Atlântida e todo o resto. Agora ele estava disposto a aprender, não para derrotar um ser astral, mas para enxergar o que seus olhos nunca haviam enxergado.
“ ─ Alem do que os olhos podem ver.” ─ Ele disse a si mesmo maravilhado por essa possibilidade.
─ Ma para isso você precisa abrir seus olhos. ─ Respondeu Samuel.
─ Meus olhos estão abertos. ─ Lucca constatou o obvio.
─ Não falo dos olhos do mundo. Me refiro aos olhos do espírito. ─ Ele respondeu enquanto estalava os dedos das mãos e os ossos do pescoço
─ Espera ai… O que você vai fazer?
─ Espero que você esteja preparado para morrer.
***
Lucca deu um passo para trás na esperança de fugir do que estava prestes a acontecer, mas foi inevitável. Ele sentiu uma fisgada no meio do estomago que o fez cair de joelhos com as mãos no abdômen.
Sentindo suas entranhas revirarem de dor, ele notou algo saindo de seu próprio corpo, uma espécie de vapor incolor emanava de seus poros para fora do corpo.
Por alguns segundos, o garoto esqueceu-se da dor e vislumbrou toda aquela energia que fluía de seu próprio corpo e se misturava ao ambiente, dando lugar a algo incrivelmente belo.
─ É melhor você controlar a saída do fluxo de energia, ou você vai morrer. ─ Orientou Sam ao ver que o garoto ainda não estava entendendo muito bem o que acabara de acontecer.
─ Como eu faço isso? ─ Ele perguntou tomado pelo medo.
─ Você deve imaginar que essa energia é como um rio transbordando, e deve fazer com que as águas desse rio se tornem mais amenas, ate que uma fina camada dessa água percorra por seu corpo. ─ Respondeu Samuel.
─ E se eu não conseguir fazer isso?
─ Se não conseguir você morre. ─ Respondeu Samuel com a maior naturalidade do mundo pondo-se de pé diante dele.
Gotas de suor se formavam em toda a extensão do seu corpo, sua respiração estava rápida falha, e o coração batia cada vez mais acelerado. Ele podia distinguir borrões coloridos pela sala, se misturando aquela essência.
Sua vida estava indo embora como num sopro.
Sem saber ao certo o que fazer, Lucca lembrou-se das palavras do pai na ultima aula que eles tiveram ali mesmo naquele porão, “mantenha a concentração”.
Pondo-se em posição de lótus, Lucca fechou os olhos e se imaginou cercado pela água corrente de um rio, assim igualando sua respiração a uma leve brisa, ele visualizou a correnteza tranquila e serena de uma nascente. Controlando seus batimentos junto com a respiração Lucca pode em fim sentir uma camada quente de energia se formando sobre todo o corpo.
O que antes era um borrão de manchas coloridas agora ganhava formas, cheiros e cores. Ao abrir os olhos bolinhas coloridas dançavam por todo o ambiente emanando um brilho dourado e um cheiro adocicado de rosas. Ele jamais imaginou que aquilo que seus olhos viam naquele momento pudesse de fato existir.
Um mundo cheio de mistérios e magia, que agora ele estava louco para experimentar.