NEBLINA E SOMBRAS

Há quase um ano, ao menos até onde consigo lembrar, passei a me sentir um verdadeiro estranho no ninho, buscando entender a minha própria existência sobre a face da Terra após aquela noite em que acabei dormindo no apartamento dos padrinhos do Matheus, no quarto dele, do meu melhor amigo, depois de adentrarmos a madrugada para finalizar um estafante trabalho de história, cujo tema era a Mitologia, seus deuses e sua importância na civilização ocidental.

Não mais que uma fração de segundos foi o suficiente para que tudo mudasse, para que eu começasse a sentir minhas mãos suando, os batimentos do meu coração acelerados; para que me sentisse sufocado a ponto de quase perder o controle desde o instante em que me deparei com o olhar de Matheus fitando-me como se eu fosse um ser mitológico que havia acabado de atravessar o enorme arco-íris que liga o mundo dos deuses nórdicos à terra dos mortais, para estar ali, ao seu lado, embriagando-o com minha existência.

Graças a todos os anjos céus, para o bem ou para o mal, Matheus não sustentou por muito tempo o seu deslumbramento. Com uma forte gargalhada, beirando a indiferença, revelando de pronto o quanto estava cansado e que precisava dormir e dormir muito, abandonando-me logo em seguida para se jogar com violência sobre a cama, onde desmoronou entorpecido, permitiu que as batidas do meu coração recuperasse o ritmo — ou próximo disso — para que eu pudesse voltar a respirar um tanto aliviado. Mas ainda assim não consegui relaxar; não consegui chegar a um denominador comum que pudesse justificar a motivação que o levou a agir da maneira como agiu, partindo do princípio de que ele, Matheus, é hétero!

Será que tudo não passou de uma simples brincadeira para espairecer, e eu, com o meu nível de carência colossal, acabei enxergando algo nas entrelinhas, confundido um gesto comum, uma zombaria entre amigos, como um possível sinal de interesse? Mas se de fato foi isso o que aconteceu, por que Matheus decidiu escolher justo o tipo de brincadeira de mau gosto, digna dos seus amiguinhos Neandertais?

Evidente que na manhã seguinte Matheus agiu da maneira mais natural possível e não fez nenhuma outra brincadeira que aludisse àquele instante. E por que faria, não é mesmo? Quanto a mim, continuei cismado, e pior, carregando um enorme e inesperado sentimento de culpa ao mesmo tempo que acreditava que o meu melhor amigo iria de uma hora pra outra me confrontar, perguntar se estava tudo bem, pois sabia que havia se comportado mal e blá, blá, blá…

Em suma, nada disso aconteceu, até mesmo porque Matheus não é desses que costuma ficar justificando suas ações. Ao menos as que ele acredita serem irrelevantes. E os dias foram se passando e meu receio, como não poderia ser diferente, foi diminuindo, mas inacreditavelmente não consegui me sentir tranquilo. A bizarra certeza de que alguma coisa dentro de mim pareceu despertar, pareceu trazer à tona sentimentos há muito adormecidos, só fazia aumentar, e parado defronte a uma bifurcação de uma estrada sinuosa que eu conhecia tão bem, graças ao Gabriel e ao seu coração de gelo, decidi apostar no caminho menos doloroso, depositando todas as minhas fichas na hipótese de que minha repentina atração pelo meu melhor amigo não fora nada mais do que algo completamente ridículo; uma impressão equivocada que iria embora da mesma maneira que havia chegado.

Enfim, cada um dos meus esforços, para o bem ou para o mal, foi dolorosamente medíocre. Minha postura arredia, minha agitação e meu azedume não atingiram a ninguém mais a não ser a mim mesmo. E Matheus, com suas incontáveis tentativas de reaproximação, só ajudou a tornar toda minha angústia ainda mais insuportável, até que no dia do seu aniversário, quando me aproximei, hesitante, sendo envolvido de imediato num forte e terno abraço, antes de qualquer investida de minha parte, não me restou alternativa senão optar — impelido por um honorável sentimento de covardia e um cansaço opressivo — em manter a nossa amizade como sempre fora.

Qual a razão de não termos sequer a chance de escolher por quem nos apaixonar? Acredito que sofreríamos com mais resignação caso não fossemos correspondidos ou se não tivéssemos coragem suficiente para nos declarar.

Pois é. E assim caminha a humanidade e eu, Kadu, também, enquanto vou sobrevivendo a cada um dos meus dias, à medida que sigo questionando minha própria existência, esmiuçando fervorosamente a crueldade que acompanha todas as dúvidas, depois daquela madrugada, início de maio, há quase um ano. Nesse meio tempo, eu e minha família continuamos a colidir como corpos celestes dentro do nosso universo de 700 metros quadrados na Barra da Tijuca; Matheus prossegue com sua coleção de infinitas namoradas; a Terra, claro, não parou de girar; e os meses seguem desfilando à minha frente ora numa velocidade atroz, ora numa lentidão entediante, e nunca, nunca em uma velocidade que eu possa acompanhar.

Meu diário de bordo, desde então: junho, o niver do Matheus; segunda quinzena de julho, férias; agosto e setembro, testes, provas, trabalhos; outubro, mais trabalhos e a Comissão de Formatura sendo montada um pouco tardia — às portas do início do último ano — e com meu nome escolhido para assumir a presidência, ocasião em que, apesar de todos os esforços para me desvencilhar dessa responsabilidade, acabei com o cargo de vice-presidente sobre o meu colo. Novembro, o professor passando um trabalho de Filosofia, exigindo mapas conceituais sobre o tema A importância da cultura no diálogo entre grupos sociais, o que me ajudou um pouco a tirar o foco de Matheus. UM POUCO. Primeira quinzena de dezembro, provas, a apresentação do trabalho de Filosofia, algumas festas, que eu, claro, vendi a alma para não participar, e o final do ano letivo acontecendo. Janeiro, cinemas, shoppings, algumas festas, DE NOVO, e Matheus quase sempre perto de mim conforme meu cérebro segue adiante insistindo em processar o som da sua voz como uma música agradável, inebriando meus ouvidos, ao passo que a necessidade de tê-lo ao meu lado para que eu me sinta forte o suficiente no intuito de tomar decisões, importantes ou não, ao mesmo tempo temendo que Matheus as reprove direta ou indiretamente, só faz aumentar.

Exceto por algumas mínimas mudanças nesses quase doze meses, minha rotina permanece a mesma enquanto vou me esforçando para conviver com a mudez dos meus sentimentos, ainda que entre trancos e barrancos. De relevante, a inegável revolução intima que vem se apoderando mais e mais de cada espaço do meu ser, deixando-me absorto entre a emoção e o autoconhecimento, entre o exuberante e o vazio, vasculhando minha razão e também minha sensibilidade, me impelindo a especular todos os possíveis graus de sofrimento que podem afligir um ser humano depois de ele ser atingido pela definitiva certeza de que seu coração não pertence mais a si próprio.

Lidar com os muitos medos típicos da adolescência, como o que o futuro me reserva, ou uma possível separação dos meus pais, ou ainda ter de lidar com a timidez ao mesmo tempo que com o desejo da intimidade, ou ter de suportar suposições críticas sobre a minha sexualidade, ao menos, para mim, não tem sido tão difícil quanto este sentimento perturbador que se instalou dentro do meu peito.

Sim. Sim. Sim. Preciso encontrar um jeito de me confessar a Matheus ou definir os limites que devo alcançar antes de tudo isso se tornar uma fratura irrecuperável e eu não conseguir mais distinguir qual dos dois Matheus estará à minha frente: se o meu melhor amigo de infância ou a imagem que construí dele.

Catão dizia que a alma de um homem apaixonado vivia num corpo estranho, afirmou Plutarco, e eu nunca duvidei disso, muito menos agora.

 

— Para Kadu. Para.

Matheus suplica, ofegante, agarrando, enfim, minhas mãos no intuito de tentar afastá-las de seu rosto; entretanto, minha raiva é imensa, e eu consigo libertá-las e sem titubear cravo minhas unhas nas suas bochechas, arranhando-o e socando-o, à medida que ele continua tentando me afastar até que, depois de algum esforço, consegue fazer com que minhas mãos voem no ar, porém, volto ao ataque e o atinjo num dos lados da face com o punho fechado.

Num átimo, o semblante de Matheus se modifica, deixando transparecer a dor e a raiva que parecem ter explodido dentro de si como uma sequência de fogos de artifícios e daí, num exímio e inesperado gesto de autodefesa, ele consegue colocar suas mãos sob o meu corpo ao tempo que projeta os meus cotovelos para fora, me empurrando, sem demora e com força, para longe de si, fazendo-me voar até cair com as costas no chão. No mesmo instante, sinto uma dor quase insuportável invadir minhas costelas, mas, ainda assim, com o rosto crivado e os olhos semicerrados por essa dor, consigo ver Matheus se levantando.

— Escuta Kadu — ele inicia num tom de voz arquejante — Eu não vou dançar essa música, ok? Somos amigos e quando você estiver mais calmo me procura pra gente poder conversar de maneira civilizada.

Balanço a cabeça em negativa à medida que vou recuperando o fôlego e buscando controlar, ou me acostumar, com a dor nas minhas costelas enquanto tento me colocar de pé. Súbito, Matheus estende uma das mãos para mim e eu a renego, claro. Gabriel Garcia Márquez disse ter aprendido que um homem só tem o direito de olhar o outro de cima para baixo se for para ajudá-lo a levantar-se, e Matheus, neste exato momento, está se sentindo o máximo na posição em que se encontra, entupido de orgulho, bem longe de qualquer impulso de altruísmo e modéstia sugeridos por Márquez.

Encaramo-nos. Um silêncio brutal percorre em mão dupla a curta distância que separa a mim e a meu quase ex-amigo.

Sim. Algumas pessoas preferem ser medíocres. Outras, quando resolvem não ser, correm o risco de perder as amizades, como bem definiu Oscar Wilde. Pois que seja! Persisto na minha negação, na minha resistência e Matheus, por fim, dá de ombros e recolhe a mão para em seguida começar a limpar o que acho ser poeira sobre a sua roupa.

— Minha mãe está coberta de razão quando diz que você não passa de um usurpador, se aproveitando de um lugar que não é seu! — disparo sem ponderar. Preciso feri-lo de alguma maneira. Ele não pode e não vai sair daqui como um semideus, acreditando estar acima do bem e do mau; detentor de todas as virtudes do mundo — Onde está sua dignidade ao aceitar o conforto que os seus padrinhos lhe dão enquanto a Ana e o Lucas penam convivendo com o insuportável do pai de vocês?

Matheus cessa o seu movimento sobre a roupa e me fita; o olhar, gélido. Sei o que está se passando em seu cérebro em ebulição. Adivinho os seus pensamentos como se fossem meus. É óbvio que está chocado. Magoado. Mas não era isso o que eu queria?

Ele segue me encarando com uma expressão carregada de angústia, desgosto, e o pior de tudo, de piedade, a porra da piedade mesclada às lágrimas que começam a cintilar em seus olhos. E não reage. Matheus não reage e também nada responde. Apenas se mantém firme. Uma figura aparentemente inabalável, estagnada à minha frente, enquanto decido fechar os olhos para não confrontá-lo.

Merda. Merda. Merda. Eu deveria estar exultante, soltando fogos de artifícios diante da vitória que conquistei nos instantes finais dessa batalha. Mas não. Estou me sentindo o pior ser humano da face da Terra. Partido ao meio. Completamente arrependido com o que acabei de dizer… Porque teimamos em esquecer que a vida não é um jogo de pega-pega onde alguém sempre tem que correr atrás do outro para provar que é o melhor, transformando razão em julgamento?

Apoio uma das mãos no abdômen e a outro no peito e por meio do diafragma começo a respirar lenta e profundamente… Vou corrigir isso, aqui, agora, nem que seja tão somente para me igualar a Matheus em hombridade e nobreza…

Expiro e inspiro…

Preciso engolir o meu orgulho custe o que custar…

Ouço passos, fortes, rápidos, descendo as escadas. Abro os olhos. Matheus já não está mais aqui. Em questão de segundos, uma dor, não física, mesclada de culpa, tristeza, apatia e raiva, uma raiva quase incontrolável, invade o meu peito, arrebentando-o de tal modo a ponto de não me deixar alternativa senão a de permitir que o choro fuja de vez da minha garganta à medida que meu corpo todo estremece.

— Eu te amo, Matheus — balbucio entre soluços depois de voltar a fechar os olhos — Eu te amo. Sei que te amo. Perdoa-me. Vou conseguir deixar de ser esse idiota, esse imaturo… Vou conseguir…

Uma sucessão de imagens rápidas, fragmentos sendo pinçados, sobrepondo-se uns aos outros, começam a desfilar em minha mente: Matheus me deixando beijá-lo sem qualquer sinal de resistência, em seguida gritando a plenos pulmões que sabe que sou gay e que não há problemas com isso, depois me exigindo uma explicação sobre o beijo que lhe dei… Lembranças de nossa infância… Dona Marcela tentando proibir nossa amizade… Brenda me encarando, desafiadora, ao lado de Matheus, como se ele fosse um troféu… Estilhaços dos sonhos eróticos povoados pelo meu melhor amigo e também pelo infeliz do Gabriel…

Meneio a cabeça, brusco, sentindo o atrito do couro cabeludo contra o chão e também sentindo de imediato a dor nas costelas que reflete em meu pescoço, em minha mandíbula, enquanto tento desesperadamente expulsar esta avalanche de memórias, de marcas, de impressões reais, projetadas, conscientes, inconscientes… Mas elas teimam em ficar, ameaçadoras, alternando-se tão desenfreadas e tão sem critérios quanto antes, até que começo a sentir uma das mãos de Matheus tocando as minhas costas, sem qualquer pressão, numa verdadeira sutileza, como sugerindo para que eu continuasse a beijá-lo, aqui, neste patamar, aos pés desta escada, como aconteceu quase agora antes de começarmos essa discussão, essa briga idiota. Também volto a ser invadido pela sensação de que esse beijo, que deveria ter sido uma poção mágica nos deixando completamente conectados, não significou nada. A satisfação inebriante e quase desmedida de uma criança mimada após ter conquistado o seu brinquedo favorito, a mesmíssima impressão inconveniente que me acometeu quando nossos lábios estavam unidos, agora me consome por inteiro, impulsionada por uma certeza medonha:

NÃO!

As coisas não podem mudar assim, de uma hora para outra. Muito menos os sentimentos. Ainda mais quando eles existem, estão impregnados há tanto tempo dentro da gente.

Eu te amo Matheus, há quase um ano, há quase um ano… Não estive… Não me enganei… Sei que te amo e esse beijo tinha que ter sido diferente, tinha que ter acontecido de outra maneira, em outro lugar, e foi por isso, sim, que acabei… que estou confuso. A minha expectativa exacerbada e o meu descontrole, sem sombra de dúvida, geraram… Não! Elas estão gerando a porra dessa impressão equivocada.

Vazio e vergonha substituem, na velocidade de um relâmpago, a lembrança, o esforço que faço para manter o grau emocional e espiritual que existia entre mim e Matheus antes desse beijo… O esforço para manter a recordação, vívida, dele tocando as minhas costas, de novo, de novo e de novo, assim como o seu olhar naquela madrugada depois de terminarmos o trabalho de história; suas mãos quase sempre se encostando aos meus braços enquanto conversamos; sua decisão em assistir algumas séries que eu havia sugerido há tempos… seus abraços mais longos que o de costume quando nos encontramos, ou nos despedimos…

Aperto os olhos, forte.

Matheus não ofereceu nenhuma resistência… Ele sente alguma coisa por mim. É evidente!

Eu te amo Matheus, sei que te amo! Você se tornou o centro do meu mundo e ninguém se transforma na razão de viver de outra pessoa por acaso.

Abro os olhos.

Eu não vou mais pensar nisso. Não vou. Irei seguir adiante, acreditando no meu amor e agora certo de que essa possibilidade pode, sim, se tornar real, e vou lutar por você, Matheus.

Tento me levantar.

Preciso…

A dor das costelas ainda incomoda e então inspiro profundamente, de novo e mais uma vez, enquanto as lágrimas continuam a fazer o seu trabalho ao tempo que volto a apoiar os cotovelos no chão, me esforçando para tentar começar a ficar de pé, conforme vou amargando a sensação de que estou beirando a decrepitude, que estou drenado de sentimentos…

Obstinado, olho para o teto. Ele parece girar e não muito rápido, mas ainda assim parece se mover.

Estou cansado. É isso.

A realidade é por demasiado dolorosa e pensando bem não quero mais me levantar. Não quero nunca mais sair daqui… QUERO, SIM, QUE A PORRA DESSE MUNDO ACABE.

Fecho os olhos e daí deslizo os cotovelos lentamente até sentir minha cabeça e a pele dos meus braços tocarem o chão frio e então, depois de contar até dez, abro os olhos, vagaroso: o teto não está mais se movendo.

Para ter certeza de que a lei da gravidade permanece intocável, pisco algumas vezes até que avisto — lembrando que eles existem — os dutos de ventilação e infelizmente, também, a câmera instalada próxima ao teto, na parede que fica de frente para a porta corta-fogo. De pronto giro o pescoço bem devagar até encontrar a outra câmera, fixada no alto da outra parede, sobre o primeiro nível da sequência de degraus que leva ao próximo andar. 

Mas que merda!

Inspiro e expiro ao passo que retorno o pescoço à posição em linha reta, nivelado ao corpo.

Espero que o síndico tenha a decência de apagar seja lá o que for que essas duas infelizes possam ter gravado.

Balanço a cabeça um tanto desolado.

Graças a cada um dos anjos do céu não há um espelho por aqui. Não sei se teria coragem de me encarar, de encarar meu medo, meu desespero, minha raiva…

“Você realmente achou que eu não ia perceber nada, Kadu? Caralho. Crescemos juntos, jogamos games, íamos para aquelas festinhas ridículas onde criticávamos tudo e todos, e na escola sentamos um do lado do outro. Somos como irmãos e você, Kadu, realmente achou que eu não perceberia alguma mudança que poderia acontecer?”

Você não, Matheus. Você com toda certeza não deixaria nada escapar a seus olhos, como eu deixei. Não criaria um mundo de faz de conta, ignorando, convenientemente, aquilo que poderia lhe ferir…

Eu não quis enxergar que você estava me protegendo contra os ataques dos seus amiguinhos Neandertais. E tudo estava lá, acontecendo bem embaixo do meu nariz… Eu não quis enxergar que você estava me dando toda a chance do mundo para que me abrisse, dividisse contigo a minha dor…

É isso. Sou um estúpido, um medíocre de um sonhador, transcendendo com meu orgulho o comum e o banal da vida cotidiana, sem me dar conta de que estou correndo o risco de ficar trancafiado na minha própria fantasia. Resistindo em enxergar que minha vida não passa de um mero jogo de damas, onde movo com incontrolável afã, sobre um tabuleiro desgastado, as peças que me cabem. Acreditando que está tudo sob controle até perceber que o domínio que julgo possuir não passa de uma pretensão vulgar porque simplesmente decidi construir todo o meu jogo sobre uma posição defensiva e arrogante.

Culpa, insegurança, frustração, todas, agora de mãos dadas, atravessam o meu peito, sobem pela minha garganta…

Eu te amo, Matheus! Eu te amo! E meu amor por você precisa ser mais forte que um erro. Do que a porra de uma covardia, de um orgulho sem sentido. Dona Marcela, doutor Carlos Eduardo, o mundo, que seja! Que lutem! Eu preciso de você ao meu lado… Vou consertar tudo isso. Espera, por favor. Vou consertar tudo isso…

Cubro os olhos com as mãos, sentindo uma vontade feroz de gritar, à medida que sou tomado por uma sensação absurda de sufocamento; de que estou aprisionado num calabouço frio, escuro, onde as chaves foram jogadas fora após minha detenção até que ouço um telefone tocando, insistente, e demoro alguns segundos até distinguir, reconhecer, que é o meu celular anunciando uma ligação da Sônia.

Retiro as mãos de cima dos olhos.

Caralho!

A Maria Clara.

Tenho que atender. Tenho que atender.

Superando todas as minhas fraquezas emocionais, o desconforto com as pontadas nas costelas, de início agudo, mas tolerável, consigo, entre trancos e barrancos, ficar em pé, apoiando o corpo sobre a parede. Meu crânio parece carregar uma porção de pregos com pontas afiadas, constato enquanto esfrego rapidamente as palmas das mãos uma na outra para logo em seguida resgatar o telefone do bolso da calça jeans, que não para de berrar.

— Oi? — pergunto ao mesmo tempo que corro os olhos à minha volta buscando o destino que meus óculos tomaram depois de voarem a quilômetros de distância enquanto eu partia pra cima do Matheus…

— Que voz é essa Kadu? — Sônia, como sempre, determinada, perspicaz e também preocupada.

— É a que eu tenho Sônia — replico sem demora — Notícias da Maria Clara?

— Graças ao Pai ela abriu a porta do quarto e sua mãe, evidente, não deixou passar um minuto sequer para começar a infernizar a alma da pobre menina.

Um estalo. Um gatilho. Desligo o celular, o enfio no bolso e enquanto seco as lágrimas — ou o que restam delas — com o dorso das mãos, me afasto da parede num salto para resgatar os óculos que estão caídos num canto do chão deste largo patamar, próximo ao último degrau do lance de escada que leva ao meu andar. 

Estão ilesos. Aleluia!

Ato contínuo, eu também observo o espaço vazio próximo a este último degrau, à minha direita, onde Matheus havia depositado sua mochila… Cerro os lábios e me deixo mergulhar por alguns segundos em um suspiro pesado, mordendo meu lábio inferior, até que levanto os olhos, endireito-me, e ao passo que ajusto os óculos sobre o rosto, testo os meus reflexos para tão logo, no mesmo frenesi, subir as escadas e abrir a porta de ferro corta-fogo como se ela tivesse sido feita de papelão. Um revérbero da dor nas minhas costelas permanecem, mas decido deixá-lo de lado, ignorá-lo, ao menos por agora, pois Maria Clara precisa de mim e só Deus para saber o que vou encontrar.

Como fui egoísta esquecendo por completo a minha irmã?

Atravesso o batente, deixando a porta de ferro fechar num forte baque atrás de mim, logo depois o corredor, deixando para trás os pontos de luz com intensidades baixas, promovidos pelo sensor de presença, e daí a entrada do apartamento, onde Sônia me aguarda à porta, solícita e discretamente aflita. Em seguida atravesso o hall e a sala de estar como se o mundo estivesse a poucos instantes do seu fim, até que entro pelo corredor afora, passando por suas prateleiras, apoiadores, tapetes persas — onde, como sempre, quase escorrego num deles —, murais com fotografias da família e consigo, por fim, alcançar a frente do quarto de Maria Clara, cuja passagem está sendo bloqueada por nossa mãe, que mantém os dois braços abertos, em cada lado do batente da porta, como uma fera determinada a não deixar que sua presa escape do cativeiro… ou de uma armadilha.

Num esforço quase sobre-humano, consigo, acima dos ombros de dona Marcela, esquadrinhar o semblante de minha irmã, que está completamente marcado pelas lágrimas, carregado de uma expressão nítida de sofrimento, dando a impressão de que ela, Maria Clara, foi atingida na alma por uma comoção profunda; algo que decerto poderá vir a marcá-la pelo resto da vida.

— Escuta aqui, Maria Clara. Não quero e nem tenho tempo para ouvir explicações. Se é que elas realmente existem…

Dona Marcela, ao que parece, não está se sentindo nem um pouco incomodada com o estado lamentável da própria filha. E não sei por que razão eu ainda me admiro com isso…

— Vai tomar um banho rápido, garota. Passar uma maquiagem nesse rosto que mais parece uma mortalha, uma pedreira abandonada e devastada, para irmos logo para o ateliê provar o seu maldito vestido. Acho que não preciso lembrar o quão atrasada estamos. E por sua causa.  

Maria Clara, de imediato, começa a olhar a esmo, de um lado para o outro do corredor, parecendo estar totalmente perdida, sem rumo, chegando mesmo a dar a impressão de que está fora de si. Todavia, num instante, sua busca parece terminar ao se deparar com minha presença e algo em seu semblante, ao menos aparentemente, ganha vida. Uma fagulha de consciência queimando, ainda que retraída.

— Não vai mais haver casamento — ela anuncia com uma voz embargada, um tanto seca, enquanto balança a cabeça devagar, sem tirar os olhos de cima de mim — Não vai mais haver casamento…

— O que você está dizendo, garota?

Dona Marcela mal termina sua pergunta e vira a cabeça na minha direção, decerto acompanhando o olhar de Maria Clara, e, ao se deparar com minha presença, não consegue esconder o atordoamento que toma conta de todo o seu rosto. Contudo, surpreendentemente, não me faz qualquer pergunta. Nada. Nenhuma palavra. Apenas trata de me medir de cima a baixo, como se eu fosse um estranho e este apartamento o último lugar da Terra em que eu deveria estar. Por fim, acaba se voltando para Maria Clara.

— Você está querendo ganhar tempo, é isso? — a poderosa socialite sussurra. Mesmo de costas para mim, consigo “visualizá-la” soletrando cada uma dessas palavras, entredentes, como se desafiando Maria Clara — Responde, garota. Já conheço esse joguinho de gato e rato que está tentando fazer.

A ordem de dona Marcela vem seguida de um soco, forte, dado com um de seus punhos fechado em cima do apoiador que está à sua direita, fazendo estremecer os murais com fotografias da família que estão sobre ele, pendurados à parede. Nossos olhares, meu e de Maria Clara, se encontram à medida que nos deparamos com o sobressalto um do outro, ao mesmo tempo que dona Marcela volta a esticar o braço direito —, usado para socar o pobre do apoiador — até alojá-lo no batente da porta, atravancando por completo, e novamente, a saída do quarto.

O que faço? Realmente não sei como agir, ou reagir. O que aconteceu de fato? Por que Maria Clara está informando que não vai mais ter casamento? Como assim? Gustavo e ela chegaram a um consenso? Ou foi um dos dois que decidiu tomar essa decisão, agora, nos 45 minutos do segundo tempo? Estou me sentindo como se estivesse sido jogado dentro de uma trama rocambolesca, sem roteiro, sem direção… Matheus! Matheus! Eu preciso de você!

“Por acaso você, e a dona Marcela, chegaram a se perguntar, antes de criarem todo esse alarde entorno da Maria Clara, sobre a possibilidade de ela ter escolhido ficar sozinha por um tempo, refletindo sobre essa história de casamento?”

De imediato minha mente é invadida por um fragmento da conversa que tive com Filipa enquanto a seguia rumo à clínica do noivo onde acabei servindo de testemunha para mais um dos seus chiliques motivados por sua eterna insegurança.

“Seria mais que natural, não, Filipa? Afinal de contas, daqui a quatro dias a vida dela vai mudar…”

“Um pouco tarde pra isso, não acha Kadu?”

Meu Deus! Será que Filipa sabia de alguma coisa e foi até o CGAM pra me contar e não teve coragem?

Sinto a dor sobre as minhas costelas. Sinto pontadas na região anterior do tórax. Um analgésico. Eu preciso de um analgésico com urgência.

— É isso mesmo que a senhora ouviu, mãe — Maria Clara, fitando dona Marcela, parece buscar forças no infinito e além para continuar — Acabou. Sinto muito. O casamento não vai mais acontecer.

— Chega! — o nervosismo e a falta de controle finalmente começam a pontuar o tom de voz de dona Marcela, que segue com os braços abertos frente à porta do quarto — Não vou mais ficar aqui…

— O Gustavo me deixou — Maria Clara a interrompe sem titubear, com uma voz calma, porém, firme, enquanto derrama a notícia com os lábios franzindo num ricto nervoso, que se estende por todo seu rosto, contraindo uma das faces — É isso… — ela dá de ombros — O Gustavo me deixou.

 

 

 

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