FALE COM ELA

Maria Clara leva uma das mãos até o lado do rosto que foi atingido e delicadamente, em um movimento circular, acaricia a área golpeada, agindo não mais que por instinto a fim de conferir o dano causado pela agressão, já que nenhum traço em seu semblante denota o mínimo sinal de dor ou incômodo. A pequena circunferência formada pelo ir e vir de seus dedos está ajudando a evidenciar a passividade que permanece exalando de si, ao mesmo tempo que a postura obstinada que assumira há pouco aparenta estar se dilatando, ainda que silenciosa, enquanto deposita sobre nossa mãe um olhar mesclando amargura, serenidade e também, sabe Deus o porquê, compaixão.

Em contrapartida, dona Marcela — tenho a impressão, apesar de isto parecer bastante incrível — não está nem um pouco surpresa com esta atitude da filha que nunca a enfrentou, que sempre acatou seus disparates recuando numa conduta constrangida. Entretanto, na verdade, é possível que esteja, sim, incomodada, afrontada até. Algo ofensivo no seu olhar astucioso manifesta a contrariedade irascível que lhe é tão peculiar.

Silêncio… Silêncio… Silêncio…

Quanto tempo mais vai durar esta trégua tão frágil?

Continuo a olhar para dona Marcela, que não desvia a atenção um instante sequer de Maria Clara, conforme tento processar a sensação colossal de incredulidade que invadiu impiedosamente cada um dos cantos da minha consciência. A senhora Albuquerque de Araújo Saldanha segue expressando sua presunção, desamor e egoísmo mesmo diante de todo esse cenário. Em definitivo, nada, exatamente nada consegue sensibilizá-la.

Respiro fundo ao tempo que me volto para Sonia estacionada ao meu lado. A propósito, ela me parece algo resignada, como era de se esperar, e tão somente move os olhos na minha direção, rápido, apenas para indicar que está inteirada do meu assombro e da minha ansiedade, retornando sem demora sua atenção para dona Marcela e Maria Clara. Eu a sigo, contudo, passo a mirar exclusivamente minha irmã, que apesar da fadiga, da urgência e de uma ferocidade cuidadosamente contidas, mescladas às marcas das lágrimas deixadas em seu rosto, permanece exalando confiança e resistência inabaláveis, reunindo forças para mostrar um semblante de dignidade. 

Cacete!

Um calafrio percorre todo o meu corpo ante a constatação que acaba de me assaltar.

É isso. Maria Clara decidiu vencer este conflito pacificamente e esta é a sua estratégia: está dando à nossa mãe o benefício da vitória, como sempre, mas desta vez deixando atrás de si um pequeno rastro de destruição ao romper, diligente, a fortaleza de orgulho, opressão e exigências descabidas, construída por dona Marcela no decorrer de todos esses anos, para sitiar não só a ela, Maria Clara, mas a todos nós dessa família também.

Bingo!

E não por acaso, dona Marcela tem plena consciência de que este triunfo não lhe pertence. Talvez até mesmo esteja compreendendo, ao seu modo, mesmo contra a vontade, que nenhuma das outras batalhas vencidas tenha sido sua de verdade. E por estar sendo forçada, diante dos próprios filhos, aqui e agora, a colocar a cabeça para fora do castelo de areia que vem habitando, decide, por fim, contra-atacar, endireitando-se, assumindo de pronto sua costumeira altivez, passando a fitar minha irmã com desdém para em seguida medi-la de cima a baixo, com o mesmo modo arrogante de sempre, até acurvar uma das sobrancelhas, retirar o braço esquerdo que ainda mantinha num dos lados do batente da porta e se voltar, intensa, na minha direção, mas não para me dirigir qualquer palavra, um olhar que seja. Ou para Sônia, que ainda está ao meu lado, segurando o meu braço.

Dona Marcela simplesmente nos ignora por completo, enquanto cruza a nossa frente com passos firmes, pesados, como se fossemos dois fantasmas, ao tempo que segue sem demora rumo à saída do corredor conforme mantém a cabeça erguida de uma forma exageradamente afetada e assombrosamente sem emitir uma palavra sequer. O orgulho, aparentemente, é tudo que lhe resta e este silêncio, este recuo, não vai ficar barato, tenho certeza disso.

Tão logo dona Marcela desaparece de nossas vistas, nós três, eu, Maria Clara e Sônia, reflexamente nos encaramos. Parece que estamos num bote, à deriva, depois da passagem de um furacão, de uma forte tempestade que destruiu nossa embarcação à medida que permitimos, ao mesmo tempo, que o ar saia de nossos pulmões numa única arfada, renovando a oxigenação de nossos cérebros.

— Acho que você precisa descansar um pouco, Maria Clara — Sônia sugere, quebrando, por fim, o mutismo invariável que se abatera neste corredor enquanto solta o meu braço — Vou te trazer um relaxante pra ajudar… E um chá também — ela sorri um sorriso fraco, distante, tímido, mas tão confortador e acolhedor e que só mesmo ela consegue ofertar nos momentos de crise, como este.

Num rompante, um brado de dona Marcela invade o corredor chamando por Sônia, para que a ajude a encontrar as chaves do carro. Numa fração de segundos parece que deixamos de respirar e eu sinto novamente a dor sobre as minhas costelas e pontadas na região anterior do tórax conforme, do nada, me lembro de agradecer a todos os anjos do céu por não ter permitido que Filipa, até agora, tenha dado as caras. Seria o ápice da tragédia grega.

— Vamos esfriar nossas cabeças, não é mesmo? Nada, com exceção da morte, é definitivo nessa vida e todas as coisas, como sempre, acabam retornando aos seus devidos lugares — Sônia trata de aconselhar, alternando o olhar entre mim e Maria Clara, colocando as mãos suaves sobre nossos ombros, nos entregando ordem e dignidade para em seguida se afastar rumo à saída do corredor, carregando consigo, como sempre, nossa eterna gratidão.

Sem perder um segundo sequer, volto-me para minha irmã e a vejo, ainda — e naturalmente —, mergulhada numa quietude mordaz, contudo, sua sóbria postura obstinada, seu semblante com ares de pacificidade vão sendo substituídos gradualmente por uma expressão carregada de desespero, inquietação; a mesma expressão de quando a encontrei aqui, na frente da porta do seu quarto, acuada por dona Marcela, só que desta vez sou tomado pela ideia de que Maria Clara não está pedindo por socorro. Ela está, sim, determinada a gritar, óbvio, como qualquer outro ser humano que estivesse em seu lugar, mas de uma maneira diferente; não um bramido aleatório, espalhafatoso, histérico. Não. Ela quer expressar apenas o quão está em seu limite, o quão necessita que isso repercuta de alguma maneira, sem grandes alardes, agora que estamos a sós neste corredor…

Não posso deixar de me perguntar, durante o tempo que sigo esquadrinhando as linhas que se formam em seu rosto, observando a apatia e a ansiedade caminharem lado a lado sobre sua fisionomia e seus olhos se movimentarem casualmente por alguns instantes, que imagens devem estar perpassando em sua mente enquanto tem, afinal, a oportunidade de absorver a verdade à sua volta?

Maria Clara leva as mãos à cabeça. Está cansada. Seus braços        parecem pesados, parecem lutar contra a corrente… As marcas deixadas pelas lágrimas em seu rosto, atendendo ao pedido, à súplica de seus olhos agora vermelhos, marejados, parecem estar se avolumando, abrindo passagem para outras que decerto virão e que precisam vir.

Fale comigo, Maria Clara, por favor, fale comigo, é o que tenho vontade de lhe pedir, clamar, entretanto, tenho que respeitá-la, eu tenho que respeitar este seu momento de… de….

“Acabou. Sinto muito. O casamento não vai mais acontecer. O Gustavo me deixou. O Gustavo me deixou”.

Por Deus! Posso entrever o inferno no qual minha irmã foi atirada depois que recebeu a sentença do Gustavo; posso vislumbrar o horror que vivenciou enquanto esteve trancada dentro do seu quarto… Ela deve estar se sentindo o pior ser humano vivo sobre o planeta, soterrada por um abismal complexo de inferioridade, é isso o que estou vendo à minha frente. Maria Clara não está conseguindo imaginar como vai lidar com o fardo doloroso que foi colocado covardemente sobre os seus ombros. E justamente por quem? O medo da derrota intima a está consumindo, esse monstro visível, mas inalcançável, está se alimentando de sua fraqueza, deixando-a desesperadamente alquebrada, cansada, esgotada, esmagada, surda, cega, aqui, bem aqui diante de mim…

Minha irmã está me fazendo recordar, assim como Brenda o fez quando me procurou para pedir ajuda para reconquistar Matheus, o quão atordoante pode ser, e é, a dor da rejeição.

Mas que raiva! Como eu gostaria de ter a coragem de lhe contar, Maria Clara, que sei exatamente o que está sentindo. Cada gota desse desamor ramificando dentro do seu coração. Sei que não serviria de consolo, porém, agora que seu casamento com Gustavo provavelmente acabou, não haveria mais porque hesitar em expor a verdade sobre mim e Gabriel fosse o preço que eu tivesse de pagar, e com isso, talvez, de alguma maneira, ajudasse você a enxergar o DNA podre que esses irmãos possuem…  

Gabriel, Gabriel, te odeio e agora também estou odiando você, Gustavo, e mortalmente. Por quê? Porque você fez isso? Por que agiu como o seu irmão, tão covarde quanto? E talvez pior. Muito pior. Sei que durante aqueles três meses em que eu e o Gabriel fomos amantes, eu não passei de uma reles diversão, uma nota de rodapé no livro de aventuras da sua maldita vida, mas você, Gustavo, você assumiu um compromisso com a Maria Clara…

Ninguém namora uma pessoa, se propõe a noivar com ela, uma relação de três anos, mil e noventa e cinco dias, para no final descartá-la da maneira mais vil possível, faltando apenas quatro dias, faltando somente a porra de quatro malditos dias para o casamento. Não há justificativa racional e, sobretudo, uma justificativa essencialmente humana pra isso!

Não. Não posso mais ficar aqui parado. Meu carinho por Maria Clara é imenso e preciso transmitir isso da forma mais urgente possível. É o mínimo que posso fazer depois de tudo que ela já fez por mim.

Quantas e quantas noites você, Maria Clara, passou acordada ao meu lado? Quantos deveres de casa me ajudou a completar, a entender? Quantas vezes você me ajudou a estudar para as provas? Quantas e quantas vezes você me protegeu, adaptou o seu humor para se adequar às minhas crises de felicidade ou tristeza?… Por que ainda não tive coragem de lhe contar que sou gay?

Maria Clara retira as mãos da cabeça e em seguida cobre o rosto à medida que seus ombros se sacodem como se estivesse tendo um calafrio.

Ela está chorando.

Abraço minha irmã com força enquanto sua cabeça pousa sobre o meu ombro. Um choro doído sai de dentro de seu peito conforme sinto seu arfar, o tremor de todo o seu corpo e daí, condescendente, brando, a conduzo para dentro de seu quarto. Mal termino de fechar a porta atrás de nós, me deparo com alguns objetos espalhados pelo chão, ou melhor, o que não é difícil de notar, jogados, atirados a esmo.

Maria Clara nunca permitiu que nada, exatamente nada, estivesse fora do lugar dentro do seu santuário. Nem mesmo por acidente ou um descuido qualquer. É dessas pessoas que gosta de deixar suas coisas bem organizadas, sempre seguindo um padrão acerca dessa organização. Tanto que não se faz de rogada em fiscalizar o serviço das diaristas — que vêm ao apartamento a cada quinze dias —, após passarem por seu quarto, como se a Sônia já não fizesse isso, e rigorosamente. 

Maria Clara retira a cabeça do meu ombro ao mesmo tempo que se desvencilha dos meus braços, numa sucessão de gestos tão abruptos, que sequer tenho tempo de tentar contê-la e, num arroubo, se atira sobre a cama, onde cai de bruços, continuando a chorar, chorar, como uma criança de coração partido.

Nunca, nesses meus anos de vida, presenciei minha irmã chorar desta maneira; em verdade, nunca a vi tão atormentada como agora e sinto certo remorso por isso, pois gostaria de lhe falar, lhe consolar com as palavras certas, desafogá-la deste oceano de desespero e raiva enquanto decide ficar aí, deitada, sem alternativa. Mas tudo o que consigo é este embargo na garganta… Devo ter gasto todas as minhas emoções e minhas lágrimas depois que Matheus me abandonou caído naquele chão.

Deixo o ar escapar dos pulmões morosamente. Em seguida, ajeito os óculos sobre o rosto e ato continuo levo as mãos ao tórax e depois às costas, massageando minhas costelas, pressionando-as com os dedos em pontos distintos durante o tempo que caminho — desviando de alguns dos objetos caídos no chão — até a pequena poltrona com linhas retas e contornos provençal, sem estampa, nude, acomodada próxima à única janela do quarto, num canto, um pouco distante da cama, onde estaco, por fim, desfazendo de pronto o formato de arco nos meus braços, deixando-os pender ao lado do corpo antes de me sentar — jogando pernas e braços para os lados — e apoiar a cabeça no encosto da poltrona, passando a divisar o teto à minha frente, ouvindo o silencio mortal no qual este cômodo mergulhou à medida que vou esquadrinhando o meu entorno, movendo apenas o pescoço, os olhos, observando o ambiente monocromático envolto numa sutil variação de branco, off white; observando prateleiras instaladas próximas ao teto, com alguns poucos livros; prateleiras instaladas no meio da parede, com quadros pendurados aprisionando imagens abstratas; prateleiras ao redor da cama baú, fazendo as vezes de cabeceira; observando o espelho sobre o criado mudo circundado por uma moldura veneziana; a luminária de mesa; as cortinas em voal, brancas; os móveis baixos… Observando o tapete floral ao pé da cama, a porta do banheiro semiaberta, no lado oposto à entrada do quarto…

Fecho e abro os olhos, rápido, repetidas vezes até virar a cabeça na direção da janela, onde acabo por entrever um vulto atrás da cortina e, ainda que turvo, não tenho dificuldades para associá-lo à figura de Maria Clara. Ela esta parada, como hoje pela manhã, lá na sala, fixando o olhar à sua frente, me dando novamente a impressão de que seus pensamentos estão vagando de modo aleatório.

Sim. É Maria Clara. E mesmo de costas para mim consigo ouvir cada uma de suas palavras, na verdade as palavras que foram ditas naquele momento, um pouco antes do Gustavo lhe telefonar, pedindo para que descesse: “aprenda meu irmão que na vida fazemos ou abrimos mão de certas coisas pela felicidade da outra pessoa…”.

Fecho e abro os olhos, rápido, mais uma vez, e então meneio a cabeça lentamente, sentindo o roçar da nuca no encosto da poltrona e numa fração de milésimos de segundo me volto para a cama, para a imagem real de Maria Clara, examinando-a afundada no colchão, chorando, chorando, chorando, deixando escoar o que ainda resta de dentro de si, uma tempestade acumulada que há muito não deveria ter sido ignorada.

“Encontre o que você ama e deixe que te mate”. Não lembro exatamente onde li esta frase de Charles Bukowski, mas agora que me veio à mente, não posso deixar de vinculá-la a Maria Clara. E pensar que sempre apostei todas as minhas fichas na falta de convicção dos seus sentimentos em relação ao noivo. Nunca acreditei que amasse o Gustavo de verdade. Mas não… Minha irmã não camuflou sua coragem, reprimiu suas emoções para acatar a intimidação de nossa mãe. Ela abriu mão de todos os seus princípios deliberadamente, se deixou sacrificar, enlouquecendo, sozinha, em meio a um turbilhão de preparativos insanos, por ele, por esse infeliz do Gustavo.

Será que realmente o filha da mãe não lhe disse as razões do porquê estar desistindo de tudo? E se realmente não o fez, por que Maria Clara aceitou a decisão e pronto? Ela o questionou? O pressionou?

Nesses seis anos em que Maria Clara e Gustavo ficaram juntos, preciso reconhecer, não me lembro de ter enxergado ou presenciado no meu cunhado, ou quase ex-futuro cunhado, algum gesto ou reação incoerente e muito menos indelicada. Pelo contrário. Sempre se mostrou um cara apaixonado pela minha irmã, atencioso com todos à sua volta, brincalhão, amigo, disponível. Um ser humano difícil de não simpatizar no final das contas. Tudo bem que de uns dois anos para cá, ou quase isso, ele se transformou um pouco. Sua presença se tornou mais discreta, suas reações bem mais comedidas, taciturnas; possivelmente uma reação natural depois do acidente de carro que tirou a vida de seus pais, mas nem por isso deixou de lado sua educação, seu cavalheirismo para com todos, e principalmente sua atenção, sua ações e reações dedicadas à Maria Clara.

Está faltando uma peça dentro desse quebra-cabeça.

Ajeito-me na poltrona, coluna ereta, os joelhos num ângulo de 90 graus e os pés apoiados no solo e daí eu direciono a atenção para os objetos espalhados pelo chão. Bichos de pelúcia, travesseiros, alguns livros, porcelana quebrada… Faço menção em me levantar para recolhê-los, porém, desisto. Precisam ficar onde estão, pois cada um deles serviu e está servindo ao seu propósito: catalisadores da raiva da minha irmã.

Como temos essa capacidade absurda de imaginar milhões de ideias agradáveis, sublimes sobre a pessoa que julgamos amar? O que nos dá este direito? Esquecemos, no final das contas, que elas são tão ou mais imperfeitas como nós. E algumas delas conseguem atingir um grau extraordinário de insensibilidade, de sordidez…

Um sentimento de opressão invade meu peito ao mesmo tempo que de súbito a figura de Matheus se multiplica em minha mente, num redemoinho de lembranças, pseudolembranças, pensamentos, todos irrefreáveis, transitando de um lado para o outro, atropelando-se em uma tela em curtos intervalos de tempo…

Deixo-me cair novamente sobre o encosto da poltrona enquanto olho para teto, branco, off white, e vejo e ouço Matheus assumindo que sim, tinha me blindado frente aos seus amiguinhos Neandertais; ouço Matheus me pressionando, me torturando para que confessasse, me abrisse para ele depois do beijo que lhe dei; o escuto assentindo descaradamente que já havia ficado com um carinha… Assim como também me vejo caído no chão, humilhando meu melhor amigo com aquelas duras palavras, chamando-o de usurpador, repetindo com um prazer infantil a sentença repulsiva disparada diversas vezes por dona Marcela…

Seguro a respiração e fecho os olhos…

As dores nas minhas costelas me lembrando da queda que levei enquanto Matheus se defendia do meu ataque… Por todos os anjos do céu, eu arranhei o rosto do Matheus.

Solto todo o ar preso e abro os olhos. Vozes murmuram na minha cabeça e meus músculos se retesam como se estivessem sendo cobertos por sucessivas camadas de gelo ao tempo que recordo de quase todas as confissões que ouvi do meu melhor amigo gabando-se de suas incríveis conquistas, suas histórias mirabolantes com as garotas que nunca resistiram ao seu encanto.

Por que Matheus decidiu ficar com um carinha? Queria provar o quê e pra quem? Por que me deixou beijá-lo sem qualquer resistência? Daqui a dez meses fará dezoito, então, acredito, qualquer dúvida sobre sua sexualidade já deveria ter deixado de existir…

Não. Não. Não posso pensar em você agora meu amigo. Aliás, meu quase ex-melhor amigo. Preciso rever esse tratamento, pois não sei se depois da discussão que tivemos Matheus irá me perdoar.

“Ela disse ser natural um filho odiar o pai. Ser natural uma filha odiar a mãe…”.

Oi?

A voz de Maria Clara me causa um sobressalto. Olho para a cama e a vejo terminando de se virar, acomodando-se, com os braços cruzados sobre o peito, permanecendo deitada, fitando o teto. No rosto, as marcas pesadas, quase indeléveis, deixadas pelas lágrimas. E ainda há algumas delas, finas, escorrendo pelas faces. O assombro e o desespero, o semblante inspirando piedade agora está coberto por uma sombra de invulnerabilidade, intensa, porém sóbria, guiada por um olhar lancinante que não para de se mover, célere, de um canto ao outro…

— Como ela pode banalizar e relativizar os vínculos, a integridade que existem ou que deveriam existir entre seus pais e seus filhos? Por que ela escolheu ser mãe? Em que momento ela perdeu a capacidade de nos enxergar? De vislumbrar o brilho que existe em cada um dos seus filhos? Não é possível que nos tenha gerado, um a um, completamente alheia à natureza que lhe deveria ser inerente…

Maria Clara volta a cabeça na minha direção, passando a me fitar, determinada, à medida que consigo ler em seus olhos a decisão que tomou, a de encarar a realidade ainda que esta realidade seja um sinônimo de aflição.

— Sei que estou sendo horrível, Kadu, ao dizer isso de nossa mãe. E me sinto muito, muito triste, culpada até, por esta constatação, mesmo depois de tudo o que já aconteceu entre nós duas. Mas elas não são perfeitas, não é mesmo? — Maria Clara volta a mirar o teto — As mães… É um fardo pesado demais para se colocar nos ombros de cada uma delas. Talvez por isso ainda me dê ao trabalho de tentar entender os laços de ternura e incompreensão que nos une.

O desapontamento na voz de Maria Clara é pungente e me sinto incomodado com suas observações. E o pior de tudo é que ela tem razão ou tem o direito, ou os dois, de verbalizá-las e eu, sim, sou um covarde, pois alimento pensamentos na mesma proporção, acobertando, amenizando-os com metáforas cinematográficas, pseudoingênuas, buscando com isso atenuar minha indignação, já que ainda insisto em carregar a esperança, talvez como Maria Clara venha fazendo até aqui, de que nossa mãe, de que dona Marcela deveria ser a mulher mais linda do mundo, a mais perfeita. Tratando de me convencer de que todos os seus defeitos deixarão de existir depois de trancafiá-los em algum cômodo do meu cérebro tendo o sentimento de culpa plantado à porta, enquanto convido um Complexo de Édipo exacerbado para assumir o meu lugar.

— Eu tenho medo de ficar igual a ela, Kadu. Não quero me tornar essa pessoa que é a nossa mãe.

— Mas do que é que você está falando? — questiono enquanto saio da pequena poltrona para me sentar à cama, bem próximo ao rosto de Maria Clara, passando, de pronto, a acariciar os seus cabelos — Você jamais vai ser igual à dona Marcela, e mesmo que quisesse não iria conseguir, pois nossa querida irmãzinha Filipa já faz este trabalho, e muito bem, por sinal.

Maria Clara não reage à minha piada.

— A nossa mãe está certa — ela respira fundo, levanta uma das sobrancelhas e aperta os lábios com força antes de seguir adiante — Não passo de uma menina, uma mulher mimada de trinta e três anos que ainda mora na casa dos pais…

— O que uma coisa tem a ver com a outra? — não posso deixá-la continuar a descer por esta estrada — Você não é mimada. Você, minha irmã, pode ser chamada de muitas coisas, mas de mimada, fresca, com certeza, não.

— Acomodada, então — Maria Clara insiste, persiste — Não vamos botar panos quentes, Kadu. É simples. Eu permaneço dentro dessa casa por muro comodismo, ou medo, vai saber, e com isso vou alimentando essa relação doentia, essa dependência com nossos pais, com a nossa mãe, e presumivelmente ela se sente no direito de manipular a minha vida… Ela não tem respeito algum por mim.

Maria Clara projeta o corpo para o lado, afastando sua cabeça, seus cabelos de entre as minhas mãos e daí se senta na cama, cruza as pernas, coloca os pés em oposição às coxas, como se estivesse se preparando para meditar ou algo parecido, e passa a me encarar.

— Vou dizer uma coisa horrível, mas não me importo e confio em você — seu semblante transmite, agora, certa quietude, mesmo depois de ter atravessado toda uma tempestade — Não sei se eu amaria a nossa mãe se eu não fosse sua filha.

Me reteso, surpreso, e franzo as sobrancelhas e engulo em seco diante dessa inesperada confissão. Não sei o que dizer. Não sei se devo dizer alguma coisa… Não sei se devo concordar…

— Creio que chegou a hora de deixar essa casa — Maria Clara se pronuncia num tom de voz inabalável — E gostaria que você viesse comigo, Kadu.

   

 

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