FILIPA, A ESTRANHA

– Como assim desapareceu? Do que você está falando? 

Questiono firme, ao passo que olho rapidamente para o alto, para a claridade forte do sol atravessando as duas janelas de vidro basculantes e, em seguida, baixando a visão até fixá-la  num pequeno amontoado de carteiras.

– Kadu, eu não vou ficar tentando te explicar e muito menos discutir esse assunto pelo telefone. Era só o que me faltava. Você vai vir até aqui ou não?

Filipa termina a ligação bruscamente, como se estivesse fatigada por estarmos discutindo os pormenores de uma receita de bolo. Nesse mesmo instante ouço o sinal anunciando o final do intervalo e sem pestanejar, pois não posso me dar ao luxo de pensar em nada que não seja alcançar a maldita portaria e esclarecer o que há por trás dessa notícia, jogo o celular de volta no bolso da calça e saio em disparada, deixando para trás Matheus, Jorge e o Inspetor do terceiro andar e a passos largos atravesso o corredor até que, por fim, começo a descer as escadas dos três andares do CGAM em meio à confusão de vozes e gargalhadas dos alunos que estão retornando para suas salas de aula, o que me deixa com os nervos a flor da pele, já que parece que estão em uma passeata ou uma romaria, e nenhum deles move um músculo sequer, mesmo diante do intuito e do esforço que faço para que liberem a minha passagem em plena contramão.

Graças a todos os anjos do firmamento, quando consigo alcançar o último lance de escada, já não há mais ninguém na minha frente e então desço de dois em dois os degraus que me restam, cruzando o pátio interno e depois o frontal numa velocidade que até eu mesmo não sabia que poderia atingir. Quando finalmente me aproximo da portaria, a poucos metros das três roletas que delimitam a entrada e a saída do colégio, reconheço Filipa, que está ao telefone e de costas para mim, e daí, de súbito, sou tomado por uma sensação estranha de medo extremo, um aperto na garganta, no peito, ao mesmo tempo que o meu coração acelera, minhas mãos formigam e uma fraqueza se instala nas duas pernas, obrigando a diminuir meus passos até parar, enquanto ajeito a armação dos óculos, que já não consigo mantê-la tão firme sobre o meu rosto em virtude do suor que começa a se fazer presente.

Sou um caos, constato sem culpa ou consternação à medida que volto a fitar Filipa, e por incrível que possa parecer, a distância que agora nos separa é enorme, gigantesca, assim como também as três roletas que delimitam a entrada e saída do CGAM, que se mostram absurdamente inalcançáveis. Sem sombra de dúvida tem algo de errado com minha percepção de profundidade e daí eu balanço a cabeça de um lado para o outro, acabando por inclinar parcialmente o corpo para frente, e ato contínuo apoio as mãos sobre os joelhos semi dobrados e só então percebo que estou respirando com certa dificuldade.

O que está acontecendo comigo? É a pergunta inevitável que toma conta de todo o espaço do meu cérebro, ou quem sabe apenas da área que ainda consegue raciocinar. Gotículas de suor caem sobre as lentes dos óculos, assim como as palavras de Matheus, as malditas palavras de Matheus com sua confissão cretina de que já havia ficado com um carinha… 

Sinto uma mão pousar sobre o meu ombro esquerdo.

Num esforço hercúleo giro o pescoço e a cabeça para o alto e semicerrando os olhos, devido o reflexo da claridade do sol, vislumbro uma silhueta quase disforme, uma imagem embaciada prostrada ao meu lado, até que finalmente, depois de um pouco de esforço, consigo identificar o coordenador Jorge.

– Está tudo bem, Kadu?

Sua voz, um pouco entrecortada, me resgata do estado de torpor momentâneo no qual estava começando a mergulhar e daí, em questão de segundos, sou tomado por uma leve sensação de tontura e então fecho e abro os olhos bem devagar e volto a baixar a cabeça, respirando fundo, engolindo em seco.

– Kadu, se você quiser peço para a sua irmã vir até aqui. Talvez seja melhor…

A voz de Jorge, nesse exato momento, passa a ressoar um tanto distante aos meus ouvidos, mas consigo assimilar suas palavras, o suficiente para balançar a cabeça em negativo; nesse instante uma segunda sombra surge à minha frente, sob meus olhos caídos, e eu demoro um período de tempo, ainda que muito curto, para reconhecer a quem ela pertence: é de Matheus.

Respirando lenta e profundamente, busco pausas inspiratórias e expiratórias enquanto foco em uma rachadura no chão a fim de ajudar meus sentidos a compreenderem que, apesar da sensação de tontura, eu não estou girando. Em seguida flexiono as pernas no intento de me colocar de pé, sem pressa, ao passo que endireito minha postura até conseguir aprumar o corpo.

– Como você está cara?

Volto-me para Matheus assim que escuto sua pergunta, mas não o encaro por muito tempo, tampouco lhe devolvo qualquer resposta, apenas me viro na direção de Jorge e o agradeço pela preocupação e em seguida torno a fixar meu olhar para onde está Filipa, cuja distância que nos separa, deduzo, não ser mais equivalente a do Grand Canyon.

Retomo meus passos. Não tão rápidos como antes. Mas numa velocidade satisfatória até alcançar uma das malditas roletas que nos separa, atravessando-a de maneira enérgica, quase a arrancando do lugar. Com minha repentina aproximação, Filipa se volta de pronto na minha direção quase deixando o celular cair.

-Jesus Cristo, Kadu! Onde você estava? Do outro lado do mundo? Em Nárnia?

Como ela consegue ser sarcástica em um momento desses?

– O que você quis dizer com “pelo jeito a Maria Clara desapareceu”? – questiono um tanto brusco, num misto de incredulidade e impaciência conforme vou passando o dorso da mão esquerda sobre a testa ao mesmo tempo que tento recuperar o que resta do meu fôlego.

-Me poupe Kadu! – Filipa responde, dando de ombros, denotando sua costumeira rabugice à medida que termina de guardar o celular na bolsa, para, então, me fitar – Não pense que estou adorando ficar plantada nessa portaria, aguardando enquanto te catam dentro desse colégio, já que você decidiu não atender minhas ligações, pra servirmos de babá para a sua querida e amada irmã – ela mal termina de despejar suas palavras e se vira, fazendo menção em tomar o rumo da saída.

-Servir de babá? – coloco as mãos na cintura, ainda resfolegante – Do que você está falando?

Filipa olha por sobre os ombros e obviamente percebe que não saí do lugar.

Não lhe resta alternativa senão parar e se voltar, gesto que faz acompanhado das duas mãos jogadas para o alto.

-É isso mesmo? Nós vamos ficar aqui, em pé, parados, com toda essa baderna invadindo os meus ouvidos?

Posso estar sendo precipitado, ou até mesmo leviano, pondero enquanto tiro os óculos do rosto e os levo até a extremidade da camisa para limpá-los rapidamente e em seguida devolvê-los ao lugar de praxe. Mas agora, mirando Filipa com um mínimo de sensatez, ao passo que vou recuperando o centro da minha existência, não encontro qualquer resquício de preocupação nas linhas do seu semblante. Bastasse não conhecê-la como conheço, eu apostaria todas as minhas fichas na certeza de que está fazendo muito barulho por nada. Mesmo mergulhada dentro da sua fogueira de vaidades, apenas suportando a existência de Maria Clara sobre a face da Terra, ela não estaria agindo com tanta indiferença diante de um suposto desaparecimento da própria irmã…

-Pelo amor de Deus, você pode explicar melhor essa história da Maria Clara? Eu falei com ela hoje de manhã, antes de vir para o colégio… – informo ao tempo que apanho o meu telefone no bolso da calça para infelizmente encontrá-lo sem sinal.

-Não tem muito que explicar Kadu. Ninguém consegue falar com a sua irmã. O celular está desligado, simples assim. Agora o senhor pode mover essa sua bunda e os pés do lugar e vir atrás de mim?

– Antes de sair para o colégio, nos nós falamos… – insisto – E a Maria Clara havia recebido uma ligação do Gustavo e desceu até a portaria para conversar com ele. Possivelmente ainda devem estar juntos – confiro a hora no visor do telefone – E isso foi somente há três horas e meia. Pelo amor de Deus, eles vão se casar daqui a quatro dias…

Finalizo usando um tom de voz beirando um murmúrio e com a atenção um tanto dispersa, porém, logo volto a fitar Filipa.

 E só porque você não conseguiu falar com a nossa irmã não significa que ela desapareceu… – não dou o braço a torcer. Tem alguma coisa errada nessa história que não está certa.

– Pro seu governo, foi a nossa mãe que não conseguiu falar com ela – Filipa comunica entre os dentes ao passo em que me fuzila com o olhar – Vou estar no carro. Mas não pense que irei te aguardar pra sempre – ela se volta, pisando forte na direção da saída.

Olho para trás e Matheus e Jorge estão me observando do outro lado das roletas. Deixo os ombros caírem e, a contragosto, dirijo a voz para o até então meu melhor amigo:

-Poderia depois, por favor, levar a minha mochila?

Uma inevitável e incontrolável frieza permeia o meu pedido e não espero qualquer resposta de Matheus, apenas giro nos calcanhares rapidamente e sigo Filipa, que está acabando de atravessar o portão do CGAM.

-Nos mantenha informado Kadu…

Consigo, já do lado de fora do colégio, ouvir Jorge antes de chegar à calçada, onde imediatamente olho para os lados a fim de identificar a direção tomada pela minha insana irmã do meio.

– A dona Marcela, ou você, ao menos tentaram se comunicar com o Gustavo? – lanço minha pergunta antes de alcançar o carro de Filipa estacionado não muito distante da entrada da escola ao mesmo tempo que confiro o meu telefone, que permanece sem sinal.

-Por que eu teria o número do telefone do noivo da sua irmã? Nossa mãe provavelmente deve ter, mas a bateria do celular dela acabou quando ainda estávamos indo para o navio… – Filipa retruca depois de abrir a porta do lado do motorista, praticamente se jogando sobre o estofado do seu Volvo C30 com transmissão automática, como ela faz questão de frisar sempre que tem a oportunidade.

– Você já ligou de volta para casa, pra saber se por acaso a Maria Clara não está lá?

Questiono depois de me sentar, fechando a minha porta logo em seguida a de Filipa. Ela, que está terminando de colocar o cinto de segurança, se vira na minha direção e com os olhos semicerrados, transbordando impaciência, examina meu semblante minuciosamente e, sem nada responder, liga o ar condicionado e se volta para frente, dando a partida.

Que seja!

Decido que não vou me estressar além do limite e daí volto a conferir a tela do meu celular e finalmente o encontro com sinal. Sem titubear ligo para o número de Maria Clara e constato o que já havia sido me adiantado: está incomunicável. Nesse instante me lembro da mensagem que recebi, acusando uma tentativa de ligação de sua parte, isso um pouco antes de me encontrar com Brenda e de pronto busco o arquivo dessa mensagem e não demoro a localizá-lo para ler cada uma das palavras novamente, como se o texto padrão, “tentativa de ligação do número X, pudesse ter mudado ou então pudesse estar guardando alguma mensagem subliminar que eu não consegui enxergar logo de primeira.

Frustrado, saio da tela de armazenamento de recados e salto para a agenda onde começo a procurar com demasiado afã o número do Gustavo, pois Maria Clara há algumas semanas me passara, contando com a possibilidade de que algo urgente pudesse acontecer durante a cerimônia de seu casamento, o que eu duvido. Venhamos e convenhamos que até mesmo um apocalipse zumbi, aquela manifestação de mortos vivos em escala catastrófica, que leva toda sociedade ao colapso, e que nem mesmo as forças militares conseguem controlar ou destruir, apesar de toda tecnologia à disposição, não teria a audácia de atrapalhar o evento planejado e elaborado com sangue, suor e lágrimas por dona Marcela.

Bingo! O telefone de Gustavo também está desligado ou fora da área de cobertura. Não me resta alternativa a não ser devolver o celular para o bolso da calça e me recostar no vidro da janela…

-Pelo jeito hoje é o dia dos celulares desligados ou sem bateria – Filipa comenta, só não sei se para mim ou para ela mesma, pois não desvia o olhar da direção – O da nossa mãe, o da Maria Clara… Até o infeliz do Luciano está incomunicável, você acredita? Curioso um médico ficar sem telefone, não é mesmo?

Arqueio uma das sobrancelhas ao ouvi-la comentar sobre noivo com certa ironia. Quando o assunto é o Luciano nada do que se disser será construtivo ou apaziguador, e pelo jeito as coisas não estão muito legais entre eles. Vide o tal buquê de rosas brancas com pedido de desculpas que Filipa teria lhe enviado hoje de manhã, segundo o que Matheus me disse…

Afundo no assento do banco e aperto os olhos com raiva de mim mesmo. Para quê fui me lembrar desse nome? Meneio a cabeça na tentativa de expulsá-lo para bem longe e daí fragmentos da discussão que eu e Matheus tivemos na sala das carteiras quebradas invadem minha mente e então, aflito, trato de abrir os olhos, me esforçando para expulsar essas lembranças antes que eu fique ainda mais perturbado, furioso, mas não adianta, é mais forte do que eu.

Por que Matheus mentiu para mim? Por que não me contou sobre o maldito acordo antes de fazê-lo? Eu teria decidido o que seria bom ou não. E agora me vem com o papo furado de “qual o problema em querer defender um amigo?”.

Frida Kahlo, aquela artista incrível, cheia de personalidade e ousadia, e que busquei conhecer um pouco mais depois de um trabalho sobre a cultura mexicana, ensinou a enorme diferença entre fidelidade e lealdade, e que tem a ver com qualquer tipo de relação, inclusive com a amizade. Quem é fiel, mas não é leal, acaba traindo, e isso no que diz respeito à traição da alma, e acaba por omitir o que fez por medo de correr riscos. Agora quem é leal, pode até não ser fiel, mas a pessoa ao seu lado será a primeira tomar conhecimento do que houve e sempre terá a seu favor o benefício da escolha.

Como vou encarar todos aqueles trogloditas do colégio agora que eu sei que eles estão se divertindo às minhas custas? Questiono impaciente ao passo que tento encontrar uma melhor posição sobre o banco ao mesmo tempo que procuro me concentrar nas paisagens que desfilam pelo vidro da minha janela enquanto inspiro e expiro, forte, cruzando e descruzando os braços. Na verdade esse bando vem se divertindo às minhas custas há uns três anos. Esse é o tempo que eu venho sendo feito de idiota, concluo ainda mais revoltado.

A figura de Lauro entrando no banheiro do segundo andar e abrindo os dentes feito uma hiena, sustentando um tom de deboche mal disfarçado, me deixa completamente desconfortável e daí meu cérebro começa a disparar imagens similares envolvendo todos os Neandertais.

 

 

 

 

 

 

 

Imagens e situações marchando sucessivamente numa espécie de caleidoscópio onde não consigo distinguir o que de fato é real, como risinhos de escárnio ou olhares de esguelha carregados de desprezo, ou ainda queixos apontados sobre mim, ou os lábios se mexendo, balbuciando secretamente não o meu nome, mas os termos pejorativos veadinho e boiola. E tudo isso, evidente, de maneira velada e às minhas costas.

A muralha que eu havia erguido para mim, com a certeza de que eu estaria vivendo absolutamente seguro, protegido, parece que está ruindo. Aos poucos. Mas como? Ela foi projetada para que isso jamais acontecesse, fosse qual fosse o problema, fosse qual fosse o exército que tentasse se aproximar. Nada iria transpô-la, nem tristeza, nem angústia, nem dor, nada…

Baixo os olhos e encaro o pedaço do tapete do carro que está visível entre os meus tênis.

A propósito, quem foi esse tal carinha que conseguiu dormir com o Matheus? Será que foi um dos Neandertais ou qualquer outro do CGAM? Ou alguém completamente anônimo, caçado pela internet? E o que esse ser humano fez para levá-lo para cama? Por que nada vai me convencer do contrário. Eu vi muito bem a extensão da verdade do que Matheus disse, quando vomitou aquela confissão esfarrapada do “eu já fiquei com um cara”. Não rolou só beijinhos e abraços, com certeza não. Resta saber se Matheus fez o que fez por mera curiosidade ou por que realmente quis, e agora vai fazer parte do grupo de homens que vivem suas vidas duplas com medo de enfrentar a sociedade, ou então vai mandar confeccionar sua carteirinha para entrar no “novo clube” dos “heteroflexíveis” ou “heterocuriosos”.

Meu Deus, e eu me torturando todo esse tempo, tentando encontrar uma maneira de contar, para o até então meu melhor amigo, sobre a minha orientação sexual. Pisando em ovos para me declarar sem ferir sua provável heterossexualidade…

Poupe-me! O que mais falta para eu descobrir?

Ergo os olhos e volto a me ajeitar sobre o estofado do banco.

Será que Matheus transou com um homem mais velho? Espero que tenha usado camisinha, apesar dele dizer que sempre se protege quando se aventura com alguma das suas meninas malvadas, mas vai saber como precisou lidar com a exploração do desejo ao lado de alguém do mesmo sexo, mau caráter, e coberto de uma experiência que ele não possui. Gabriel, mesmo tendo sido um honorável babaca, sempre, sempre batia na mesma tecla: nunca, jamais e em tempo algum se permita manter relações sexuais com outra pessoa sem um preservativo. Por mais que ela possa lhe parecer bela, perfeita. Por mais que ela lhe ofereça o mundo.

Torno a buscar outra posição que me deixe confortável sobre esse banco, que mais parece, agora, um saco de batatas.

Matheus não respondeu à minha pergunta. Não confirmou se sabe sobre minha sexualidade quando lhe indaguei isso face to face. Ele saiu pela tangente. Mas a boneca de cera foi enfática quando me contou os motivos que levaram ao fim do namoro deles. Então Matheus sabe. É claro que sabe. Nesse caso, por que não me poupou de todo esse suplício?

Brenda… Brenda… O pior de tudo é ter descoberto essa “facada” de Matheus através da persona da Brenda. Ela vai carregar esse instante de vitória para o resto da sua vida; um baluarte, um reduto fincado no chão e que será erguido a todo instante quando nos aproximarmos um do outro.

Minha muralha. Minha poderosa muralha. Será que eu nunca estive protegido de fato? Será que essa parede, como aquela gigantesca, feita de pedra e gelo em Games of Thrones, só é, na prática, magnânima e intransponível dentro da minha mente?

– Kadu, atende o meu celular, por favor, – ouço ao longe a voz de Filipa e logo me deparo com o seu braço esticado em minha direção e o telefone berrando – É o número do ateliê onde está nossa mãe. A cada dez minutos ela liga querendo saber se a princesa Maria Clara apareceu…

Hesito por alguns instantes.

-Por que eu tenho que atender? – pergunto, por fim, tentando ignorar completamente o gesto e o pedido de minha irmã.

-Porque você conhece a mãe que tem e se não atender é bem capaz dela se materializar aqui, nesse carro, e só Deus sabe o que pode acontecer… – Filipa joga o telefone em cima de mim -Atende logo esta merda, afinal, é a sua queridinha quem está sumida…

– Isso segundo a sua versão dos fatos… – resmungo, resgatando, muito a contragosto, o celular que caiu em cima do meu colo e antes mesmo de aproximá-lo do ouvido, ouço a voz de dona Marcela retumbando do outro lado.

-Filipa, já encontrou a irresponsável da sua irmã?

-Sou eu, o Kadu, mãe – murmuro mantendo o aparelho a certa distância.   

-Carlos Eduardo? Você não devia estar no colégio? Cadê a Filipa?

-No volante.

-Me deixa falar com ela…

A peculiar autoridade de dona Marcela se faz presente. “Por favor” é uma palavra que não existe no seu vocabulário.

-A mãe quer falar com você – comunico à Filipa, tentando devolver o celular, mas ela resiste e faz um gesto com a mão direita como se quisesse afastar de si alguma coisa terrivelmente contagiosa.

-Mãe, a Filipa está no volante e estamos perto de uma blitz…

-Carlos Eduardo, eu não estou com tempo pra isso – convenientemente sou ignorado – Aliás, eu deduzo que você já saiba que a sua irmã, Maria Clara, sumiu, não é? Já a encontraram?

-Ainda não, mas eu queria entender os motivos que levaram à dedução de que a Maria Clara desapareceu…

-Qual o problema de vocês dois? – sou interrompido, aos berros, sem a menor cerimônia – Estou aqui, nesse ateliê, há quase uma hora esperando aquela irresponsável para maldita prova final do seu vestido de noiva, e ela simplesmente decidiu não aparecer e também não está em casa e desligou o celular, e vocês não conseguem encontrá-la?

Oi? Dona Marcela ou a Filipa, ou ambas, deduziram que a Maria Clara está desaparecida só por que está atrasada para a prova final do vestido de noiva? É isso mesmo?

Os especialistas dizem que ter familiares tóxicos em nosso circulo pessoal pode afetar severamente a nossa qualidade de vida. Pois bem. Filipa e dona Marcela são pessoas que só pensam em si mesmas, manipuladoras e que não hesitam em tentar contra o equilíbrio emocional de qualquer um, inclusive o de seus parentes consanguíneos. Sendo assim, como cortar relações com essa irmã ou com essa mãe que sempre estão exigindo coisas, ou nos atropelando, ou então nos colocando em situações que acabam por nos ferir? E não vou nem citar o doutor Carlos Eduardo pelos motivos óbvios.

Sei se estou sendo ingrato ao reconhecer isso e dar nome aos bois, contudo é a mais pura realidade. Vide agora, com essa tempestade num copo d’água que fizeram em relação ao atraso da Maria Clara… Sabia que tinha algo de podre no reino do Dinamarca, só não sei por que ainda me permito ser surpreendido com essas ações descabidas, descontroladas, exageradas e inconsequentes dessas duas.

Conto até dez antes que eu tenha uma síncope, em seguida volto a falar com dona Marcela, convencendo-a (quase oferecendo minha alma como pagamento) que logo retornarei com alguma notícia diferente da que temos até agora. Ela, claro, cuspindo cobras e lagartos, praticamente jura, nas entrelinhas do seu discurso disparado a decibéis mais que nocivos ao ouvido humano, que irá nos deserdar, a mim e a Filipa, caso a Maria Clara não apareça para a prova do famigerado vestido, e como é de se esperar, finaliza a ligação sem qualquer aviso prévio, pouco se importando se tenho algo mais para dizer.

Enquanto sinto meu corpo inteiro esquentar, meus músculos ficarem tensos e minha respiração começar a entrar num ritmo um tanto desgovernado, baixo o celular até apoiá-lo sobre minha perna esquerda, mas sem retirá-lo da mão, ao mesmo tempo que me recuso prontamente a encarar Filipa, porque se eu o fizer, não responderei por mim. Preciso ser capaz de me controlar, apesar das circunstâncias, e encontrar, mesmo sendo humanamente impossível, alguma maneira  de resolver essa questão sem apelar para a agressividade 

Fecho os olhos, aperto os dentes e respiro fundo colocando minha mão direita na altura do diafragma… Eu consigo dominar minhas emoções, sei que consigo, ainda que esteja odiando minha irmã do meio e querendo bater nela. Sei que sou uma pessoa civilizada, não um aborígene…

Expiro.

Não vou gritar, pois se fizer isso vou perder a razão, aliás, o pouco da razão que ainda me resta, e definitivamente não quero agir como um louco, não com Filipa. Não vou lhe dar esse gostinho.

Inspiro.

Carma. Vou encarar todo esse pandemônio como um carma e buscar a serenidade para resgatar os meus débitos com essa família da melhor maneira possível.

Expiro, dessa vez profundamente, e então retiro a destra de cima do diafragma, abro os olhos, descerro os dentes e me viro por completo para a janela, respirando, agora, com calma e de maneira pausada enquanto observo o urbanismo moderno da Barra da Tijuca marchando através do vidro com suas torres residenciais e comerciais, seus supermercados, shoppings e os condomínios que se espalham como erva daninha. Qual a razão de eu ter saído da cama hoje? Parece que estou vivendo o último capítulo de um romance onde todos os segredos são revelados a toque de caixa e todas as ações e reações possíveis e imagináveis acontecem com os personagens, pouco importando se haverá tempo para que toda a parafernália possa ser assimilada ou sequer considerada verossímil.

– O que ela disse? – a voz esganiçada de Filipa, atravessando meus ouvidos, obriga-me a suspender o estado de autocontrole e meditação.

Inspiro…

Expiro…

-Qual o seu problema? – me volto num movimento quase robótico e a enfrento, por fim. Meus olhos, se pudessem, estariam disparando rajadas ópticas, como o Ciclope, dos X-Man – Você me tira do colégio, me assusta com a notícia de que a Maria Clara supostamente desapareceu, e tudo isso por que ela está atrasada para a prova final do vestido de noiva?

-Não foi ideia minha essa busca alucinada pela sua irmãzinha – Filipa dá de ombros sem desviar a atenção do volante – Mas já que a nossa mãe decidiu me dar essa missão insana, nada mais justo que eu a dívida com você, afinal…

-Cala a boca, Filipa – disparo, jogando o celular sobre suas pernas e logo em seguida apanhando o meu, no bolso da calça, para mais uma tentativa de contato com Maria Clara e por mais uma vez sem sucesso – Acho melhor irmos pra casa… – sugiro num tom de voz inabalável ao passo que coloco o telefone no meu colo e me viro novamente na direção da janela para continuar a ver o desfile de prédios retilíneos e quase padronizados com suas “cortinas de vidro” – Não tem cabimento ficar revirando a Barra da Tijuca inteira, e a propósito, sem qualquer critério, atrás de uma mulher adulta que está prestes a se casar… – concluo com certo desdém

– Sua irmãzinha querida deve estar no motel com o noivo, isso sim – Filipa insinua.

– Então mais uma razão para voltarmos para casa, não é mesmo?

Retruco, cruzando os braços e me afundando sobre o banco do carro sem desviar minha atenção da janela à medida que um longo silêncio começa a reinar dentro do Volvo C30, graças a todos os anjos do céu.

– Para onde estamos indo? – questiono logo que percebo que não tomamos o rumo para o nosso condomínio – Achei que estaríamos a caminho de casa – deduzo enquanto me ajeito sobre o banco e arrumo os óculos sobre o rosto.

-Relaxa Kadu. A Sônia ficou de me ligar quando a Maria Clara chegasse ao apartamento, até lá eu preciso resolver uns problemas.

Filipa informa logo a seguir, não demorando a parar o carro em frente à clínica de endocrinologia do seu futuro sogro, um sobrado, que apesar da reforma modernizada sobre a construção original, preserva em sua fachada pontos chaves de uma arquitetura antiga.

-Filipa… – busco mais uma vez me controlar para não perder o pouco que resta da minha paciência – Eu não vou mais acreditar em nenhuma palavra que você disser, e a propósito, o que estamos fazendo aqui na clínica onde o seu noivo trabalha? Acredito que você não tenha uma consulta marcada…

Ela nada responde. Desliga o motor, o ar condicionado, estica o braço para trás e sem demora o traz de volta com a bolsa Giorgio Armani de couro vinho, que deposita sobre o colo e, ato contínuo, tira o cinto de segurança para, finalmente, me enfrentar.

-Vem comigo.

– Vou ficar no carro – cruzo os braços e mantenho o cenho cerrado – Ah, e me dá um chiclete – peço sem mudar uma linha sequer do meu semblante.

-Deixa de ser infantil – ela abre a bolsa e depois de alguns minutos um chiclete surge entre seus dedos, indicador e polegar, da mão direita – Se eu tenho que brincar de polícia e ladrão atrás da Maria Clara, nada mais justo você me acompanhar aonde preciso ir – Filipa lança a goma de mascar em cima de mim ao mesmo tempo que tira o meu cinto de segurança – Agora me segue.

Ela resgata o celular de cima de uma de suas pernas e o guarda, com um gesto um tanto violento, dentro da sua Giorgio Armani, e em seguida faz menção em abrir a porta do carro, mas desiste diante da minha resistência e da minha teimosia ilustradas magistralmente com o movimento do meu maxilar, indo e vindo, enquanto masco o chiclete.

-Meu Deus, Kadu, como você é chato! Garanto que se fosse a Maria Clara você não iria perguntar nada, saltaria desse carro de olhos vendados…

– Vitimismo e complexo de culpa não vão funcionar comigo – a interrompo de maneira severa a fim de reforçar a minha decisão.

O olhar de ameaça que Filipa desfere quase atravessa minha alma, e caso eu não a conhecesse tão bem, me sentiria acuado.

– Kadu, por favor…

A expressão usada para mostrar delicadeza quando se faz um pedido nunca soou tão forçada como nesse exato momento, sendo pronunciada por Filipa. Ainda mais em contraste com seu semblante intimidador. Nem a Brenda conseguiu atingir tamanha performance.

– Será que você poderia me acompanhar? Nunca te peço nada…

Olho para frente, assumindo uma postura próxima do imperturbável, mas depois de alguns segundos, a consciência, ou provavelmente o sangue que corre em nossas veias fala mais alto, e então me volto na sua direção.

-Para que? – pergunto entre os dentes – Você praticamente me sequestrou e agora quer que eu a ajude a por em prática algum plano insano, que, ao que tudo indica, e ouso apostar a minha coleção autografada do Harry Potter… – descruzo os braços e aponto para a clínica por cima dos ombros de Filipa – Tem a ver com o seu noivo – cruzo os braços mais uma vez, impetuoso, e volto a olhar para frente – Então, se você está achando que eu vou ser o seu fiel escudeiro, desista. Não tenho a menor vocação para Sancho Pança, apesar de você delirar e viver num mundo de sonhos como Don Quixote.

Um silêncio sepulcral seguido da respiração pesada de Filipa é o que prevalece dentro do carro. De soslaio entrevejo que as articulações dos dedos de suas mãos estão vermelhas, provavelmente devido à força descomunal que está fazendo para apertar o volante, quase estrangulando o pobre coitado.

-Ok. Não consigo falar com o Luciano desde ontem…

Volto a fitá-la e a encontro com a cabeça apoiada sobre o volante. Provavelmente deve estar me odiando por fazê-la se submeter a uma barganha e ainda mais desse quilate.

– Hoje bem cedo mandei que entregassem um buquê de rosas brancas no apartamento dele… – Filipa prossegue cabisbaixa e eu quase não ouço sua voz – Com um bilhete de desculpas por tudo o que eu lhe disse quando soube da história da ordinária que se jogou na frente do seu carro…

Nesse instante Filipa solta as mãos do volante e num movimento contínuo abre e fecha os dedos no intuito de fazer o sangue circular entre suas juntas e de imediato ergue o rosto; deparo-me, então, com um par de olhos semicerrados e um semblante ainda guardando um resquício intimidador mesclado a uma nada sutil camada de orgulho ferido. Nem em um milhão de anos eu perderia essa extraordinária chance de vê-la descendo do seu pedestal.

– E o cretino… – Filipa continua e agora pouco se importando com a irritação desvelada no seu tom de voz – Até agora não se dignou a me responder e o seu celular está desligado e na clínica, nas vezes que eu liguei, apenas se limitam a informar que ele está em serviço externo. Eu sou a noiva dele. Isso não vale de nada?

Então Matheus (o Judas) realmente estava certo quando me disse que o tal buque não podia ter sido enviado por outra pessoa se não a Filipa…

Minha irmã endireita sua postura e antes de assumir a habitual soberba sobre cada linha de sua fisionomia, me deixa (mesmo que involuntariamente) divisar no seu olhar uma angústia conflitante. Em definitivo não sei como reagir ante essa visão. Não sei se devo sentir pena, solidariedade ou raiva por constatar ao vivo e a cores que alguém depende de outro ser humano para tentar ser feliz, para tomar suas próprias decisões.

Ok. Não estou surpreso. Continuo achando que o sentimento que Filipa tem pelo noivo beira a patologia, e não tem como ser diferente, mas testemunhar essa escravidão, esse sofrimento, a sua dependência emocional, a sua necessidade de ser amada, a sua alma desnudada… Meu Deus, falo e repito, eu não quero ser assim, porém é o que venho sendo desde o instante em que me descobri apaixonado pelo Matheus e agora a pouco, lá na sala das carteiras quebradas, eu extravasei toda a minha frustração, meu despeito, meu ódio…

O som forte de uma porta de carro sendo batida me resgata dessas impiedosas ponderações. Filipa está do lado de fora, já caminhando a passos largos na direção da entrada da clínica e eu, mesmo a contragosto, conto até dez, rápido, inspirando e expirando a fim de de reunir forças para seguir essa louca enquanto jogo o pescoço para trás e vislumbro o teto do Volvo C30 e reflito o quão peculiar é a prole que dona Marcela e o do doutor Carlos Eduardo espalhou sobre a Terra…

Bem…É o que tem pra essa encarnação.

Apanho o meu celular entre as pernas e salto do carro enquanto deixo uma grande quantidade de ar fugir do peito para logo depois inalá-lo, sôfrego. O sol está bastante quente apesar de ainda ser somente onze horas de uma manhã de outono, constato após conferir as horas no visor do aparelho antes de guardá-lo no bolso da calça.

– Me espera que vou com você, garota.

Grito já correndo na direção de Filipa, que a esta altura acabou de atravessar o arco que envolve a entrada principal da clínica, pisando forte, parecendo um carrasco prestes a cumprir uma sentença sobre um condenado miserável. Na verdade o noivo dela não deixa de ser esse pobre condenado miserável. Como já disse antes, um dia ainda eu tomo coragem e peço ao Luciano para me enumerar um ou dois motivos que seja para que eu possa entender as razões que o faz aturar minha irmã. Essa cruz não deve ser somente o resultado de um resgate cármico.

– Você pode me dizer ao menos qual vai ser minha participação nesse vaudeville? – questiono, apoiando as duas mãos sobre os lados da cintura tão logo consigo diminuir a distância que nos separa e daí Filipa estaca e por alguns instantes não move um músculo sequer até virar a cabeça e depois o corpo na minha direção, me encarando com um olhar inclemente à medida que contrai os lábios e mexe nos cabelos.

– Não precisa vir. Detesto ficar devendo favor…

Sinto-me exausto e então olho para o chão e me pergunto se realmente preciso estar aqui, passando por isso, em pé, sob esse sol, ao invés de dar meio volta e me enfiar no maldito Volvo C30 ou chamar um Uber. Por fim retiro as mãos da cintura e levanto a cabeça. Filipa permanece do mesmo jeito, com o corpo enrijecido dentro do seu macacão azul marinho justo, montada sobre um scarpin vermelho de vinil combinando com a tonalidade do batom, a bolsa à tiracolo Giorgio Armani de couro vinho e os cabelos louros penteados para trás. Ela está prestes a tomar o caminho que resta para alcançar a porta da clínica, mas decide manter a face fixada sobre mim, num tom de desvelado desafio.

– Por acaso você e a dona Marcela chegaram a se perguntar, antes de criarem todo esse alarde entorno da Maria Clara, sobre a possibilidade de ela ter escolhido ficar sozinha por um tempo, refletindo sobre essa história de casamento?… – sugiro assumindo ares de conciliador – Seria mais do que natural, afinal de contas, daqui a quatro dias a vida dela vai mudar…

-Um pouco tarde pra isso, não acha?

Filipa não deixa de ter razão. Mas quem conhece Maria Clara vai entender que essa sua súbita reação (se realmente eu estiver certo) não é nem um pouco incoerente. Ela está se agarrando ao que resta da sua essência… Meu Deus será que a Maria Clara e o Gustavo fugiram? Questiono entre sussurros, ansioso e me segurando para não cair na gargalhada.

Filipa cruza a porta da clínica sem titubear e eu, claro, não tenho alternativa a não ser segui-la e então nos deparamos com uma sala de espera completamente tomada e, de pronto, como não podia ser diferente, as pessoas desviam os olhares de suas revistas, celulares ou da TV que está ligada, sem som, para nos encarar.

Todas de uma vez.

Em sincronia.

Minha cara irmã permanece parada à porta por alguns segundos. Não sei se para causar um impacto ainda maior sobre a sua chegada, ou se está apenas e tão somente aparando as garras antes de colocar em prática seja lá o que for que veio fazer nesse lugar.

Decerto essa recepção/sala de espera passou por uma boa reforma desde a última vez em que estive aqui. Ok. Isso já deve ter uns dois anos, quando acompanhei Matheus que veio desejar feliz aniversário ao Luciano, só não lembro o motivo dele não o ter felicitado em casa. Ficou bem legal esse ambiente climatizado com ilhas de cadeiras e poltronas evitando aglomerações e principalmente sem poluição visual. Nada daquele excesso de objetos, flores, quadros e plantas, assim como ficou show de bola as cores claras pintadas nas paredes e teto, as poltronas com tons escuros e algumas estampas coloridas, contrastando com o resto do ambiente. Ah! E a senha do Wi-Fi à mostra. Esse último item, aliás, é um dos grandes diferenciais.

– Não saia daqui que eu já volto.

Mal termino de ouvir a ordem dada por Filipa e já a visualizo tomando a direção do balcão onde funciona a recepção, caminhando a passos largos e firmes, com as costas eretas e a cabeça empinada, denotando, sem sombra de dúvida, uma determinação implacável. Em suma, e para variar, cada gesto e cada movimento muito semelhantes ao de dona Marcela… Sinto cheiro de confusão no ar.

Após alcançar o balcão, Filipa, sem deixar de lado um instante sequer da sua rígida postura, se dirige à única funcionária que está à vista, pouco se importando se a pobre está ocupada, atendendo uma pessoa, um provável paciente.

-Posso falar com o doutor Luciano?

Minha irmã despeja a sua pergunta pontuada de autoridade, que acaba por ecoar por toda a sala, até então acobertada por um silêncio atroz, enquanto percebo a funcionária, uma jovem, por sinal, bastante bonita, surpreendendo-se diante da manifestação intrusiva, e por que não, arrogante por parte de Filipa. Mas com um sorriso simpático, pede-lhe um instante até que ela termine o atendimento que está realizando.

-Você sabe com quem está falando, minha querida?

O tom de voz de Filipa se altera e inevitavelmente ela se torna, mais uma vez, o centro das atenções. Eu balanço cabeça, incrédulo, apesar dos pesares. 

-Você deve ser alguma recém-contratada não é mesmo, pois nunca te vi por aqui antes? Por isso vou desculpar sua ignorância. Sou a dona Filipa, noiva do doutor Luciano – os títulos de dona e doutor são pronunciados de maneira muito, muito afetada.

Que bicho mordeu Filipa, pelo amor de Deus? Ela precisa se controlar. A jovem atrás do balcão está completamente desconcertada. Seu rosto parece que está pegando fogo e ela vai enfartar. Faço menção em intervir, já que ninguém dentro dessa sala de espera move um músculo sequer,  nem mesmo a pessoa que está sendo atendida no balcão. Todos apenas assistem a esse espetáculo sem noção proporcionado pela minha irmã do meio, mas antes que eu tente qualquer coisa, outra funcionária surge, e parece conhecer Filipa, salvando a pátria, graças aos céus…

Meu celular vibra, e no visor, o número de Matheus. Respiro fundo e deixo meus ombros caírem. Mesmo com todos os motivos do mundo para estar aborrecido com ele, luto para não atender essa ligação. Preciso ser firme e então conto até dez e daí recuso sua chamada e logo depois lhe envio uma mensagem pelo Whatsapp, em letras garrafais, evidente:

 

DEIXE MINHA MOCHILA NA PORTARIA DO PRÉDIO. POR FAVOR!

 

Não recebo nenhuma resposta. Melhor assim. O que os olhos não veem o coração não sente.

-E que serviço é esse externo que ele foi fazer? E por que eu não posso ter maiores detalhes? – Filipa já está aos berros no balcão da clínica – Eu sou a noiva dele – pelo jeito a intervenção da tal funcionária não foi tão eficaz.

Definitivamente não vou ficar aqui, impassível, enquanto a sem noção age como se fosse a rainha de Sabá. Aproximo-me e tento convencê-la a irmos embora, já que Luciano não está, mas Filipa se recusa e com um soco no balcão avisa que vai esperá-lo o tempo que for necessário. Nesse instante o seu telefone toca dentro da bolsa e depois de retirá-lo com um gesto beirando o desespero, ela o examina por um tempo, rápido o suficiente para não demorar a empurrá-lo para mim.

Não precisa ser nenhum gênio para saber que o número do Luciano não está no visor do aparelho. Na verdade é a Sônia informando que Maria Clara chegou ao apartamento com uma cara de arrasada, num total e irremediável silêncio, se recusando a aceitar qualquer tipo de auxílio e se trancando no quarto sem maiores explicações. Tento obter mais notícias, porém, sem sucesso, o que me deixa super, hiper, mega preocupado e então desligo o telefone e me dirijo para Filipa, que não se abala com a informação. Está ocupada por demais em demarcar o território que rodeia o mundo do seu noivo.

Entre mortos e feridos alguém precisa raciocinar. Graças aos anjos Maria Clara está em casa, e é obvio que vou saber o que aconteceu. Mas antes preciso ligar para dona Marcela. Uma voz feminina, alguma funcionária do ateliê, atende ao telefone e de maneira cordial avisa que irá chamá-la. Não demora muito para que minha mãe surja e depois que a comunico sobre o paradeiro de Maria Clara, ouço a cavalgada do Apocalipse acontecendo do outro lado da linha. Dona Marcela grita para que alguém chame um táxi e logo em seguida despeja sobre mim todos os impropérios possíveis e imagináveis, como se eu fosse o responsável pelas ações da minha irmã, além de disparar a ordem incisiva para que eu corra para casa e não a deixe sair de lá, terminando o seu espetáculo batendo o telefone na minha cara, evidentemente. 

Chega. Esse circo acaba aqui.

A duras penas e num esforço de persuasão exaustivo, consigo convencer Filipa a sair da clínica para retornarmos ao nosso apartamento. É claro que durante o trajeto de volta para o Volvo C30 ela cospe cobras, lagartos e maribondos. Não digo nada e nem alimento essa fogueira de vaidades e insanidade que ela insiste em manter, até porque meu foco neste momento é a Maria Clara.

Não demoramos a visualizar o seu carro e enquanto caminhamos para ele, um Onix Active, guardando uma pequena distância, cruza a nossa frente e Filipa o segue com um olhar perscrutador, sem perdê-lo de vista, até o instante em que o automóvel diminui sua marcha para estacionar a poucos metros do local de onde estamos parados.

– Os deuses estão ao meu favor. Eu sabia.

Ouço a observação de Filipa. Sua voz parece entrecortada, sôfrega e ao me virar para ela e enxergar em sua fisionomia uma expressão soturna e com os olhos semicerrados, como se fossem os olhos de uma fera preparando seu abate, minha ficha finalmente cai e eu então balanço a cabeça torcendo para que esse carro que atravessou o nosso caminho e acabou de estacionar, não pertença a quem estou pensando que pertence.

Merda.

De modo lamentável, a Lei De Murphy se faz presente: se alguma coisa puder dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira possível.

Não tenho tempo sequer de respirar. Filipa dispara ao ver Luciano descer de seu Onix Active enquanto aos berros faz questão de anunciar sua presença, como fosse necessário, ao tempo que sua bolsa Giorgio Armani fica pelo caminho.

Como ela consegue correr com um par de scarpin?

Não me resta, de novo, mais nada na vida a não ser ir atrás dessa maluca, que já se jogou de corpo e alma sobre o noivo.

Depois de resgatar, num átomo de segundo, o “saco de grife” esquecido pelo chão e colocá-lo a tiracolo sobre o meu ombro direito, me apresso para alcançar a desvairada e com certa dificuldade consigo tirá-la de cima de Luciano, que até então vinha tão somente buscando se defender dos socos e pontapés arremessados contra ele, assim como Matheus reagiu às minhas investidas na sala de carteiras quebradas.

-Me solta, Kadu – ela grita e volta a gritar num total descontrole, agitando pernas e braços pelo ar – Me deixa em paz!

Dentro de uma calma aparente (e absurda), Luciano tenta dar um jeito na camisa que Filipa quase lhe arrancou do corpo e enquanto se recompõe, promove um rápido discurso mesclando ameaça e autoridade, num tom beirando o paternal, e que por incrível que possa parecer, vai minando a determinação exacerbada de Filipa, que aos poucos, e graças a Deus, abandona sua reação impetuosa até que, por fim, eu me convenço de que posso soltá-la ao passo que devolvo meus óculos para o devido lugar.

– O que foi dessa vez, Filipa? – Luciano a questiona sem se mover. Seus olhos demonstram uma compassividade sem tamanho.

– Eu estou desde cedo, muito, muito cedo tentando falar com você e não consigo e essas incompetentes que trabalham na clínica me tratam como seu eu fosse um mero paciente… Por acaso elas não têm ciência de que eu sou sua noiva?

– Filipa, este não é lugar apropriado para termos uma conversa como essa. Na verdade qualquer outro tipo de conversa, portanto, mais tarde, lá no condomínio, te coloco a par de tudo. Porém, se for para te deixar mais calma, eu te adianto que estive ocupado com os serviços voluntários que eu presto de vez em quando, e você sabe disso… 

– E as rosas brancas que eu te enviei? – ela o interrompe sem qualquer cerimônia, desprezando todas as suas sugestões e satisfações – O meu pedido de desculpas? Por que não me retornou?

Luciano tenta responder, chegando a esboçar algumas palavras, porém Filipa é mais rápida.

-Eu tentei falar com você pelo celular, mas só dava desligado e na clínica não me disseram aonde estava…

-Determinação minha!

Filipa não consegue esconder (e nem tenta) a indignação que toma conta do seu semblante quando o noivo termina de despejar sua informação. Vamos combinar que ela já é bem crescidinha para saber que quando perguntamos o que bem entendemos, ouvimos o que não queremos. Enfim, não sei de que maneira terminará essa conversa e tampouco se ela vai conseguir levar tanto Filipa quanto Luciano a algum lugar. Coloco a Giorgio Armani sobre o capô do Onix e despeço-me dos dois nubentes e logo em seguida chamo um Uber, que não demora a chegar, me levando rumo ao condomínio. Não tenho mais tempo a perder. Preciso urgentemente saber o que houve com Maria Clara.

Durante o trajeto, teso sobre o estofado do banco do carro, não me surpreendo quando a imagem do ser humano chamado Matheus começa, novamente, a querer povoar meus pensamentos, mas decido que não irei lhe dar esse cartaz e luto com todas as minhas forças numa batalha sem fim contra a minha própria mente.

Talvez eu esteja criando desculpas para evitar um mal estar, evitar o que mais cedo ou mais tarde terei de resolver: a questão que não terminou na sala das carteiras quebradas. Mas é o que tem para o momento e é o que vai me deixar um tanto tranquilo por agora. Não posso permitir que ela, minha mente, afete minha percepção, minha interpretação da realidade. Está decidido: depois de hoje é possível que eu e Matheus, que a nossa amizade nunca mais seja a mesma, ou até mesmo eu nunca mais volte a falar com ele…

Nem bem o Uber estaciona, desço do carro como um furacão, atravessando todo o condomínio a passos largos, mal cumprimentando as pessoas que passam por mim.

Já tive minha cota de Madre Tereza de Calcutá por hoje.

Tão logo vou me aproximando da porta de entrada do meu bloco não acredito no que vejo e chego a semicerrar os olhos e protegê-los da luz solar com a palma da mão esquerda para ter certeza que realmente estou enxergando Matheus parado, a alguns centímetros de distância da porta automática de vidro temperado com fundo verde, com os braços cruzados e as duas mochilas penduradas, provavelmente a minha e a dele, cada uma sobre um de seus ombros.

Estaco e então retiro o celular do bolso e confiro o relógio no visor. O que Matheus está fazendo aqui? Até onde eu sei o horário das aulas ainda não terminou.

One Million Bullets – Sia

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