CENTRO DO MEU MUNDO

Ergo a cabeça, e depois de afastar os olhos do visor do telefone, projetando-os de imediato na direção de Matheus, que mais parece uma estátua de um Faraó do antigo Egito, com os braços cruzados e a postura rígida, começo a considerar a possibilidade de dar meia volta e chamar um Uber e me enfiar no primeiro Shopping que me der na telha, misturando-me à multidão, aproveitando o privilégio do anonimato para tentar colocar em fogo brando o caldeirão de pensamentos e conjecturas que está prestes a transbordar dentro da minha mente.

Uma violenta descarga de adrenalina sobe até meu cérebro ao passo que guardo de volta o celular no bolso da calça para, em seguida, cravar o olhar novamente na direção de Matheus, como se eu fosse uma presa que se recusa a fugir ou se recusa a lutar sob a contemplação hipnótica de uma serpente prestes a dar o bote. Todavia, rejeito-me a seguir como um cordeirinho para o morte certa, afinal, não vou permitir que o medo obstrua o meu caminho. Por mais horrendo e assustador que possa ser, necessito e devo enfrentá-lo de uma forma ou de outra. Maria Clara está lá em cima, me aguardando. Ela precisa de mim.

Enquanto coloco uma, duas, três vezes seguidas o dedão da mão direita no meio da testa para empurrar os meus óculos até conseguir deixá-lo na posição mais conveniente, decido traçar uma reta tendo como objetivos a porta automática e depois o hall, ao mesmo tempo que também decido que irei atingi-la sem dar atenção ao que acontece no meu entorno, rejeitando por completo toda e qualquer interferência. O segredo do sucesso para alcançar metas e objetivos é a capacidade de ser específico, saber o quão longe precisamos ir e nos concentrar, mantendo o autocontrole e principalmente a força de vontade.

Sim. Matheus será apenas uma pedra no caminho, um mero obstáculo que vou transpor sem grandes dificuldades. Irei passar ao seu lado e simplesmente ignorá-lo. Um vaso de planta terá mais visibilidade, mais valor do que essa pessoa que até o início dessa manhã eu acreditava ser meu amigo e que agora, com a sua presença, só faz com que eu me sinta um perfeito idiota carregado de questionamentos insolúveis. Em uma escala de zero a dez de estupidez e redundância, considerando todas as possibilidades de erros sistêmicos e aleatórios, fui graduado com esmero.

Meus braços tremem de raiva e dou o primeiro passo rumo ao destino traçado, rumo ao enfrentamento da serpente, do dragão ou de qualquer outro monstro que ouse alimentar o meu receio, as minhas frustrações, os meus traumas. O deus do medo, filho de Ares e Afrodite, irmão de Terror, segundo a mitologia, não pode vencer a racionalidade do meu cérebro, não pode triunfar sobre Lissa, a deusa da ira, do furor.

Meu crânio está transbordando de cólera e a cada passo que dou, ainda que curtos, sobre essas pedras miracema, diminuindo a distância até a porta de vidro temperado, busco empertigar os ombros, estufar os peitos e empinar o nariz, pois quero me sentir e parecer um gigante ao cruzar com a infeliz figura de Matheus. Preciso que ele enxergue minha altivez, meu desprezo, minha vaidade ferida. Que sinta o quão palpável é o abismo que acabei de construir entre nós dois e constate que a nossa amizade, graças à sua insolência e pretensão, tomou um destino do qual não se tem mais volta.

Cerro os punhos com tanta força que chego a sentir uma dor imensa ao passo que vou sucumbindo ao calor do sol que está me deixando ainda mais impaciente. De súbito experimento uma invasão a principio soturna e que não demora a se tornar avassaladora dentro da minha mente, proporcionada pela imagem de Gabriel, surgindo como um semideus, com sua barbinha por fazer, sua postura confiante, seu olhar… Apenas a toalha que envolve sua cintura não permite que sua nudez se torne exposta por completo.

Ele está empurrando-me com delicadeza sobre a cama do apê que alugara para os nossos encontros, entretanto, em questão de segundos, percebo que não sou mais eu quem está sendo empurrado, mas sim Matheus e então meneio a cabeça um tanto confuso ao passo que Gabriel, agora, está de joelhos sobre mim, ou será sobre o Matheus, e está tirando minha roupa, ou a roupa de Matheus, beijando-me o pescoço, não, não, beijando, tocando o pescoço e a pele de Matheus até chegar, sôfrego, aos meus lábios, aos lábios de Matheus…

Um bloqueio. Estou sentindo um bloqueio no peito. Calma Kadu. Calma. Minha respiração está ficando desregulada, rápida, curta, enquanto meu coração acelera e minha boca fica seca e pessoas continuam atravessando o meu caminho, teimando em me cumprimentar. Algumas eu respondo de modo lacônico, sabe-se lá por que, passando por cima do meu compromisso de ser o mais inacessível possível à medida que sigo adiante, sobre as pedras miracema ladeadas pelo jardim composto de azaleia, buxinho e grama esmeralda. Entretanto, num piscar de olhos, como num passe de mágica, percebo que o caminho que resta até que eu alcance a porta automática de entrada do hall (possivelmente minha percepção de profundidade está falhando mais uma vez) parece ter se tornado maior, o que faz com que me sinta ainda mais incomodado, como se já não bastasse esse calor infernal sobre a minha cabeça…

Meu Deus! Eu não posso morrer aqui, agora. Não posso. Não desse jeito.

Minha tela mental continua projetando o seu teatro de horrores. Digladiando com minha racionalidade. Ousando sugerir que o controle das minhas paixões, das minhas emoções, escoou como areia fina por entre os meus dedos. Sei que estou andando, indo de encontro a Matheus e à porta de vidro temperado, todavia, também me vejo em pé, no gramado que fica no lado direito do CGAM, onde, discretamente, estou guardando uma considerável distância do local em que ele, o meu melhor amigo, se encontra aos beijos e abraços com um completo estranho, deixando-se levar pelas coisas belas e sujas do sexo, assim como eu também me deixei levar naqueles três encontros anônimos com completos desconhecidos.

Desde quando? Desde quando Matheus sabe que sou gay? Desde o pacto ridículo com os imbecis do colégio ou desde sempre? 

Descerro os punhos. Calma Kadu, pelo amor de Deus, Matheus não terá mais esse poder. Ele que durma com quem quiser. Ele que finja ser algo que não é. Isso não deve te incomodar. Não deve te atingir.

Uma reta. Vou traçar uma reta…

Fecho e abro os olhos e balanço a cabeça ao passo que busco recuperar o ritmo da minha respiração, inalando o ar, lentamente, apenas pelo nariz, deixando-o entrar no meu corpo enquanto conto, sem pressa, até cinco, segurando-o nos pulmões durante os mesmos cinco segundos para então liberá-lo. Repito esse exercício por uma, duas, três vezes…

Se Matheus (o Judas) quiser ir para o Japão, para o quinto dos infernos, que vá, pois assim ficará mais fácil bani-lo por completo de dentro de “você”, Kadu. E daqui a alguns meses, quando ele voltar, se voltar, será, a princípio, nada mais que uma mancha, e não passará disso. E daqui a alguns anos quando você olhar para trás, esse Matheus será tão somente um retrato pendurado na parede das suas lembranças, que talvez sirva como referência negativa para os demais relacionamentos que se propuser a ter, e com muita sorte, quem sabe, antes disso a poeira do tempo o cubra por completo e o relegue ao limbo do seu esquecimento.

Fecho e abro os olhos e balanço a cabeça bem devagar, mais uma vez, e continuo a seguir o meu trajeto, ainda que num esforço tamanho, enquanto prossigo inspirando e expirando lenta e profundamente a fim de arremessar para bem distante a sensação de medo, expectativa e dúvida que acercaram o meu coração desde o encontro com a infame da “Bellatrix Lestrange”.

Minha garganta está embargando, mas não vou esmorecer.

Minha percepção de profundidade, ao que tudo indica, voltou ao normal, pois me parece que agora falta pouco, bem pouco para atravessar a frente de Matheus. Se não fosse por Maria Clara… Se não fosse por Maria Clara…

Viro para o lado, rápido, e cuspo o chiclete que cai sobre uma das azaleias do jardim e de pronto volto a cabeça para frente e qual não é minha surpresa ao ver Matheus vindo na minha direção, sem pressa, com os braços descruzados, equilibrando as duas mochilas nos ombros…

Mas como assim?

Por que ele não permaneceu parado, esperando?

Matheus tinha que ter ficado em pé, como um poste, para me ver atravessando o seu caminho como um monarca absolutista, que não teme nada e nem ninguém, e que com um estalar de dedos leva qualquer um à forca.

Respira. Respira Kadu. Você consegue. Matheus é o vilão nessa história toda. Matheus agiu de maneira infame. Matheus traiu sua confiança. Matheus o subjugou diante de todos aqueles Neandertais…

Meu corpo implora para que eu engula algo líquido. Um copo com água. Um comprimido. Um ansiolítico pelo amor de Deus.

“Tudo nessa vida tem um preço, Kadu”. As palavras de Gabriel, secas, sinceras, acompanhadas de um sorriso cínico no canto dos lábios, o mesmo sorriso descarado que manteve durante os seis meses em que fomos amantes, parecem ser pronunciadas, dessa vez, por Matheus, que está sentado sobre um trono imenso, cravado de ouro, diamantes, esmeraldas e rubis, se autoproclamando um lobo com suas garras expostas, destilando ameaça e poder ao passo que grita aos sete ventos que o veadinho (e isso sem tirar os olhos de cima de mim) está sob sua proteção.

O limite entre realidade e fantasia fica impreciso quando o ser humano está sob estresse, exausto. Li isso em alguns sites sobre neurociência, e se eu por acaso me demorar um pouco mais nessa estrada de tijolos amarelos, a caminho de Oz, o meu cérebro, daqui a pouco, não vai mais distinguir entre Nárnia e o mundo real.

Uma reta. Vou traçar uma reta… Eu preciso… Matheus está cada vez mais próximo… Por que ele está agindo dessa forma?

– Como você tá cara? – Matheus, enfim, estaca à minha frente e lança sua pergunta acreditando que possui algum direito para isso – Já teve alguma notícia da sua irmã?

Corro o olhar de um lado para o outro, sem pressa, enquanto tento ganhar tempo até poder encará-lo em silêncio, em completo silêncio, para poder demonstrar a energia e a determinação que estão enraizadas em minha alma. Para entornar sobre si todo o meu desprezo, até a última gota, impondo-o a uma severa humilhação, rebaixando-o a um nível de degradação moral que ele levará dias, meses para se ver livre…

– Trouxe sua mochila…

Decido, por fim, confrontá-lo, mas no exato momento Matheus desvia o olhar na direção do ombro esquerdo à medida que vai retirando a alça da minha bolsa de cima dele. Nesse instante eu o observo, começando pelo seu cabelo escuro todo emaranhado, depois a sua pele, então sinto seu cheiro e o universo da minha mente cósmica entra de novo em ação, dessa vez como uma aquarela, fazendo com que eu me sinta dentro de um quadro transbordando energia, onde eu e Matheus estamos lado a lado, ora como dois adolescentes, ora com dois moleques retratados por tintas fortes que derramam demonstrações de carinho, afeto e atenção.

Como queria ter coragem para jogar na cara de Matheus, aqui e agora, enquanto ostentasse um sorriso cínico, de completo desdém, que a Brenda se equivocou ao lhe contar sobre os meus sentimentos. Sim. Eu assumiria que sou gay. Confessaria com todas as letras que sinto atração por garotos, mas que nunca, nunca senti nada por ele. Que jamais o amei. E para consolá-lo diria que em algum momento de extrema carência talvez eu pudesse ter confundido a nossa amizade. Depois lhe daria um tapinha camarada no ombro e pediria para que se acalmasse, tirasse o peso que vinha carregando nas costas (e decerto não estaria falando da minha mochila), pois não existiria a mais ínfima possibilidade de eu assediá-lo.

– Toma.

Matheus me estende a mochila e eu estou tão imerso em meus pensamentos que sou pego de surpresa com esse gesto e nossos olhares, inevitavelmente, acabam se encontrando e eu me vejo como um colegial sussurrante, flagrado pelo professor. Contudo, não demoro a assumir uma postura inflexível, altiva, como havia me prometido agora a pouco quando coloquei os pés nesse condomínio.

– Kadu, a sua mochila.

A voz firme de Matheus quebra, por fim, a última barreira imposta pelas conjecturas da minha mente. Por que ele insiste em agir dessa forma?

– Por que você não deixou na portaria?

Lanço minha pergunta ao léu depois de resgatar a bolsa com violência, já começando a trilhar os poucos centímetros que restam para atravessar a porta automática do hall, convicto que deixei Matheus para trás, esmagado, no chão, porém sou surpreendido ao vê-lo saltar diante de mim, quase forçando o encontro de nossos corpos.

– Precisamos conversar – ele me fita com um semblante inabalável apesar do tom murmurante com que as palavras saem de sua boca.

– Não. Não precisamos.

Minha determinação obriga Matheus a recuar. Sua fisionomia agora parece a de uma criança confusa, fragilizada, e essa visão faz doer além da alma, impregnando-me de angústia, estremecendo os alicerces da fortaleza que construí com o meu orgulho e dignidade, quase a derrubando como se fosse uma mera torre de cartas. Atingindo de tal maneira o meu coração que tenho vontade de enterrar esse maldito orgulho debaixo de sete palmos, ou mais, só para ver Matheus sorrir novamente enquanto joga os braços para o alto e fala os mais variados e incontáveis palavrões. Mas eu não posso. Você, Matheus, me traiu, traiu a nossa amizade, algo mais valioso que o amor que sinto por você, ao menos deveria ser, pois essa amizade já existia antes de tudo isso, de toda essa bagunça absurda dos meus sentimentos…

Retomo o meu trajeto depois que Matheus se coloca de lado, liberando minha passagem. Sem mais delongas, atravesso a entrada do hall fazendo das tripas, coração, para não olhar para trás ao mesmo tempo que tenho a impressão de que meu corpo está ferido em algum lugar, ou em diversos lugares.

O porteiro me cumprimenta e eu respondo de forma maquinal à medida que aperto o passo para alcançar o mais breve possível o elevador e enquanto aguardo sua chegada, apoiado em uma parede, decido permanecer cabisbaixo, pois não tenho forças de olhar adiante, na direção da porta automática de vidro temperado e vislumbrar Matheus do lado de fora, se é que ainda esteja lá.

Sei que se o fizer vou correr direto para os seus braços e confessar que tenho plena consciência de que eu estou sendo intransigente, que o estou fazendo sofrer e que eu não suporto mais vê-lo mergulhado nesse pesar, porque lá no fundo, bem lá no fundo, deixando de lado o ângulo que escolhi para enxergá-lo, que é o da culpa e das provas de acusação, tenho plena certeza das suas boas intenções quando decidiu fechar o tal acordo com os idiotas do CGAM. E que me sinto orgulhoso. E protegido frente à sua preocupação. Porém, só de assumir isso, aqui, em silêncio, para mais ninguém, ainda que por milésimos de segundos, parece que algo dentro de mim está sendo extirpado…

Diga-me Matheus, o que fazer com o meu orgulho, com o meu maldito orgulho? Tenho absoluta consciência de que estou sendo consumido pela necessidade de provar que eu estou certo e você, errado, desesperadamente errado por ter agido como agiu. Preciso aprender a lidar com esse sentimento, com essa soberba ridícula, pois é ela que vai me salvar do afogamento espontâneo nesse profundo oceano de baixa autoestima.

A porta do elevador se abre e sem alternativa espero a meia dúzia de moradores sair para que eu possa entrar. Praticamente não cumprimento nenhum deles de maneira direta, levando adiante a minha missão antissocial. Não vou desperdiçar, justo agora, na reta final, o que resta da minha paciência e empatia. Irei continuar guardando esses nobres sentimentos para Maria Clara, aliás, tomara que ela esteja bem. Acredito que a Sônia exagerou ao dizer que a viu chegar com uma cara de arrasada. Minha irmã devia estar cansada e decidiu colocar a cabeça em ordem, é isso. É muita pressão. Bem sei que desde que esse noivado com o Gustavo foi oficializado quantas e quantas crises de enxaqueca ela encarou.

Pelo jeito não há mais ninguém para subir, constato depois que a meia dúzia de moradores se afasta e eu permaneço só, diante da porta aberta do elevador, ainda recusando-me a olhar para o lado, na direção da entrada do hall. Com um gesto bastante afetado e sem qualquer melindre, entro na “caixa metálica” e de pronto aperto o número do meu andar e ato contínuo eu me volto para o espelho atrás de mim, tratando de observar minuciosamente o ser humano parado do outro lado, fitando-me ao passo que deixo escapar um longo suspiro como se mais nada no mundo importasse.

Não sou eu, ou ao menos não deveria ser eu. O reflexo que me é devolvido impiedosamente é o de uma imagem com olheiras, carregada de uma expressão de derrota significativa e um par de olhos côncavos revelando uma tristeza e carência sem fim. Estou em guerra comigo mesmo, é o que vejo. E se continuar assim, vou parecer ter uns 50 anos ao invés de aparentar estar entrando na fase adulta da minha existência sobre a Terra. Como bem disse Oscar Wilde, em O retrato de Dorian Gray: cada um de nós tem em si o céu e o inferno.

Deixo os ombros caírem e então dou as costas para o meu reflexo e enquanto o elevador segue cumprindo sua função, sinto o vibracall do celular dando sinal de vida no bolso da calça. Decerto mais de uma mensagem está chegando pelo Whatsapp, e sem sombra de dúvida todas são de Matheus, que provavelmente está me pedindo mil desculpas, implorando para termos uma conversa, pois precisa esclarecer tudo o que houve, explicar as reais intenções que o levaram a interferir a meu favor junto aos seus amiguinhos preconceituosos, prometendo se redimir, argumentando que os fins justificam os meios… Blá, blá, blá.

Acho que não estou preparado para isso agora. Meus soldados ainda estão vivos. Muitos deles feridos, ok, entretanto dispostos a continuarem mais do que nunca dentro dessa batalha de egos, se comprazendo, só Deus pra saber, com a oscilação entre euforia e melancolia, Resistindo em renunciar o que seja para, enfim, se permitirem dar a cara a tapa e amar, serem amados, sem medo, sem reticências. Mas enquanto isso não acontece, olho para o display do mostrador de andar à minha direita. Terceiro… Quarto… Falta pouco. Esse elevador poderia ser mais rápido, concluo ao passo que ergo o olhar rapidamente na direção do monitor de TV, instalado um pouco acima do display do mostrador, e que está disponibilizando algum comercial de alguma loja de roupas femininas que eu, definitivamente, não estou interessado em assistir.

Merda.

Usando a mochila como amortizador, deixo as costas tombarem sobre a superfície da parede que fica no lado oposto da TV ao passo que sinto mais uma mensagem chegando pelo Whatsapp.

A pior parte desse samba lelê, desse Deus nos acuda, é ter de reconhecer que a Brenda estava certa quando afirmou que eu não iria aproveitar essa oportunidade que as cartas baixadas na mesa estão proporcionando, agora que eu sei que Matheus sabe que eu gosto dele. Ao menos tomando por base a sua versão, não é Barbie Fake? Ela sabe (ou deu um chute muito bem dado) que vou continuar nessa estrada infeliz, alimentando-me de frivolidades, acumulando frustrações a cada segundo do dia e da noite. Recusando-me a superar meus limites idiotas. Optando por refugiar-me em um mundo de fantasia. Mantendo Matheus à distância entre um altar e uma sarjeta. Adorando-o e menosprezando-o na mesma proporção e intensidade.

Por que as paixões, as minhas paixões, sempre formam um par antagônico, me atirando em um abismo de emoções e sentimentos incontroláveis, contraditórios, afetando meu juízo crítico?

É sempre desse jeito. Foi assim com Gabriel, enquanto jurava a mim mesmo que não iria mais vê-lo depois de cada uma das vezes que fui colocado num táxi, como um mero garoto de programa, após terminarmos tudo aquilo que fazíamos em sua cama, dentro do apê. Foi assim com a paixão silenciosa e totalmente platônica pelo coordenador Jorge, ainda que tenha durado tão pouco, aliás, graças aos céus. E é assim com as meteóricas paixões com que esbarro nas salas de bate papo. Parafraseando Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser: não sei se estou certo em ter agido bem, contudo não tenho dúvidas de que agi como queria…

Resta saber se vou aguentar o fardo do arrependimento.

Dou de ombros enquanto me afasto da parede do elevador. Indiscutivelmente eu sou a prova viva de que o amor e o ódio habitam a mesma região do cérebro.

Sexto… Sétimo…

Apercebo que o bolso da calça jeans parou de vibrar e então sem pestanejar retiro o celular de dentro dele com toda força que me é possível, como se minha vida dependesse disso, e daí, ao me deparar com o visor, não reconheço o número de origem e fico olhando atentamente para a tela por alguns segundos, tentando descobrir quem é a pessoa do outro lado, chegando mesmo a presumir que Matheus tenha outro chip e o esteja utilizando numa medida desesperada de contato.

Quem diria que o mesmo Matheus que se afastava ao conhecer uma garota, que me desprezava quando o namoro entre eles começava a rolar, agora está tentando desesperadamente se reconciliar, estar ao meu lado? O mundo realmente é redondo e gira com uma destreza ímpar.

O número desconhecido no visor do telefone permanece me encarando, como se a me provocar para que eu descubra quem é “o seu dono”. Quem é o responsável por tê-lo feito surgir, antes que eu abra as mensagens deixadas. Praticamente como a Esfinge que aterrorizava Tebas e que desafiou Édipo com a famosa frase que antecedia a tal peleja: decifra-me ou te devoro.

Sinto muito, Matheus, mas agora é a minha vez de tomar as rédeas desse jogo. É você quem vai precisar respeitar o meu tempo e aguardar um lugarzinho na minha agenda para que eu possa lhe dispensar um pouquinho de atenção, concluo carregado de perseverança, não deixando de fitar o aparelho enquanto lhe entrego um sorriso cínico no canto dos lábios, ao mesmo tempo que luto bravamente para suportar a sensação de frustração e derrota que essa falsa felicidade me proporciona.

Oitavo…

Faço menção em guardar o celular, porém uma sensação intensa e incontrolável mesclada de curiosidade e sadismo me impede, e tampouco me esforço para controlá-la. Inspiro e expiro forte, e então abro o aplicativo e logo me deparo com um texto não muito pequeno e uma foto abaixo dele:

 

Beleza, cara?

Eu de novo.

O Vinicius Kenji.

Juro que não sou tão chato assim e não irei mais te incomodar depois desta mensagem… kkkk…

Mas você me deixou realmente impressionado, sabia?

Naquele nosso bate papo, hoje, na madrugada…

Então, como não ligamos a cam, estou enviando essa foto pra te convencer (se não te assustar… kkkk) a tentarmos um novo contato.

Forte abraço.

 

Não é tão chato assim? Movo o indicador sobre a tela e confiro a última mensagem que esse ser humano me enviou um pouco depois do meu encontro com Brenda: tem exatamente uma hora e meia.

Esse grupo de pessoas das salas de bate papo só quer uma coisa e eu bem sei o que é, e quem sou eu para julgá-las… Mas até que esse tal Vinicius, ainda que realmente não me lembre dos motivos que me fizeram passar o número do meu celular para ele, é mesmo bonitinho.

Deduzo ao passo que vou reparando nos detalhes da imagem disposta diante de mim.

Inegavelmente esse rapaz possui uma sutil ascendência asiática e esses olhinhos miúdos ficam ainda menores e bonitinhos em contraponto ao largo sorriso que está dispensando. Um sorriso forçado, claro. Ah! E esse cabelo preto, que não parece tão liso, quase destoando da cor de sua pele morena bem, bem clara, ao menos não sucumbiu a um desses cortes que os “lekes” estão usando e que em alguns casos chegam a assustar.

Um solavanco, leve, me resgata desse meu momento lúdico de apreciação. Ergo a cabeça. Décimo andar, o display do mostrador informa e não me resta alternativa a não ser guardar o telefone de volta no bolso e sair do elevador para iniciar o trajeto rumo ao meu apartamento enquanto continuo avaliando a postura desse tal Vinicius Kenji… Claro, considerando que esse seja o seu nome verdadeiro. Esse carinha, como tantos outros das salas de bate papo, aquelas terras de ninguém, deve ser mais um chato, pseudopuritano e desesperado, com o nível de carência na Estratosfera, empurrando deliberadamente sobre qualquer um suas frustrações e desejos que beiram a utopia. Não estou com cabeça para isso agora, ficar brincando de “eu te amo” por um mês, mentiras passageiras e conversas frágeis e superficiais.

Caminhando a passos largos sob a iluminação do sensor de presença, estaco, por fim, em frente à imponente porta com madeira de demolição do meu lar doce lar e depois de apanhar a chave na mochila e encaixá-la na fechadura até abri-la, não me surpreende a recepção que me é ofertada já no hall com o brado retumbante de dona Marcela ecoando fundo em meus ouvidos, não me dando sequer a chance de respirar com relativa resignação.

Maria Clara. Preciso focar em Maria Clara.

Pisando forte sobre a extensão de mármore em preto em branco, ao mesmo tempo que deixo meus ombros caírem para em seguida fazer o sinal da cruz, alcanço a entrada da sala de estar, onde acabo por me deparar com a figura de dona Marcela, com uma das mãos na cintura e a outra agarrada ao celular, andando de um lado a outro, usando um tom de voz mais que alterado ao telefone. Absolutamente toda sua paciência foi perdida, ou o que restou dela desde o instante em que nos falamos pela última vez. A propósito, não demoro a descobrir que é o doutor Carlos Eduardo do outro lado da linha.

– Como vou saber Carlos? A Maria Clara está trancada nesse maldito quarto e não abre a porta nem por um decreto. Nada…

Finalmente dona Marcela percebe a minha presença e afasta de pronto o celular do ouvido, mantendo o aparelho a certa distância, para, depois de baixar a mão que estava apoiada à cintura, me interrogar sobre Filipa, pouco se importando em interromper sua conversa (ou seu monólogo) com o meu pai.

– Eu a deixei com o Luciano – respondo, dando de ombros.

Dona Marcela, notoriamente insatisfeita com minha resposta um tanto evasiva, reação que não deixa um pingo de dúvidas diante de suas sobrancelhas arqueadas para baixo, próximas uma da outra, sua boca fechada com os lábios apertados e um brilho nos olhos capaz de partir um iceberg em pedaços em questão de segundos, reaproxima o aparelho do rosto e faz um sinal, agitando a mão que está livre no ar, na direção do corredor, decerto para que eu vá até o quarto de Maria Clara com a missão de tentar salvar a pátria ou o que quer que esteja acontecendo.

– Sua filha definitivamente enlouqueceu – ela continua, agora aos berros, a ladainha com o meu pai – Uma coisa é manter-se à parte de todo o preparativo do seu próprio casamento, apesar de absurdo, mas daí não estar presente na prova final do vestido que vai usar no sábado? Eu espero que a Maria Clara não esteja aprontando alguma gracinha, Carlos…

Abandono a sala num salto e enquanto caminho pelo corredor, passando pelas prateleiras, pelos apoiadores e tomando cuidado para não escorregar nos tapetes persas devido à pressa com que me locomovo, tento abstrair a oratória descontrolada e ameaçadora de dona Marcela, não deixando de ponderar os motivos que levaram meu pai a se casar com ela, assim como prevejo, inevitavelmente, o mesmo futuro alucinado que Luciano terá ao lado de Filipa, se, porventura, decidir levar às vias de fato o seu noivado.

Por fim, estaciono defronte ao quarto de Maria Clara e tiro a mochila do ombro, colocando-a num canto, no chão, após inclinar um pouco o corpo para baixo. Sinto uma leve tontura durante o tempo que mantenho a coluna e cabeça dobradas, mas nada que chegue a incomodar e tampouco a dificultar o meu retorno à posição ereta

Maria Clara… Vamos lá!

De pé, parado por alguns segundos diante da porta fechada, eu decido finalmente bater, de leve, uma, duas, três vezes sobre a sua superfície e em seguida encosto o ouvido esquerdo sobre ela, mas, infelizmente, não recebo qualquer retorno e então, depois de respirar bem fundo, forço com delicadeza a maçaneta e constato que a porta está trancada.

-Maria Clara? Sou eu. Kadu.

Anuncio, e como não poderia ser diferente, usando um tom de voz bem elevado, afinal de contas preciso competir com o espetáculo que está acontecendo na sala de estar, proporcionado por ninguém menos que a própria Maria Callas. Cada família tem a diva histriônica que merece.

– Não adianta Kadu…

Ouço a voz profunda e sonoramente calma de Sônia às minhas costas, e ao virar, me deparo com seus grandes olhos claros, astutos e espertos, fitando e medindo cada linha do meu semblante como se estivesse me vendo pela primeira vez na vida. Aliás, desde que me entendo por gente não conheço outra forma de recepção visual dispensado por ela. E não é uma reação invasiva ou opressora, como muitos acabam por interpretar assim que a conhecem. Pelo contrário. Sônia, com esse gesto, está tentando se mostrar acessível e disponível… Ok. Já a vi praticamente fuzilar alguém com esse mesmo olhar, contudo, ao menos até onde me lembro, estava buscando nos proteger, preservar os limites entre o mundo exterior e o frágil universo de nossa família.

Quantos e quantos repórteres, ou jornalistas, ou até mesmo alguns apresentadores de TV, que graças à dona Marcela visitaram esse nosso apartamento para praticarem o seu ofício, com todas as cartas brancas possíveis e imagináveis à sua disposição, tiveram que repensar as perguntas que lançavam ou o caminho que tomavam nas entrevistas que faziam?

Peço a Deus que não permita que Sônia algum dia nos deixe, e digo isso em relação à outra oferta de emprego, apesar da sua paciência infinita demonstrada ao longo desses vinte anos, convivendo e suportando as peculiaridades de dona Marcela. Torço para que eu possa me tornar financeiramente independente antes de sua aposentadoria e, dessa forma, lhe garantir um futuro tranquilo, sem aborrecimentos ou preocupações ou o que seja que possa oferecer à terceira idade nesse Brasil incerto em que vivemos.

– Sua irmã decidiu ficar trancada – Sônia estende a mão até a altura do meu rosto, oferecendo um copo com suco, que eu recuso educadamente com um aceno em negativo feito com a cabeça – E nem a mãe de vocês, que já a ameaçou de todas as formas possíveis que existem nesse mundo, como você bem sabe, conseguiu tirá-la daí – ela insiste, voltando a me ofertar o copo com suco, ainda próximo à minha face, que eu, mais uma vez, recuso – Tem certeza que não quer? É de maracujá.

– O que houve? O que a Maria Clara disse quando chegou? – questiono enquanto me volto na direção da porta fechada.

– Nada. Entrou no apartamento com uma cara de enterro, passou por mim como se estivesse arrastando correntes e se enfiou nesse quarto…

Respiro fundo mais uma vez ao passo que encosto a testa na porta e tento pensar por alguns instantes em algo que faça Maria Clara me deixar vê-la. Estou começando a ficar BEM preocupado.

– Só quero dizer que estou aqui fora, te esperando, ok? Se quiser conversar, ou se não quiser também, sem problemas, só gostaria de vê-la…

Não tenho certeza se Maria Clara ouviu, pois o tom de voz de dona Marcela não diminui e tampouco arrefece. Será que ela não pode esperar o doutor Carlos retornar para casa na sexta? Do que vai adiantar ficar berrando ao telefone, lhe cobrando apoio, se 400 km de distância os separam?

Ainda com a testa deitada sobre a superfície de madeira, tentando pensar no que posso fazer para ajudar Maria Clara, tentando refletir sobre a conversa que tivemos hoje pela manhã, buscando algum indício que possa justificar essa sua manifestação extrema e melodramática, considero a possibilidade de contatar o Gustavo, mesmo sendo completamente inadmissível e sem noção essa minha linha de raciocínio, mas somente ele, e mais ninguém, para contar o que houve. Não sei quanto tempo minha irmã vai permanecer trancada nesse quarto.

Faço menção em apanhar o celular, entretanto, o inesperado som da campainha do apartamento interrompe meu gesto e tão logo termino de dar as costas para a porta fechada, vejo Sônia, com sua compleição física e aparentemente frágil, se afastando e já virando a esquina do final do corredor. O copo com suco ficou depositado sobre a prateleira bem próximo de onde estou.

Mantendo-me recostado, retiro o telefone do bolso da calça e à medida que procuro o nome de Gustavo na agenda, decido que definitivamente não vou pensar nas consequências dessa minha ação. Mal termino de localizar o arquivo não tão extenso da letra G, sou surpreendido com a figura de Sônia parada à minha frente, informando que Matheus está do lado de fora do apartamento, no corredor, me aguardando.

Oi?

Guardo o celular e por pouco não rasgo o fundo do bolso da calça.

É muita cara de pau do Matheus aparecer por aqui, eu reflito, possesso, enquanto minha respiração começa (ou volta. Já não sei mais qual o seu ritmo natural) a ficar um tanto descontrolada. Sem demora me afasto da porta do quarto de Maria Clara e começo a andar para lá e para cá no curto espaço que existe entre uma parede à outra do corredor. Por que Matheus está agindo dessa maneira? Será que ele não sabe que forçar essa barra não é a melhor das opções nesse momento? Ainda mais agora, com a Maria Clara (olho rapidamente na direção da porta trancada) isolada, se recusando a manter qualquer tipo de contato. A consciência de Matheus deve estar bem pesada para ter ignorado o meu desprezo. Eu não vou atendê-lo. Fato. Não tenho condições psicológicas para isso.

Estaco tão logo sinto o tapete persa engalfinhando-se sob os meus pés. Muitas hipóteses de como despachar Matheus brotam simultaneamente, todavia, uma única se sobrepõe a todas elas e eu a repudio, veemente. Nunca. Jamais. Nem que o mundo caia sobre mim. Nem se Deus mandar vou falar com ele, retruco, esforçando-me num total desespero para retomar as rédeas do caos psicodélico dentro do meu cérebro.

Fecho os olhos e meneio a cabeça, acreditando, absurdamente que irei, com esse simples solavanco, atirar os meus pensamentos para o quinto dos infernos para só resgatá-los, se for o caso, quando eu quiser. Na verdade mais precisamente amanhã, quando tiver que sentar ao lado de Matheus na sala de aula. Adoraria ter esse autocontrole, porém nasci sem esse poder mutante e é o que tem pra hoje.

Bufando, abro os olhos e dou de cara com Sônia, parada à minha frente, com as duas mãos na cintura, aguardando, decerto, algum posicionamento de minha parte em relação ao Judas Iscariotes.

– Bebe esse suco, Kadu. É de maracujá.

Ela retira as mãos da cintura e após resgatar o copo de cima da prateleira, o direciona para mim, estendendo a mão que o está segurando, até chegar bem perto do meu rosto, e eu, dessa vez, acabo aceitando a oferta.

– Sônia, na boa, eu não tenho ideia do que o Matheus está fazendo aqui – entorno o liquido garganta abaixo de uma só vez e lhe devolvo o copo vazio – Avise, por favor, que estou ocupado. Pela gritaria da minha mãe ao telefone acho que ele deve ter percebido que o clima aqui em casa não está bom…

– Kadu, o Matheus disse que precisa falar com você – Sônia informa, solicita, mas também resoluta – Não sei o que o seu amigo tem pra te dizer, ou talvez esteja aqui pra ser solidário. Ele até me perguntou sobre a Maria Clara…

Quase não consigo ouvir direito suas palavras.

-Sônia, por favor – insisto entre os dentes – Avise a ele que eu não vou.

Ela deposita o copo vazio sobre a prateleira e desaparece, mas logo está de volta, contudo, dessa vez, mantendo um semblante austero, uma cara de poucos amigos.

-Ele disse que vai te esperar.

Ato contínuo, sem pesar os prós e os contras, eu esmurro, não com muita força, evidente, a parede que fica do meu lado esquerdo.

– O que te custa, Kadu? – Sônia pergunta em um tom de voz grave enquanto massageio o punho – Nós sabemos que sua mãe odeia esse menino. Imagina se ela descobre, e nervosa como está, que ele se encontra aqui, no corredor, na porta do apartamento de vocês?

Conto até dez e fuzilo Sônia com o olhar.

– Cara feia para mim é fome – ela dispara -Anda logo. Seja lá o que for que aconteceu entre os dois, a amizade precisa estar acima de tudo…

– Não aconteceu nada entre a gente…

– Tá… Eu não nasci ontem, Kadu, e acredite, sei muito mais coisas que você e todos dessa família imaginam – Sônia completa determinada, mas também serena e graciosa.

-Vou esperar Maria Clara sair do quarto… – comunico ao passo que deixo o corpo tombar por completo sobre uma parede. Por pouco não derrubo meia dúzia de murais com fotografias da família.

– Não use sua irmã como escudo. Ela só vai sair desse quarto quando achar que deve…

Sônia me afasta da parede e me empurra, de leve, para fora do corredor e eu resisto bravamente até que ela segura o meu rosto com firmeza, fitando-me com tanta determinação, de baixo para cima, já que não temos a mesma altura, que eu não consigo sustentar o seu olhar por muito tempo.

– Uma coisa eu te digo, Kadu, estamos de passagem por esse mundo, e é exaustivo desperdiçar um dia dessas nossas vidas com raiva ou qualquer outro sentimento destruidor.

Sônia recomenda num tom de voz beirando o obstinado e o impetuoso enquanto eu continuo disposto a não encará-la, chegando mesmo a menear a cabeça para tentar retirar o meu rosto dentre as suas mãos, porém não consigo e sem alternativa acabo tendo que fitá-la.

– Ok. Eu vou lá, mas saiba que eu te odeio por isso.

– Não será a primeira pessoa e nem a última.

Com um sorriso rasgando a face de lado a lado e uma das sobrancelhas arqueadas, Sônia libera o meu rosto e se afasta, entretanto sem tirar os olhos de cima de mim, seguindo cada um dos meus movimentos. Sob um protesto veemente, após ajeitar os óculos, saio do corredor pisando firme e atravesso a sala de estar enquanto dona Marcela está de costas, no bar, servindo-se de alguma bebida ao mesmo tempo que continua com sua performance ao telefone. Só não tenho mais certeza se é o doutor Carlos Eduardo que ainda está do outro lado da linha.

Hesitante, cruzo o hall de entrada e em seguida a porta do apartamento, fechando-a atrás de mim e tão logo alcanço o corredor, me deparo com a imagem de Matheus agachada, à minha direita, um pouco afastado de onde estou. Ele, de cabeça baixa, parece mexer em alguma coisa no chão que não consigo identificar. O sensor de presença, com sua iluminação alternada, não está ajudando muito, porém tenho a impressão de que não seja nada mais que um movimento aleatório.

O que deve estar passando pela sua cabeça? A questão surge em minha mente de maneira tão natural como a necessidade de respirar. Mesmo aqui, arredio, resoluto em trilhar outros caminhos em relação a essa amizade, eu não consigo deixar de ficar mega preocupado com Matheus. E se eu ceder, recuar um passo sequer, justo agora, diante do nível em que tudo isso alcançou, as dúvidas e reticências, a inquietação para com ele só irão triplicar.

Fato. Será um retrocesso. Resta saber se estou disposto a comprar essa briga.

Decido permanecer parado e em silêncio, e é claro que Matheus não demora a perceber minha presença, tratando de se levantar num salto enquanto ajeita a mochila às costas. Seu rosto, eu consigo identificar de imediato, está corado.

-O que você está fazendo aqui? – pergunto, encarando-o firme.

– A gente precisa conversar…

– Não. Não precisamos e eu já disse isso – devolvo num tom grave, não menos do que exige a formalidade entre dois estranhos.

Matheus ensaia um passo em minha direção e eu de pronto balanço a cabeça, em negativa, pedindo para que não se aproxime.

– Kadu, nós não terminamos a nossa conversa, lá na sala das carteiras quebradas…

– Matheus, na boa, eu não quero falar sobre isso, ao menos não agora, e queria que você entendesse.

– Nunca chegamos a esse extremo – ele ressalta na medida em que olha para o chão e meneia a cabeça para tão logo voltar a erguê-la – Eu só quero esclarecer as coisas o mais rápido possível porque não vou suportar esse clima. Saber que te deixei mauzão

Um silêncio constrangedor toma conta do nosso entorno e sou eu que então decido quebrá-lo no intuito de terminar o mais breve possível com essa tortura.

– Aqui não é o lugar para falarmos sobre isso, Matheus. Quem sabe outra hora, ok? – insisto, já fazendo menção em me virar a fim de retornar para dentro do apartamento.

– Caralho, Kadu, por favor, já chega. Dá pra parar com essa palhaçada?

Volto-me de pronto, retirando a mão que já estava sobre a maçaneta da porta, após ouvir o tom arrebatador da voz de Matheus. Mesmo sob essa maldita iluminação do sensor de presença, consigo observar que o rubor em seu rosto não diminuiu nem um pouco; pelo contrário, parece que está aumentando e seus olhos, agora cerrados, denotam uma tensão palpável realçada pelo encolhimento dos músculos entre suas sobrancelhas e pelo gesto, ainda que sutil, da sua cabeça inclinada para frente. A raiva está se instalando nele. Que seja. Matheus não agiria de outra forma diante de uma oposição.

-Palhaçada?

Disparo um olhar massacrante na sua direção sem sair do lugar em que estou.

– Como eu devo agir diante da traição que você cometeu? Não sei Matheus se você lembra que combinou com os seus amiguinhos… – respiro fundo e dou de ombros – Eu não vou repetir tudo de novo. Recuso-me. Não preciso disso e além do mais não vou ficar discutindo no meio do corredor, para os vizinhos escutarem.

– Cara, então… Vamos para outro lugar. Se o problema for esse, vamos lá para o meu apartamento, os meus padrinhos saíram, ou se você não quiser, escolhe qualquer outro canto do condomínio. Só tente me ouvir, tente me escutar e tenho certeza de que vai compreender o meu lado nessa história…

Matheus mal termina sua frase e já dá um passo à frente, como um lobo pronto para saltar e atacar, e eu, claro, não me faço de rogado em recuar. Ele, graças aos céus, vacila e então desiste de seguir adiante. 

– Eu já compreendi o que precisava ser compreendido, Matheus- reinicio depois de alguns instantes de completo silêncio -Você está tão desesperado em se justificar, explicar algo que para mim não tem explicação, que pouco está se importando com o que está acontecendo comigo… – levanto a mão esquerda e coloco o indicador no meio do rosto e empurro os óculos em uma deliberada e emergencial tentativa de não “deixá-lo escapar” – Minha irmã está lá dentro… – retiro a mão dos óculos e aponto para a porta fechada do apartamento sem desviar os olhos de Matheus – Trancada no quarto, e sabe-se lá o que aconteceu…

– Eu estou preocupado, sim – ele dispara um tanto áspero, pousando as mãos em cada lado da cintura – Tanto que liguei pra você depois que saiu do CGAM e não fui atendido e o que eu fiz? – Matheus recolhe as mãos e começa a caminhar de um lado para o outro uma, duas, três vezes no espaço entre as paredes que o cercam até voltar a ficar parado – Pedi ao Jorge pra me liberar um pouco mais cedo e vim correndo pra cá.

– Para aquietar a sua consciência – tolho sem qualquer sinal de compaixão.

Matheus puxa o ar com força para dentro dos pulmões, tanto que é impossível não notar um movimento ondulado em seu peito.

– Quero que saiba o quão ridículo e hipócrita você está sendo, Kadu… – ele contra ataca com um tom de voz extremamente grave e carregado de amargura – Fica aí, arrotando dignidade, me chamando de traidor, agindo acima do bem e do mal, porém está no mesmo patamar que o meu…

– Do que você está falando? – reajo, mesmo desconfiando do que está por vir.

-A Brenda me contou sobre a conversa que vocês tiveram hoje no corredor da sala de música.

Um calafrio percorre minha espinha. Como imaginei, a ordinária não deixaria para trás uma oportunidade dessas. Resta saber qual a versão dos fatos foi apresentada.

– Ela me mandou algumas mensagens, mas só conseguimos nos falar um pouco depois que você saiu do CGAM – Matheus prossegue – A Brenda me contou que você a tem ajudado a bolar uns planos para me reconquistar desde que eu dei o fora nela. Aquele lance das cartas no meu armário do colégio, o carro de som aqui, na frente do condomínio…  Honestamente, Kadu, eu fiquei confuso, afinal de contas não era você que me dizia, quando eu namorava a porra da Brenda, que não confiava nela?

Meneio a cabeça entre incrédulo e ansioso e começo a andar (agora sou eu) de um lado para o outro no espaço entre as paredes do corredor, impulsionado por um desagradável estado de agitação, planejando qual a melhor maneira de me defender. Penso imediatamente em revidar esse ataque perguntando a Matheus se Brenda realmente lhe contou tudo, principalmente sobre o real motivo do fim do namoro deles e sobre ele, o fuderoso Matheus, ter lhe pedido para nunca me revelar qualquer coisa sobre o tal acordo com os Neandertais, prova da sua consciência pesada. Mas desisto. Será um tiro no pé, com certeza, e também não sei se terei munição para sustentar essa batalha.

Entre mortos e feridos, estaco possesso, decidido a não dar o braço a torcer.

– E você acreditou nessa louca? – me volto furioso na direção de Matheus enquanto eu lanço minha pergunta de forma incisiva.

– E por que não acreditaria?

– Matheus, eu não quero lidar com você agora – as palavras escapam da minha boca de repente, me surpreendendo.

Um baque, rápido, como um relâmpago parece ter atingido Matheus, transformando seu semblante num conjunto de linhas e expressões duras, frias, amargas, até que tristeza e decepção oscilam no seu rosto.

-Ok! Kadu. Não precisa mais lidar comigo se não quiser. E não só agora, mas pelo tempo que achar necessário.

Nem mais uma palavra. Nem mais um som. Nada. Ele se vira e começa a andar na direção do elevador, mas sabe-se lá por que, desiste e toma o caminho da saída de incêndio, abrindo a porta que dá para as escadas, sumindo do meu raio de visão em questão de segundos… Não demora e ouço o barulho, forte, da batida proporcionada pelo peso da porta de ferro.

Não consigo evitar. Sinto-me ofegante e com o coração se contraindo de vergonha sob um silêncio vigilante, exaurido, que invade o corredor. Tenho que tomar uma decisão aqui e agora. Vou atrás de Matheus ou esqueço de vez a nossa amizade? Merda. Eu não vou pagar essa conta. O recalque moral não será só meu.

Caminhando a passos largos, alcanço a porta de incêndio e a abro de supetão, certo de que eu terei que descer alguns lances de escada atrás de Matheus, porém qual não é minha surpresa ao vê-lo agachado, quase numa posição fetal, sob uma iluminação de lâmpadas fluorescente, com o rosto enfiado entre as pernas, parecendo uma criança desamparada, no largo patamar que antecede os degraus intermediários para o nono andar. Um aperto no peito, que chega a sufocar, a mesma sensação de quando ignorei Matheus antes de subir no elevador, me obriga a apoiar o peso do corpo sobre o corrimão, antes mesmo de pisar sobre o primeiro degrau, depois que fecho a porta de ferro atrás de mim, tomando o cuidado para não deixá-la bater.

É mais forte do que eu. Não consigo deixar de observar Matheus com ternura, mas não uma ternura piegas, superficial, mas sim um sentimento carregado de compaixão, piedade, à medida que me odeio, um ódio carregado pela força da fúria de um amor frustrado e humilhado. É isso. Eu te odeio Matheus porque você me deixa vulnerável. Faz com que eu perca totalmente o controle sobre todos os meus sentimentos. Sempre esperei que um dia eu chegasse a essa conclusão, mas não aqui, dessa forma. Não depois de quase um ano de conflitos, questionamentos, suposições, ciúmes…

Merda. Por que fui dizer que não quero lidar com você Matheus? Por que não controlei as minhas palavras. Na verdade eu não queria ter falado aquilo… Nunca imaginei que um ser humano pudesse amar e odiar em igual intensidade. 

Fecho os olhos.

Matheus veio até aqui mesmo depois do que a Brenda lhe disse e ainda assim se manteve discreto até onde pôde e me deixou crucificá-lo até o último instante… Ele sabe que me magoou, mas eu também preciso entender e enfiar de vez na porra da minha cabeça que ele fez o que fez para me proteger. Uma decisão impensada, mas que talvez tenha sido a única opção…

E eu também o magoei…

Merda. Merda. Merda.

Respiro forte, bem forte enquanto um vazio toma conta do meu peito e a sensação crescente de estar perdendo o domínio sobre o meu corpo parece não ter fim. Mas eu preciso me acalmar. Repito uma, duas, três vezes. Preciso e devo me acalmar.

“Tudo nessa vida tem um preço, Kadu”, a voz de Gabriel, outra vez, reverbera em minha mente enquanto a sensação fria do contato do meu corpo com o corrimão toma proporções absurdas. Não. Não. Definitivamente não serei essa pessoa com medo de se entregar, disposta a desprezar quem ama apenas para se proteger… Meu amor por você, Matheus, precisa ser mais forte que um erro. O amor é isso, improvável, incontestável, indefinível… E não me importo. Não me importo de assistir, Matheus, você seguir o seu caminho, construir a sua família enquanto vou ficar no meu canto, sobrevivendo às migalhas, criando situações, esbarrões furtivos, tão somente para sentir, por milésimos de segundo, sua pele em contato com a minha, ou então receber um olhar ainda que desinteressado…

Abro os olhos de supetão e me deparo com Matheus me fitando, ainda sentado, mas com a cabeça erguida. Algo em seu olhar me petrifica. Não sei se a energia que emana de seu corpo, da sua alma, ou se a sua fisionomia cansada, como a de um homem embriagado buscando controlar, equilibrar uma raiva impotente e um sentimento de piedade ardorosa.

Um silêncio sepulcral, pesado, paira sobre nós dois até que não aguento mais e desço, degrau por degrau ao mesmo tempo que Matheus se põe de pé. Em questão de segundos me coloco à sua frente e cara a cara, sem pensar, lhe dou um beijo na boca e por incrível que possa parecer não encontro qualquer sinal de resistência.

Troye Sivan – TALK ME DOWN

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