FOI APENAS UM SONHO
“Porque não suportava mais todas aquelas coisas por dentro e ainda por cima o quase-amor e a confusão e o medo puro”
Caio Fernando Abreu
O que está acontecendo?
Por um instante, que não sei exatamente o tempo exato que perdura, não consigo distinguir se estou sonhando, mergulhado num mar de desespero e dúvidas, parado no alto do patamar, próximo à porta de incêndio, com o corpo inteiro reclinado sobre o corrimão frio, decidindo o rumo que devo dar aos meus sentimentos. Ou, se de fato, estou vivenciando o que eu acho que estou vivenciando, tendo Matheus entre os meus braços, sentindo o calor do seu corpo, o seu cheiro…
Os olhos de Matheus estão abertos, me encarando, entre surpreso e abalado; sua respiração, nossa respiração, segue entrecortada à medida que nossos lábios continuam se tocando até que ele, Matheus, fecha os olhos e eu então me inclino para senti-lo ainda mais perto, esticando uma das mãos para colocá-la sobre sua cintura ao passo que com a outra toco ternamente o seu peito.
Meu Deus, o coração de Matheus está batendo cada vez mais forte. EU NÃO POSSO ACREDITAR NO QUE ELE ESTÁ ME PERMITINDO FAZER.
Isso não é um sonho.
Não.
Claro que não.
Com certeza isso não pode ser um sonho, apesar de eu ainda estar me sentindo fora do próprio corpo, tomado por uma percepção que beira o inconsciente, me permitindo sentir odores e sons, por mais irrelevantes que possam ser, enquanto luto contra uma tempestade de pensamentos super, mega contraditórios, ainda que não consiga identificá-los com precisão, e uma dor aguda, fria, direta no coração, me trespassa como a ponta de um iceberg.
Fecho os olhos, porém um rugido abafado me força a abri-los de pronto. Matheus está me fitando novamente. Seus olhos parecem atormentados pela luta e pelo desespero e eu chego a temer por uma reação de sua parte nem um pouco amistosa. Todavia, contradizendo minhas expectativas, não recebo qualquer manifestação, positiva ou negativa. Nada. Ele tão somente volta a cerrar as pálpebras, permanecendo como um boneco de pano, um mero boneco de pano encostado à parede e possivelmente bastante desconfortável com a mochila pendurada às suas costas e isso me deixa incomodado, muito incomodado.
Sem pestanejar, retiro a mão de sobre o seu peito e quando faço menção em recolher a outra que ainda descansa em sua cintura, já pensando em me afastar por completo, sinto uma das mãos de Matheus tocar as minhas costas, sem qualquer pressão, numa verdadeira sutileza, como que sugerindo para que eu continue onde estou e, decerto, acabo por sentir um alívio, porém muito, muito rápido, já que percebo gotas, muitas gotas de suor em sua testa, o que contribui para a confusão que me acerca, deixando-me ainda mais reticente.
Enfim, decido permanecer imóvel por alguns instantes, não sabendo para onde ir dentro desse campo minado à medida que examino minuciosamente as linhas do semblante de Matheus, tentando encontrar, sabe-se lá por que, suas virtudes e seus defeitos que ainda não me foram apresentados, enquanto preencho a mente com questionamentos diversos sobre as motivações que o estão levando a não me expulsar por estar corrompendo o que resta de nossa amizade.
Alguma coisa está errada. Você não tinha que estar agindo dessa forma Matheus…
Inesperadamente, sim, inesperadamente, ainda sob um gesto banhado em sutileza, ainda com os olhos fechados, ainda em completo silêncio, Matheus me convida a me aproximar ainda mais do seu corpo, de seu rosto, de sua alma…
Fecho os olhos.
Inspiro e expiro.
Dane-se o mundo.
Começo a beijar o rosto de Matheus, depois o seu pescoço, suave, sem pressa, voltando para os seus lábios enquanto alinho minhas mãos ao redor de sua cintura, indo e vindo, circundando o mundo e sentindo-me seguro, até fazê-las se encontrar para depois esbarrarem na fivela do cinto que está usando ao mesmo tempo que noto a excitação crescente entre suas pernas, entre nossas pernas, à medida que todas as minhas fantasias marcham sucessivamente por cada canto do meu cérebro…
Exaltando Matheus.
Transformando-o em um deus do sexo.
Alimentando minha autoestima até que por fim minha cabeça começa a latejar forte, invadindo-me de culpa e vergonha e não consigo compreender o porquê dessas últimas sensações, desse pudor, dessa súbita resistência, afinal de contas tudo o que sempre quis e desejei, nesse quase um ano, está acontecendo.
Não. Não estou perdido dentro de um sonho, de um devaneio sem pé nem cabeça. Matheus, do seu jeito, está correspondendo a todos os meus afãs, às minhas súplicas e ainda assim não consigo compreender essa sensação de medo voraz percorrendo minhas entranhas gradativamente, atingindo meu cérebro, retumbando em meu coração como um tambor anunciando a chegada de um cataclismo.
Abro os olhos, ligeiro, e meço a parte do rosto de Matheus que me está disponível à medida que seguimos nos beijando e, enquanto constato que ele continua com seus olhos selados, sou invadido por uma impressão de que o que está acontecendo não tem qualquer significado, a não ser aquele que se aproxima da satisfação inebriante e quase desmedida de uma criança mimada após ter conquistado o seu brinquedo favorito.
Como assim?
Uma batalha, árdua, se forma entre mente e coração, sem que eu possa dominá-la. De um lado vislumbro Matheus me dispensando sinais de afeto, aparentemente incomuns, depois de ter visto sua foto na tela de bloqueio do meu celular. Do outro entrevejo o meu melhor amigo com sua inacreditável habilidade de acender uma vela para Deus e para o diabo, sem se queimar, fechando um acordo a meu favor com seus amiguinhos Neandertais ao tempo que se compraz ao lado desses mesmos amiguinhos após escolherem uma potencial vítima para infernizar a existência, apenas e unicamente por julgarem que sua masculinidade está em jogo.
Não! Não! Não!
Fecho os olhos com força, pois só assim poderei ouvir o meu coração.
Eu te amo, Matheus, eu sei que te amo e beira o sacrilégio duvidar desse sentimento. Repito exaustivamente dentro mim, para cada canto do meu corpo, já arrependido, conforme busco as palavras certas para dizer a Matheus tudo o que sinto e tudo o que vem me atingido nesse quase um ano, enquanto tento encontrar, também, as palavras certas para lhe dizer que poderíamos ser namorados, pois não seriamos os primeiros melhores amigos a transformar uma grande amizade em algo além.
Mas e depois? Minha mãe não iria suportar essa traição. O seu próprio filho se revelando gay e escolhendo como namorando o rapaz que ela não suporta a existência sobre a face da Terra pelo fato de considerá-lo um usurpador, ocupando um lugar que não é seu dentro do mundo privilegiado em que vivemos.
Minha cabeça continua a latejar. Preciso de ar. Preciso respirar. Certifico-me para logo em seguida recolher bruscamente uma das mãos que enlaça a cintura de Matheus.
Não. Eu não quero ter o mesmo fim que o meu tio. Não quero terminar desprezado, abandonado por minha família, reduzido à minha orientação sexual, como se isso fosse uma afronta às leis que regem o universo…
O que eu faria com os destroços da minha muralha já que Matheus não suportaria viver na clandestinidade, não saberia fingir olhares e gestos?
Abro os olhos e de súbito recolho a mão que ainda descansa sobre a cintura de Matheus e recuo, rápido, por completo, afastando-me uns dois passos de distância ao mesmo tempo que suplico para que esses últimos minutos, segundos, desapareçam da minha mente… das nossas mentes.
– Que merda eu estou fazendo?
Balbucio, levando de pronto a mão esquerda à testa enquanto meneio a cabeça, incrédulo e aturdido até me deparar com Matheus, com os olhos abertos, bem abertos e me medindo, perscrutando cada linha do meu semblante, dando a entender que está tão desorientado quanto eu estou. Nesse instante percebo que o medo que estava me devorando também se afastou, restando pura e tão somente uma sensação estranha, quase indefinível, como se todos os meus sentimentos tivessem sido congelados.
– Desculpa – minha voz escapa da garganta, falha, hesitante, à medida que recuo mais alguns passos depositando por completo os olhos no chão – Por favor, me desculpe… Eu não sei o que deu em mim…
Meu peito arfa e o sangue fervilha nas minhas veias. Sinto que estou quase sem ar.
– O que está pretendendo, Kadu?
Ouço Matheus e ele me soa a quilômetros de distância, porém, num esforço hercúleo, levanto os olhos para constatar se realmente não saiu do lugar, mas ainda estamos aqui, no largo patamar que antecede os degraus intermediários para o nono andar e Matheus, agora, mantendo uma postura rija e resistente, encarando-me firme, com os olhos escuros, pesados, sem nenhuma luz saltitante, não lembra em nada a imagem fragilizada com que me deparei depois de cruzar a porta de incêndio.
Ele deve estar me odiando.
Sim.
Deve estar jogando na lata de lixo o respeito que subsistia em relação à nossa amizade, pois decerto, mesmo depois de ter descoberto sobre a minha orientação sexual e de ter ouvido da Brenda o que sinto por ele, acreditou que eu teria o mínimo de dignidade para não ultrapassar esse sinal, essa tênue linha que separa o amor da amizade.
– O que está pretendendo, Kadu?
Matheus repete a sua pergunta, contudo, dessa vez, o tom de sua voz está firme, seguro, e seu semblante, impassível, não traindo qualquer emoção.
– Eu já te disse – respondo ao tempo que retomo o fôlego – Eu não sei o que deu em mim. Eu não sei o que deu em mim. Não sei porque desse beijo, ora bolas. O que mais você quer que eu diga? – interrogo-o buscando usar a impaciência como um escudo eficaz e intransponível.
– Para de repetir isso, Kadu – Matheus me interrompe sem pestanejar – Até porque a pergunta que fiz não foi em relação a esse beijo – sua respiração está pesada e seu semblante continua impenetrável – Por que começar a gastar energia em algo que sabe que não vai dar em nada?
– Meu Deus, Matheus – jogo as mãos para o alto e reviro os olhos. A melhor defesa é o ataque, sempre – Por que toda essa tempestade por causa de um beijo? Pra quem já trepou com um outro cara você está me saindo muito puritano, aliás, me diga, como ele te conquistou? Como ele te convenceu a levá-lo para cama, justo você, o pegador, o terror das meninas…
Matheus, agora, está me olhando aparentemente de um modo tranquilo, quase bondoso, e isso me assusta, porém, sem aviso prévio, seu olhar se transforma, tornando-se novamente sombrio, como se quisesse atravessar-me a alma.
– Caralho, eu já te falei que minha pergunta não tem nada a ver com a porra desse beijo. Até quando você pretende ficar nesse joguinho, Kadu? – ele me confronta com as mãos apoiadas na cintura e eu não consigo sustentar o seu olhar.
– Não sei o que deu em mim – torno a dizer ao passo que assumo uma postura cabisbaixa – Não sei o que deu em mim, por favor, acredite… Estou confuso, a Maria Clara está lá no apartamento, ela saiu com o Gustavo de manhã, depois sumiu e não apareceu para a prova final do vestido de noiva, até que reapareceu e agora está trancada no quarto e não quer falar com ninguém…
– Não!
Matheus dispara enérgico, me assustando. De pronto ergo a cabeça.
– Não vai usar essa bengala. Nem qualquer outra. Não aqui. Não agora. Chega Kadu.
– Eu já me desculpei…
Faço menção em me mover, sair correndo, voltar como um trem bala para dentro do apartamento, mas Matheus me impede, segurando firme o meu braço.
– Você começou e então vai terminar – ele me fita. O cenho cerrado abarrotado de austeridade – Não vou deixar você se esconder atrás dessa desculpa, como faz com qualquer outra coisa que lhe convém, para evitar assumir suas responsabilidades e enxergar a realidade que está à sua volta.
Ele dá um passo em minha direção, diminuindo a distância delimitada por seu braço esticado. A pressão de seus dedos sobre a minha pele se acentua.
– Isso não vai mais funcionar, Kadu.
– Por acaso você está chamando a preocupação com a minha irmã de “desculpa”? – reajo mais que indignado – Quantas e quantas vezes eu desabafei contigo sobre a Maria Clara, sobre a minha suspeita a respeito da infelicidade que ela carrega dentro desse noivado? Você está sendo um cretino.
Tento me desvencilhar, mas a força derivada da estrutura física de Matheus, somada à sua raiva por estar perdendo terreno dentro dessa discussão, é mais forte do que eu consigo ser, e agora, com as suas duas mãos segurando cada um dos meus braços, ele definitivamente me impede de ir adiante.
Estamos próximos mais uma vez, como quando nos beijamos, mas a tensão que irradia de ambos remete à impressão de que estamos completamente afastados, que um abismo colossal se interpôs entre nós dois.
– Você vive criticando a sua mãe e a sua irmã, Filipa, mas na hora que precisa, sabe ser tão manipulador e covarde quanto elas. O que não me admira. É lógico que o espinheiro não produz maçãs e nem a macieira espinhos, e o fruto, sempre, sempre não cai muito longe da árvore – Matheus põe fim à sua repreensão lançando-me uma olhar absorto e amargurado.
– Não estou acreditando no que acabei de ouvir – meneio a cabeça revoltado – Você, Matheus, além de cretino, também é injusto ao afirmar que eu estou usando uma bengala, que estou sendo um covarde, que eu estou agindo como um moleque…
– Mas é o que você está fazendo…
– Não. Não estou. E você não tem competência para afirmar isso já que há tempos deixou de ser meu amigo, Matheus – afirmo entre os dentes – Há tempos você não sabe o que se passa comigo.
– Por que você não deixa caralho!
Num gesto muito rápido, que chega a desnivelar um pouco os meus óculos, Matheus inverte nossas posições, me forçando a encostar à parede, que até então estava atrás dele, e daí solta os meus braços, também se utilizando de uma destreza ímpar, para, finalmente, se debruçar sobre mim, deixando apenas que poucos centímetros nos separem.
– Eu sou seu amigo, Kadu – ele não desvia um segundo sequer o seu olhar carregado de impetuosidade – Há dez anos que nos conhecemos e eu tenho sido o seu amigo sempre, dividindo com você as minhas dúvidas, as minhas aventuras, a minha vida…
– Não divide, não.
– Agora você… – ele dá de ombros, ignorando por completo minha provocação enquanto aperta os lábios com força – Tem me tratado como um retardado…
– Eu não sei do que você está falando. Me deixa sair – peço com a voz um tanto embargada, buscando omitir a ansiedade e o desespero que começam a tomar conta de mim.
– Você é fraco, Kadu. Fraco e covarde, sim.
– Não. Não sou – eu o encaro e dessa vez determinado a pagar o preço que for para acabar logo com toda essa merda – Você acabou de me chamar de manipulador, mas quem é que está manipulando quem agora? Você está tentando me fazer assumir o papel de vilão dentro dessa história, mas esquece de enxergar o próprio umbigo.
Matheus, de súbito, dá um soco na altura da parede acima da minha cabeça e isso me assusta. Engulo em seco.
– Hoje de manhã, Kadu, a Brenda contou para você que eu venho te protegendo dos otários do colégio, te poupando da perseguição da qual você ia ser vítima com toda certeza, e eu tentei confirmar isso lá, na sala das carteiras quebradas, tentei te mostrar o lado coerente dessa questão, tentei me defender, mas o que eu recebi em troca? Uma acusação de traidor.
Ele enfatiza suas últimas palavras com certo desprezo e também descrença.
– Mas se pararmos pra colocar os pingos nos “is”, quem é que vem falseando algumas situações? Escondendo sentimentos? Fingindo ser uma coisa que não é ao apostar todas as fichas na certeza de que os outros ao seu redor são idiotas o suficiente para não perceber o que de fato está acontecendo? E eu não estou falando sobre a ajuda que você deu à Brenda…
Respiro fundo e deixo os ombros caírem. Matheus está me olhando, me medindo. Ele está aguardando uma confissão ou algo parecido, sem sombra de dúvidas, mas vai se ferrar, pois eu não irei me assumir. Não aqui, ainda mais sob essa pressão. Agora é uma questão de honra. Quem ele pensa que eu sou? Será a minha palavra contra a da Brenda.
– A melhor defesa é o ataque, não é mesmo? – pondero um tanto sarcástico – Você está aí, posando de macho alfa, se achando coberto de razão, apontando o dedo para mim, me acusando de ser desleal com a nossa amizade…
Matheus se afasta (graças aos céus) e daí começa a andar de um lado para o outro no largo espaço do patamar que estamos ocupando.
– Você se vangloria de ser sincero, Matheus… – ajeito os óculos sobre os olhos – De compartilhar tudo comigo, de ser o meu grande amigo, mas precisa reconhecer, sim, que agiu pelas minhas costas, me fazendo parecer tão incapaz e frouxo diante de cada um daqueles Neandertais que acreditam que ser macho é enfiar o pau, que tem entre as pernas, dentro de qualquer buraco, e andar entre grupos, como uma alcateia alucinada…
Respiro fundo, recuperando o fôlego enquanto Matheus segue a sua jornada.
– E o que dizer do seu segredinho que você só me confessou para tentar salvar sua pele? O poder faz o lobo parecer maior do que é e tu, Matheus, é como todos os outros. Esfrega na cara da sociedade que é um pegador, que vive pulando de galho em galho, trocando de namoradinhas como se estivesse trocando de cueca, mas por trás, à surdina, prefere alguém do mesmo sexo para se divertir de verdade.
Matheus estaca à minha frente. Tento, de pronto, encontrar em sua fisionomia alguma emoção, constatar o quão consegui atingi-lo, entretanto me deparo com nada menos que inexpressividade, frieza…
– Eu tentei, sim, Kadu, por várias vezes te contar sobre esse lance que aconteceu comigo e esse outro cara – ele se acerca de mim a ponto de ficarmos frente a frente novamente – Da mesma forma como tentei um zilhão de vezes saber o que estava acontecendo contigo, o que estava te incomodando, mas você se fechava mais e mais, recuando quando eu acreditava que estaria prestes a te libertar dessa prisão que construiu para si mesmo, se contentando com joguinhos, artifícios, como esse que vem fazendo desde o instante em que me beijou, ou então como aquele, quando colocou minha foto na tela de bloqueio do seu celular tentando me convencer de que estava apenas homenageando a nossa amizade…
Engulo em seco mais uma vez ao passo que sou tomado por uma rápida vertigem ao mesmo tempo em que refreio uma vontade absurda de gritar. Matheus apenas balança a cabeça, sem pressa, para em seguida voltar a me encarar sustentando o mesmo tom de desafio, mas se ele pensa que vai ouvir alguma coisa de mim, repito, está completamente enganado. Minha paixão não é tão ordinária a esse ponto.
– Você realmente achou que eu não ia perceber nada? – Matheus deixa escapar um sorriso no canto dos lábios e esse gesto de suposta vitória me consome – Caralho. Nós crescemos juntos, jogamos games, íamos para aquelas festinhas ridículas aonde criticávamos tudo e todos, e na escola sentamos um do lado do outro. Nós somos como irmãos e você, Kadu, realmente achou que eu não perceberia alguma mudança que poderia acontecer?
Baixo os olhos. Não posso, ao menos nesse instante, sustentar essa acareação. Minha muralha… Minha muralha… Minha muralha… Eu não fui tão transparente assim…
Uma mão recai sobre o meu ombro esquerdo e esse toque faz com que meu coração quase salte pela boca.
– Seus olhares, Kadu. Sua postura. Suas ações. Suas reações. Nada me escapou – ouço Matheus pigarrear – E quando você se afastou por um tempo, sem explicação? – sua voz parece, agora, mais branda – Por uma ironia do destino, minhas dúvidas se dissiparam de vez quando fui ao seu apartamento, numa das raras ocasiões em que me foi permitido ir até lá. Era um dia antes do meu aniversário, lembra? A sua mãe não estava, claro, e a Sônia me deixou entrar e quando cheguei ao seu quarto você não conseguiu esconder a cara de espanto por me ver… Eu acreditei que tinha te assustado com a minha presença não anunciada, mas logo em seguida, quando você me deixou sozinho ao ouvir a voz da sua mãe entrando no apartamento, tratando de correr para inventar qualquer coisa a fim de justificar do porquê de eu estar ali antes que a dona Marcela colocasse o mundo abaixo, eu acabei mexendo no seu computador…
Ergo os olhos pausadamente até encontrar os de Matheus para fitá-lo, fazendo questão de demonstrar toda a minha indignação diante dessa sua confissão.
– Calma. Eu me sentei diante da tela, mas de zoeira, sem qualquer intenção de vasculhar a sua privacidade. Eu só estava esperando você voltar com a sentença da sua mãe, até porque, como eu poderia escapar do apartamento se não fosse pela porta da frente? Mas daí alguém no Skype, que você tinha deixado aberto, te enviou uma mensagem, te cumprimentando e te chamando de gatinho… Juro que pensei que fosse algum colega seu na sacanagem e então resolvi responder, me fazendo passar por você…
– Não tinha o direito, Matheus… – mal consigo balbuciar.
– O tal cara me encheu de perguntas, querendo confirmar um encontro, indagando desesperadamente se iria rolar sexo, me dizendo qual a posição que ele mais curtia e então tentou iniciar um conversa com a cam, dizendo que ia mostrar o tamanho do pau…
– Por que não me contou? – questiono, entre incrédulo, irritado e principalmente humilhado – Por que me deixou fazer papel de idiota? Por que não me deu, ao menos, a oportunidade de me defender?
– Pra que, Kadu? – Matheus dá de ombros – Preferi apagar aquele pedaço da conversa. Eu não ia mesmo me desgastar, não ia perder meu tempo porque já sabia que você ia desviar do assunto, ia fugir, ia até mesmo me expulsar do seu quarto, do apartamento, mesmo sua mãe tendo tolerado, naquele dia, minha presença por lá…
– Deixe-me passar, por favor.
Eu peço, reunindo forças a fim de tentar parecer o mais calmo possível. Porém Matheus não se move. E começa a me encarar, sabe-se lá por que, com extrema compaixão, exercendo uma força física e espiritual tamanha, que me deixa ainda mais revoltado e envergonhado. Reduzindo-me a um pedaço de merda. Lançando-me a um rebaixamento moral e com isso validando a certeza de que não valho nada, que sou um medíocre diante dessa sua postura ridiculamente superior.
-Você não é melhor do que eu sabia? – reajo, finalmente, enquanto junto o que resta da minha dignidade – Pensa que sair e trepar com essas suas namoradinhas te faz mais homem do que eu sou?
– Caralho, Kadu, de novo isso? Você não prestou atenção em nada do que conversarmos?
Matheus revira os olhos, coloca as mãos na cintura, gira em torno de si mesmo até retornar à posição de frente para mim deixando as mãos livre novamente.
– A questão aqui não sou eu, ou o meu comportamento. Vamos aproveitar essa chance e tentar te salvar dessa bolha, dessa concha que você decidiu colocar sua vida…
– E quem disse que eu preciso da sua ajuda? – rebato, balançando a cabeça num tom agressivo, sentindo todos os músculos do corpo tremer – Dispenso a sua prepotência, Matheus.
– Você já sabe, Kadu, o motivo do fim do meu namoro com a Brenda.
Mal termino de ouvir a afirmação vomitada por Matheus, sim, afirmação, pois não restam dúvidas de que isso não foi uma pergunta, e de pronto me sinto, por alguns instantes, sem qualquer referência espacial ou temporal até que consigo recuperar a noção da minha existência, e, ato contínuo, cerro os lábios para não lançar uma contrarresposta que poderá ser voltar para mim como um boomerang amaldiçoado.
-Porra, Kadu, não finja que não sabe o que estou dizendo.
Silêncio. Silêncio. Vou permanecer em silêncio. Convenço-me ao passo que assumo novamente uma postura cabisbaixa. Agora tenho a certeza de que Matheus sabe que eu gosto dele. Brenda realmente não mentiu.
– Kadu…
Ouço a voz de Matheus e ela não parece real…
Um ser cristalizada…
É isso. Uma voz cristalizada.
– Saiba que não me arrependo da decisão que tomei Kadu. Entre a nossa amizade e qualquer uma dessas garotas, não vou desistir de você.
Do que Matheus está falando? Então a Brenda não lhe contou o que sinto por ele?
Ergo a cabeça. Matheus está me encarando firme, com um olhar brilhante, expressivo e dominador. Um olhar quase feroz.
– Gay!- Matheus dispara de repente, calmo, portando uma placidez invejável – Gay. Você é gay, Kadu,. Pronto. Estou respondendo o que você me perguntou lá, na sala das carteiras quebradas. E daí? Não vou negar que fiquei chocado assim que descobri, mas depois, na boa, nada mudou. Até porque não tinha nada pra mudar.
Inspiro e expiro à medida que sinto uma crise de histeria começar a tomar conta de mim. A subir como um raio dos pulmões para o cérebro…
– Eu tentei Kadu. Juro que eu tentei te falar que já sabia, mas você, cara, você não me permitiu… Você…
Oi? O que Matheus está fazendo? Que tortura é essa? Aonde ele quer chegar?
– Vá se fuder, Matheus – reajo, mas agora tomado de um sentimento de cólera quase incontrolável – Você é igualzinho aos seus coleguinhas do CGAM. Tão hipócrita quanto cada um deles. Você, Matheus, vai ser mais um que vai arranjar um casamento de fachada para satisfazer a sociedade. Será um pai exemplar, um marido ideal, mas por trás do pano vai buscar aventuras com outros homens ao mesmo tempo que apontará o dedo para todos os outros que não terão medo de se assumir.
– Tu tá surtando, caralho?
– Estou tendo uma manhã difícil. A Filipa me fazendo de cúmplice para rastrear o noivo, a Maria Clara trancada no quarto, e só Deus sabe o motivo, e a maluca da sua ex namoradinha, Matheus, me pressionando com a ideia fixa de que precisa ter você de volta…
Matheus me puxa forte pelo braço. Sinto sua respiração ofegante. Meus óculos voltam a ficar mais desnivelados.
– Quer falar de vida difícil, Kadu? É isso? – os músculos de seu rosto se movem rapidamente – Pois o que me diz de ir dormir com a notícia de que vai ser obrigado a conviver ainda mais com um pai que te odeia? Que os seus padrinhos, que te criam, por pena, vão te deixar sob os cuidados desse homem que enfia a cara na bebida para sobreviver dentro do seu próprio inferno?
Matheus inspira forte. As veias do seu pescoço parecem que vão saltar.
– Você vive reclamando da dona Marcela, mas sabe o que é ser abandonado pela própria mãe? Viver de favor na casa de seus padrinhos e se submeter a uma convivência sem sentido com um pai que prefere ver o demônio a te ter na frente dele, mas que te tolera por causa da ajuda financeira que recebe, já que minha irmã e meu irmão não têm uma renda suficiente para sustentar a casa com certa dignidade?
Engulo em seco. Não vou dançar essa música. Não vou. Não vou sentir pena de você Matheus. Não vou.
– Por favor, Kadu, quando nós vamos parar de fingir?
Mais um instante de silêncio, frágil, incômodo, desmorona sobre nós dois, como se estivesse demarcando o campo de batalha de dois inimigos tomados pelo cansaço, pela melancolia e pelo orgulho. Por fim, Matheus me solta e em seguida se afasta até se sentar nos últimos degraus de descida da porta de incêndio, ao passo que tira a mochila das costas para depositá-la ao seu lado.
– Esse teatrinho, essa sua postura ingênua, achando que o mundo à sua volta é o que você quer que ele seja, já cansou, Kadu. Por que não começa a viver uma vida de verdade além daquela proporcionada pelo ar que sai dos seus pulmões?
Respiro fundo, bem fundo ao tempo que empurro os óculos até ajeitá-los sobre o rosto e ato contínuo caminho até onde Matheus está sentado,
– Não ouse me julgar – disparo entre os dentes – Nem você e nem ninguém tem esse direito, ouviu bem? – remato em alto e bom som.
Depositando toda a determinação que possuo sobre as engrenagens do meu corpo, me preparo para saltar o degrau que Matheus está ocupando, contudo, ao iniciar meu propósito, sou impedido por sua mão, que segura forte, firme, o meu braço esquerdo.
– Sai da minha frente, porque se não sair eu te atropelo.
Ameaço sem pestanejar, não deixando de encarar Matheus um instante sequer enquanto ele se levanta tão rápido quanto pode, porém, sem soltar o meu braço, chegando a me puxar um pouco para frente. Apesar da minha intimidação, Matheus se mostra calmo, por sinal mais calmo do que nunca, o que me deixa ainda mais irritadiço.
– O que foi esse beijo que você meu deu, Kadu?
– Já te disse que foi uma ação impensada. Estou cansado, confuso, preocupado…
Não vou deixar Matheus sair vitorioso dessa batalha. Não mesmo.
– Melhor – pontuo sarcástico – Vou usar o mesmo argumento que você usou lá na sala das carteiras quebradas quando me confessou que tinha ficado com um carinha: foi para satisfazer uma curiosidade e não vi nada demais.
– Eu desisto.
Matheus anuncia após liberar o meu braço, deixando seus ombros caírem enquanto se afasta, ficando de costas para mim.
– Se você, depois disso tudo que conversamos, ainda prefere continuar mergulhado nesse mundo de Alice, meu amigo, não posso fazer nada.
Ele se volta e a expressão do seu olhar, transbordando indulgência me parte ao meio e eu o odeio ainda mais por isso. Por que está agindo dessa maneira, tão complacente? Por que está conseguindo colocar nossa amizade acima de tudo? Acima de todos os preconceitos que ele deveria carregar, senão pela influência mórbida dos seus amiguinhos Neandertais, ao menos por sua condição heterossexual?
É o que deveria acontecer. Matheus deveria se mostrar frustrado, atingido em cheio em seu orgulho pela traição de ter mantido ao seu lado um amigo que escondera sua real natureza. Que não correspondeu à altura a confiança que permeia uma verdadeira relação de amizade, ainda mais uma amizade que já perdura por dez anos…
Como e quando alcançou essa serenidade para simplesmente deixar de lado, inclusive, o apoio que dei à Brenda para tentar reatar o namoro entre eles?
Essa dignidade está me deixando louco, sem chão, sem saber como reagir. Matheus, eu não posso acreditar, não é tão maduro assim. Tão centrado. Tão ponderado…
– É você quem vai terminar sozinho, Kadu…
A estabilidade de sua voz me sequestra de forma violenta das paredes seguras de minha mente, trazendo-me de volta à realidade sob a iluminação destas lâmpadas fluorescentes no largo patamar que antecede os degraus intermediários da escadaria para o nono andar da saída de incêndio.
– Um ser humano amargurado, sempre buscando brigar com alguém para tentar, inutilmente, apaziguar a frustração que carregará dentro do seu peito. Aliás, você já está fazendo isso aqui e agora.
Não aguento mais. Parto pra cima de Matheus sem pensar e com o empurrão inesperado que dou, ele acaba por se desequilibrar, indo de encontro à parede atrás de si, sem qualquer chance de defesa, encarando-me com um semblante abarrotado de surpresa e desapontamento à medida que tenta manter-se de pé.
– Você ficou maluco, Kadu?
– Eu não tenho medo de você…
– Nos nunca brigamos desse jeito e hoje já é a segunda vez…
Não o deixo continuar e antes mesmo de Matheus tentar se desvencilhar do meu segundo ataque, eu já estou caindo por cima de seus ombros, fazendo com que nós dois nos desequilibremos, despencando no chão, junto com meus óculos, que voam a quilômetros de distância, à medida que ele, o meu ex-melhor amigo, continua tentando me afastar ao passo que busca encontrar dentro dos meus olhos uma explicação para essa minha reação violenta. Eu sigo esmurrando-o com golpes incertos enquanto sinto lágrimas encharcarem o meu rosto e meus joelhos doer devido o choque contra o chão.
– Para Kadu. Para.
Matheus pede ofegante, agarrando, enfim, minhas mãos no intuito de tentar afastá-las de seu rosto, porem, minha raiva é imensa e eu, então, consigo libertá-las para cravar minhas unhas nas suas bochechas, arranhando-o e socando-o à medida que ele continua tentando me afastar até que consegue fazer com que minhas mãos voem no ar, porém volto ao ataque, e o atinjo na face com o punho fechado.
O semblante de Matheus de imediato se modifica, deixando transparecer a dor e a raiva que parecem ter explodido dentro de si como uma sequência de fogos de artifícios.
Em um exímio e inesperado geste de autodefesa, ele consegue colocar suas mãos sob o meu corpo ao mesmo tempo que projeta os meus cotovelos para fora, me empurrando, sem demora e com força, para longe de si, fazendo-me voar até cair com costas no chão. No mesmo instante sinto um pouco de dor nas costelas, mas, ainda assim, e com o rosto crivado por essa dor, consigo vê-lo se levantar.
– Escuta Kadu – ele inicia num de voz arquejante – Eu não vou dançar essa música, ok? Somos amigos e quando você estiver mais calmo, me procura para a gente poder conversar de uma maneira civilizada.
Balanço a cabeça em negativa ao passo que tento me levantar, mas a dor nas costelas ainda não passou. Matheus estende uma das mãos para mim e eu a renego, claro, e então ele dá de ombros e a recolhe, começando a limpar o que eu acho ser poeira de cima de sua roupa.
– Minha mãe está coberta de razão quando diz que você não passa de um usurpador, se aproveitando de um lugar que não é seu…
Disparo sem ponderar. Preciso feri-lo de alguma maneira.
Matheus cessa o seu movimento de limpeza sobre a roupa e me encara, gélido, com uma expressão carregada de angústia, desgosto, e o pior de tudo, de piedade, a porra da piedade mesclada às lágrimas que cintilam em seus olhos…
Ele não reage e também nada responde. Apenas se mantém firme. Uma figura aparentemente inabalável enquanto fecho os olhos.
Merda. Merda. Merda. Eu deveria estar exultante, soltando fogos de artifícios diante da vitória que conquistei nos instantes finais dessa batalha. Mas não. Estou me sentindo o pior ser humano da face da Terra, partido ao meio, completamente arrependido com o que acabei de dizer, mas vou corrigir isso, nem que seja tão somente para equipar-me a Matheus em hombridade e nobreza…
Ouço passos, fortes, rápidos, descendo as escadas. Abro os olhos. Matheus já não está mais aqui e então, em questão de segundos, uma dor, não física, invade o meu peito, arrebentando-o, não me deixando alternativa senão a de permitir que o choro fuja de vez da minha garganta à medida que meu corpo todo estremece.
– Eu te amo, Matheus – balbucio entre soluços depois de voltar a fechar os olhos – Eu te amo. Eu sei que te amo. Perdoa-me. Eu vou conseguir deixar de ser esse idiota, esse imaturo… Eu vou conseguir…
Abro os olhos e mais uma vez tento me levantar. Preciso. Mas a dor das costelas ainda incomoda.
Inspiro profundamente.
As lágrimas continuam a fazer o seu trabalho ao tempo que volto a me esforçar para ficar de pé, à medida que vou amargando a sensação de que estou beirando a decrepitude, que estou drenado de sentimentos…
A realidade é dolorosa demais.
EU TE AMO, MATHEUS!
Shawn Mendes – In My Blood
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