… Porém há uma justiça

Que ocultamente trabalha

Pelo bem dos inocentes:

Não cobra nem uma palha,

Na pista de um assassino demora…

Porém não falha,

 

 

É a justiça que disse

O Messias Prometido

Que quem com ferro ferisse,

Para que fosse punido,

Com aquele mesmo ferro

Também seria ferido      ¥

 

 

Fazenda Olho d’Água

Laranjeiras, Minas Gerais

1972…

 

João, Miguel, Antunes e Diamante tinham sido escolhidos para acompanhar o coronel Josué Ferreira na viagem que ele faria aos municípios vizinhos para reforçar o seu curral eleitoral.

Já havia algum tempo que estavam em frente ao portentoso sobrado que servia como a casa-sede da fazenda Olho d’Água.

Em mangas de camisa, e quebrando seus chapéus de couro para frente do rosto, a fim de tapar a claridade excessiva daquele sol forte que já fazia doer a pele antes mesmo das 8h, permanecia, os quatro, imóveis e num silêncio absoluto, tendo a atenção concentrada nos olhos e nos dedos que percorriam seus enormes rifles e nas armas que carregavam em suas cinturas.

Ostentavam uma severidade impassível, como se estivessem a decidir o destino do mundo e da humanidade, contrastando, de maneira quase surreal, com a serenidade e a alegria do jardim colorido que ornamentava em perfeita simetria a frente do sobrado, onde se podia encontrar diversas espécies da flora brasileira, trazidas, em sua maioria, ilegalmente para a fazenda Olho d’Água por iniciativa (e capricho) da finada matriarca, dona Eva Germano Crespi.

Aparecendo à porta da casa-sede, Josué Ferreira, um tanto inquieto, constatou que o calor que o sol já emanava àquela manhã mal começada de fim de verão, prenunciava um dia severo pela frente. No céu azul, apenas uma nuvem ousava deslizar, silenciosa; nem mesmo o vento, apesar de monótono e cadente, amainava a sensação de abafamento.

Com os ombros retos e o olhar sempre firme, detendo uma postura extremamente altiva, desceu os degraus que o levava ao estreito caminho de pedras que separava os jardins, arrastando atrás de si, como uma sombra, a esposa, dona Candinha.

Sem se virar, despediu-se dela com um aceno quase imperceptível feito com as costas de uma das mãos, antes mesmo de alcançar os pedriscos da diminuta estrada, partindo logo em seguida na direção do cavalo que já estava cuidadosamente selado e à sua espera.

Terminado de montar o animal, mantendo as costas eretas, os ombros, quadris e calcanhares devidamente alinhados, como um exímio cavaleiro, Josué Ferreira acenou novamente para a esposa, dessa vez se dando ao trabalho de contemplá-la, porém de maneira tão fugaz, assim como o gesto feito com a ponta do seu chapéu, que deixou a dúvida em dona Candinha se era ela realmente quem estaria no seu raio de visão… ou nos seus pensamentos.

Parada sobre um dos degraus diante do sobrado, ela respondeu com um sorriso amargo, contrafeito, enquanto uma das mãos lhe cobria os olhos a fim de protegê-los da claridade intensa do sol daquela manhã.

 

*    *    *

 

O sol escaldante e perturbador sobre as cabeças de Josué Ferreira e seus quatro capangas parecia fazer as horas se arrastarem cada vez mais enquanto atravessavam a estrada poeirenta para chegar ao município de São José.

Apesar dos anos passados, aquele extenso pedaço de chão permanecia o mesmo: convenientemente sem qualquer sinal do progresso; a possibilidade de se cruzar com um tatu, um tamanduá, uma anta ou até mesmo uma jiboia, era quase certa durante aquela peregrinação que podia durar até dois dias e uma noite inteira a fim de alcançar o destino traçado, e também era preciso lidar com o vento do cerrado, que, vez em quando, erguia-se, levantando a terra batida, desafiando os viajantes a seguir em frente com suas vistas parcialmente estorvadas.

O município de São José era o mais afastado de todos os outros que estavam sob o domínio patriarcal e político do coronel Josué Ferreira, mas ainda assim ele decidira iniciar por lá sua campanha para as próximas eleições, optando por deixar Vassouras, o mais próximo deles, e onde residia sua morena Adalina, em último lugar.

A saudade, de certo, só iria aumentar, afinal, já havia meses que Josué não a tinha em seus braços, não sentia o seu calor, o seu cheiro, o seu carinho intenso, mas a árdua empreitada de estreitar as rédeas do seu curral eleitoral, naquele momento, era mais que prioridade. O rastro da única derrota política que o nome de sua família tinha provado há quase trinta anos precisava ser deixado cada vez mais para trás.

Definitivamente esquecido.

O sabor daquela desonra era algo que ele jurara nunca mais sentir, e todo o prestígio e poder que possuía não eram suficientes se não colocados em prática: era preciso ter votos, ganhar as eleições, independente do preço a pagar e das ações a serem tomadas.

E no mais, até que encontrasse o repouso urgente e necessário nos braços de Adalina, rapariga nesse mundo de Deus é que não faltava para abrandar a carência de um cheiro quando invadisse suas entranhas.

 

*    *    *

 

A viagem continuava e o sol já estava a pino quando o coronel, em mangas de camisa, decidiu refrear seu cavalo para desafogar-se da vontade absurda de esvaziar a bexiga.

– Preciso mijar – anunciou, apeando do animal, não sem antes conferir, junto aos seus capangas, a paisagem no entorno até constatar que naquele pedaço de estrada estéril nenhum sinal de vida humana, viva ou morta, se fazia presente.

De costas, em pé, um pouco afastado de seu grupo e com as pernas semiabertas, Josué apreciava o extenso chapadão à sua frente, coberto pela vegetação de algumas pequenas árvores retorcidas, dispersas em meio a um tapete de gramíneas, onde um silêncio absoluto reinava, lhe permitindo ouvir sem dificuldade qualquer coisa que pudesse se aproximar, ou agradável, ou indesejada ou até mesmo perigosa, inclusive o som ensurdecedor dos dois tiros disparados bem próximo de onde estava.

Apesar de um tanto sobressaltado, Josué Ferreira, sem gestos bruscos, fechou a braguilha de sua calça e permaneceu imóvel por alguns segundos até decidir se virar bem devagar, encontrando de pronto, se desdobrando à sua frente, um cenário sem hesitações, imprevisto, e por que não surreal: dois de seus homens caídos ao chão, de olhos vidrados e um fio de sangue empastando-lhes os cabelos devido o tiro certeiro que cada um deles havia recebido no meio de suas testas.

Encomendar uma alma para o tinhoso, ajudar a limpar a face do mundo de ervas daninha, fazia parte da vida, mas nos seus domínios, nas suas terras, isso só acontecia sob sua permissão, e Diamante e Antunes eram cabras fiéis, leais o suficiente para que nada de mal lhes acontecesse enquanto estivessem a seu serviço.

Precisava de respostas para o que tinha se sucedido e não demorou muito com os olhos sobre os cadáveres, erguendo o rosto, passando a encarar com uma inabalável solidez os outros dois jagunços que permaneciam ainda montados em seus respectivos cavalos, ousando apontar na sua direção, sabia-se lá porque, os rifles que carregavam.

– Creio que esteja acontecendo alguma coisa de errado por aqui, não acham? – indagou Josué Ferreira numa calma aparente, sem mudar qualquer linha de sua fisionomia, não demonstrando a mínima alteração em seu comportamento, e carregando, como sempre, a autoridade no tom de sua voz.

– O senhor está bastante enganado, coronel…

Retrucou um dos capangas apontando com um gesto ligeiro de cabeça os dois corpos que jaziam inertes ao chão.

– A única coisa errada por aqui, se é que podemos considerar dessa maneira, é o preço que estes dois homens tiveram que pagar para que pudéssemos acertar as contas com o senhor. Mas também se for pra julgar a vida que esses infelizes tiveram…

O jagunço meneou a cabeça para o lado, sem deixar de fixar o patrão, e atirou o cuspe que saiu arrastado de sua boca na direção do solo, abaixo dos seus pés, limpando em seguida, com as costas da mão, o resquício da saliva que ainda escorria.

– Eles não morreram tão inocentes assim, não é mesmo, coronel Josué Ferreira? – continuou – De quantos homens eles não tiraram a vida cumprindo suas ordens? De quantos homens nós não ceifamos as miseráveis vidas que eles levavam para atender os seus desmandos?

– Pelo amor de Deus, Miguel, ainda temos como ir embora daqui sem precisarmos de nada disso… – manifestou, de repente, o segundo capanga, com a voz trêmula e um suor excessivo lhe brotando das mãos.

– Cala a boca, João – ordenou o outro, furioso, continuando a manter o patrão sob sua guarda e mira – Já discutimos isso diversas vezes e não vai ser agora que iremos dar pra atrás.

Josué Ferreira não conseguia entender o que estava acontecendo. Por que cargas d’água seus subordinados estavam agindo daquela forma?…

– Ajoelhe-se!

Ordenou Miguel, impassível, descendo de seu cavalo, mas sem pressa, afrontando o coronel com veemência, ordenando-lhe, ao passo em que ia se aproximando, que se desfizesse do armamento que trazia em seu vestuário.

– O que significa essa bestagem? – questionou Josué Ferreira, por fim e entre os dentes, sem renunciar a habitual postura de comando, mantendo os olhos semicerrados devido à forte claridade do sol em seu rosto enquanto ia jogando fora suas armas.

Era inadmissível estar recebendo uma ordem e ainda mais daquela natureza.

Precisava de respostas.

– Eu mandei se ajoelhar cachorro – bradou Miguel encostando o cano do rifle com extrema violência contra a testa do coronel.

Sem alternativa, ao menos não de imediato, Josué Ferreira começou a se abaixar, e ao mesmo tempo em que se acercava do chão, seu olhar transbordando contrariedade se fixava sobre a face cada vez mais transfigurada de seu verdugo.

– Nem mesmo assim, não é, coronel? – constatou Miguel num misto de ironia e pesar – Nem mesmo de joelhos o orgulho deixa de brilhar nos seus olhos. Vamos ver até onde vai esta petulância…

De súbito, Josué Ferreira sentiu o peso da mão do capanga aterrissar com violência sobre o seu rosto.

Um instante de silêncio de morte reinou defronte aquele cerrado enquanto o poderoso Coronel, subjugado, sentia o rubor tomar-lhe a face.

– Abaixe esses olhos filho de uma égua.

Balbuciou Miguel, escarrando sobre o lado esquerdo no rosto do homem ajoelhado à sua frente, forçando ainda mais o cano da arma sobre sua pele, quase lhe trespassando os ossos do crânio.

– Por esse sol que nos alumia, juro que hoje será seu último dia nesse mundo dos homens, coronel. Hoje você vai prestar contas de todos os seus pecados a Deus, ou ao diabo, mas de um desses pecados você vai prestar conta é aqui mesmo, diante de mim e do meu irmão…

 

¥    trecho do Cordel “A vingança de um inocente”, de João FIrmino Cabral 

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CARCARÁ – OTTO

 

 

 

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    • Cleber, muito obrigado! Espero poder ter cativado um pouco do seu coração com esse primeiro capítulo. GRANDE abraço.

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