Um grito atravessou o sono de Padre Manuel, fazendo-o acordar sobressaltado, com o coração batendo acelerado e um vazio gelado na boca do estômago. Sem titubear, abriu os olhos e se deparou com uma vasta escuridão, e de pronto meneou a cabeça, tentando desesperadamente reconhecer o lugar onde se encontrava enquanto apalpava a superfície sobre a qual estava deitado.

A imagem um tanto embaciada _ e efêmera _ de Antero surgindo à soleira da porta da casa paroquial, sustentando um sorriso de deboche e também de vitória, e um brilho nos olhos demonstrando toda a raiva, mágoa e rancor que havia cultivado nos últimos doze anos, fez com que o velho sacerdote entendesse, por fim, que havia acabado de sair de um sonho ruim e então respirou fundo, o máximo que podia no afã de tentar controlar os seus batimentos cardíacos até que, aos poucos, começou a sentir a textura do lençol e do magro colchão ao passo em que assistia as dimensões da cela tomando forma sob o céu noturno que a diminuta janela enquadrava à sua esquerda, no alto da parede lateral.

– Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo.

Padre Manuel fez o sinal da cruz e esticou o braço para o lado, na direção da cabeceira, tateando às cegas sobre a mesinha de ferro e madeira que jazia por ali, não demorando a encontrar um castiçal e uma caixinha de fósforo depositados a um canto. Após sentar-se à cama, ainda sentindo os resquícios da maneira abrupta do desenlace de seu sono, acendeu a vela com alguma dificuldade e então se levantou, já buscando o lampião à querosene pregado à parede, próximo à porta, tratando de afogueá-lo para em seguida devolver a peça de cera ao castiçal e, por conseguinte, ambos à mesinha de cabeceira.

Com a armação de metal lhe servindo como “lanterna”, empunhada à frente do seu rosto, atravessou num só fôlego o batente da porta do quarto e também todo o interior da casa paroquial, não diminuindo o ritmo acelerado de seus passos nem mesmo quando cruzou a pequena alameda que levava à Capela. Os anjos e santos da igreja de Areias, sob a difusa luz do luar que entrava pelas poucas janelas do santuário, pareciam observar padre Manuel com olhares enigmáticos e sombrios à medida que ele caminhava, a passos largos, na direção do altar com um semblante transtornado pelo pavor após invadir o lugar como se fosse um completo estranho. 

Por que Fabiano não lhe dera ouvidos, deixando aquela maldita cidade para trás?

Aflito, ele meditava a questão que vinha martelando o seu cérebro já há três dias. Sim. Três dias de uma labuta sem fim, tentando incansavelmente convencer o seu protegido a largar tudo, abandonar a vida que conseguira estabelecer ali, em Areias, em troca de um trabalho em uma fazenda de cacau na região Centro Oeste do país, onde ganharia um pouco mais sem precisar atravessar dias de sol e chuva, migrando entre as cidades vizinhas com sua barraca de frutas, arrastando sempre atrás de si a mulher e os filhos.

Evidente que aquela oferta não era real… Ao menos não de todo. O lugar e a fazenda efetivamente existiam. Enviara no dia seguinte da nefasta visita de Antero um telegrama a um grande amigo dos tempos do seminário, padre Francisco, responsável pelo ministério do Cristo naquela região, pedindo-lhe o favor de receber Fabiano, com a promessa de que depois contaria os motivos _ uma versão apropriada, certamente _ de sua súplica.

Infelizmente um esforço, até então, inócuo, já que Fabiano mantinha-se irredutível, alegando, ainda que a contragosto, se caso aceitasse a milagrosa proposta, não poderia deixar a esposa para trás, já no final do oitavo mês da gravidez do terceiro filho que esperavam. É claro que não, padre Manuel concordou, e mergulhado num oceano de desespero, enxergou naquela ponderação um último fio de esperança e tentou barganhar, acreditando, por fim, que venceria a resistência de Fabiano ao lhe prometer que cuidaria de Eulália e também das crianças, evitando que ele perdesse a vaga ofertada. E no frigir do ovos, beatas dispostas a ajudar não faltariam, e depois, quando Eulália estivesse completamente recuperada do resguardo, arrumaria tudo para que ela, o menino Miguel e a pequena Adalina fossem encontrá-lo.

Fabiano não se deixava convencer e o velho sacerdote não sabia mais o que fazer para tirá-lo da vista de Antero, ou melhor, arrancá-lo da vista daquele que fosse executar o infame préstimo, já que o demônio tinha desaparecido da mesma forma repentina como havia chegado, e levado no seu encalço aqueles quatro jagunços mal encarados.

“Fique tranquilo. Não serei eu que terei o privilégio de arrancar a vida do miserável traidor… Mas saiba que carregarei comigo a satisfação de ter tido o prazer em mandar pro quinto dos infernos a vida do homem que atirou meu nome na lama”…

Padre Manuel clamava cada vez mais a Deus para ampará-lo, para inspirá-lo, já que não podia revelar ao seu protegido a passagem de Antero por Areias. Seria óbvio o motivo de sua inusitada visita após doze longos anos… Retirar Fabiano e sua falecida primeira esposa da fazendo Olho d’Água, depois da inflamada ira de Antero, já tinha sido algo muito, muito dificultoso, mas agora seria uma empreitada praticamente impossível. Um homem com sua honra imaculada não se permitiria fugir como um criminoso pela segunda vez.

Tão logo alcançou o altar, padre Manuel depositou o lampião no chão, ao seu lado, e se deixou cair de joelhos, como se estivesse carregando o mundo às suas costas, ao mesmo tempo em que envolvia as mãos com o escapulário que retirava do bolso de seu camisolão enquanto um soluço abafado escapava de sua garganta. Obviamente não conseguiu sustentar por muito tempo o olhar sobre as imagens diante de si; sentia-se julgado e por fim amaldiçoado e, então, curvou-se até alcançar o solo com a fronte, dando início a uma oração fervorosa, não demorando a descarregar, num pranto convulsivo, a angústia e o pesar que queimava em seu peito até que, invariavelmente, acabou recordando o instante em que abriu a porta da casa paroquial e se deparou com Antero, o sorriso de escárnio lhe rasgando o rosto gordo, o terno de linho branco, o chapéu e o chicote oscilando de um lado para o outro na mão direita, deixando claro que havia se tornado um homem poderoso, decerto o Coronel das terras da fazenda Olho d’Água…

Apesar da indumentária e da postura exalando uma empáfia autoridade, padre Manuel não conseguia deixar de entrever na figura de Antero nada mais que o herdeiro do coronel Alexandre Crespi; aquele menino que viu crescer, feliz, sonhando com coisas e lugares e situações antes de se deixar consumir pelo ciúme, a vaidade e o orgulho: a profana trindade de todos os males que caminhavam sobre a face da Terra de nosso Senhor.

“Caso o senhor convença Fabiano, de alguma maneira, a deixar a cidade, eu o encontrarei, como o encontrei enfurnado nesse fim de mundo, e quando o fizer, não terei um pingo de clemência: mandarei dar cabo da família inteira”!

Doze anos… Como alguém podia manter no coração, durante todo esse tempo, a chama acesa do desejo de desforra? Maquinando como atingir aquele que lhe causou um suposto mal? Remoendo, deixando de desfrutar os bons momentos. Causando um dano a si mesmo ao se tornar cego e escravo do sentimento mais infame que um ser humano podia ter.

Padre Manuel recordou um exemplo típico da Bíblia, onde Herodes Antipas, ao ver a filha de Herodias dançando para ele em seu palácio, entusiasmado com o espetáculo, se comprometeu a lhe dar a recompensa que houvesse por bem pedir. Era a oportunidade de Salomé. Ela poderia ter ficado rica, independente, mas ao dar ouvidos à sua mãe, ao ódio que Herodias carregava em seu peito, deixou que a sorte escorresse por entre os dedos ao pedir a cabeça de João Batista numa bandeja.

– Em nosso coração tem que existir apenas a misericórdia… – o velho sacerdote meneou a cabeça lentamente, ainda com a face grudada ao chão, balbuciando as palavras – A pessoa que faz o mal terá angústia e arcará com as consequências mais tarde.

Mas não era o caso de Fabiano. Ele não tinha cometido nenhuma afronta contra Antero…

– Senhor, me ilumine – clamou padre Manuel com o rosto vermelho, o peito subindo e descendo conforme respirava muito mais rápido do que o normal.

Antero, com sua confissão sem arrependimentos, entregando cada uma de suas palavras aos desígnios de Jesus Cristo, envolvera a ele, um podre e velho sacerdote, em seu crime. Usou o sacramento como válvula de escape para suas frustrações, seu despeito…

– Senhor, me ilumine.

Padre Manuel repetia com a voz trêmula, embargada, quase que irreconhecível a medida que uma dor lancinante o consumia; uma dor que não era física, causada pela tortura secular do silêncio sacramental.. Um padecimento que jamais acreditou um dia poder sentir.

Deitou-se por completo no chão, gemendo, alucinando, perdendo as forças, o sentido, a razão…

 

*    *    *

Areias era uma cidade relativamente pequena comparada aos municípios vizinhos de sua região. Sua localização se dava no encontro do Rio Grande com o Rio São Francisco, e era praticamente similar à cidade de Barras, o que sempre a desfavorecia na transcrição para os mapas geográficos do estado da Bahia, que naqueles idos finais dos anos 30 ainda pertencia à região Sudeste do país.

Sua principal característica era o calor que alcançava uma temperatura de quase 45ºC nos dias de verão e tinha como a mais importante fonte de renda, até a metade dos anos 40, o cacau.

Muitas de suas casas, sobrados, lampiões e ruas, ainda que precariamente, mantinham um aspecto colonial, não pelo nobre intuito de uma possível preservação histórica, mas tão somente para atender aos caprichos arbitrários dos coronéis, dando continuidade à obstrução do progresso cultivada por seus antecessores.

Dessa forma, o comodismo acabou enraizado na cultura e nos costumes dos moradores de Areias, convenientemente alheios ao atraso de sua quase anônima cidade, se contentando ou se conformando com o pouco que lhes era permitido ter sobre aquela terra dura, pedregosa e torrada.

Os passeios na praça, as quermesses e as sessões de cinema, exibidas quinzenalmente em um espaço improvisado dentro do salão da igreja, cujos filmes deveriam, obviamente, ser analisados com certa antecedência pelo padre Manuel, eram as atividades disponíveis para a diversão dos areenses, que buscavam sempre aproveitá-las ao máximo, mas era a feira que acontecia todas as quartas, sem exceção, o grande acontecimento aguardado, onde tudo ou quase tudo podia ocorrer.

As mercadorias trazidas nas carroças, nos carros de boi, nas bicicletas, camionetas e nos velhos caminhões, desembocavam no centro da cidade e em seguida espalhadas por barracas coloridas em um quilômetro de rua, cujos comerciantes, em sua maioria proveniente dos municípios vizinhos, despertava a curiosidade da molecada, das moças solteiras e de alguns outros tantos, ávidos por novidades, mesmo que fosse o simples intercâmbio com alguém que não morasse ali, em Areias.

Sobre o chão pedregoso, eram aos berros que esses comerciantes se comunicavam uns com os outros e com os seus fregueses, apregoando a qualidade de seus produtos e garantido o melhor preço, assim como também faziam os vendedores ambulantes, presentes com seus tabuleiros montados sobre caixotes ou simplesmente no chão, dispostos a vender suas diversas e diversificadas mercadorias que variavam de objetos de barro a ervas medicinais, além de carnes, verduras, frutas e cereais.

As pessoas circulavam, indo e vindo, examinando, sem pressa, à procura do que desejavam, mesmo tendo alguma das vezes suas barracas preferidas, e a todo instante sempre havia os meninos que se ofereciam para ajudar a carregar o que compravam.

Paralelo a essa confusão perfeitamente organizada, às margens do comércio oficial, também existia o “troca-troca”, um setor onde tudo podia ser escambiado sem qualquer restrição, até mesmo a própria alma, dizia-se à boca pequena.

Foi nesse cenário babilônico que Josué decidiu executar seu propósito. Era o lugar perfeito, não tinha dúvidas. Aproximar-se-ia da infeliz vítima, atacaria tão veloz como uma águia e em seguida iria ao encontro, nos limites da cidade, receber o que restava da paga prometida _ a maior parte dela, por sinal _ e seguiria logo depois rumo ao futuro próspero que tinha certeza que alcançaria.

Nada daria errado. Nada podia dar errado.

Durante os três dias subsequentes à peculiar visita que fizera à casa paroquial, Josué espreitou a barraca do tal vendedor de frutas que atendia pelo nome de Fabiano. Quantas e quantas vezes, a mando de Zé Porcino, ele, Josué, não espionou defesas de cidades, de ruas, procurando meios para realizar os assaltos planejados pelo cangaceiro…

Fabiano era uma figura bastante humilde. De uma magreza excessiva, cabelos ondulados e escuros, e um par de olhos azuis que mais pareciam um céu sem nuvens. Estava sempre acompanhado da mulher, aparentemente num estágio avançado de gravidez, tamanha era a circunferência de seu ventre, e de seus dois filhos: uma menina descarnada que não deixava de brincar com um trapo transformado em boneca; e o mais velho, um garoto mirrado que se tivesse 10 anos de idade seria muito. Não fosse a intervenção do destino através dos desmandos de um vingativo coronel, marcando Fabiano como um pobre diabo que deveria prestar contas a Deus antes do tempo, o feirante seria mais um homem comum no meio de toda aquela gente e também o seria diante dos olhos de Josué, que não conseguia enxergar motivos que justificasse a realização de sua missão.

Inegavelmente Fabiano era um indivíduo pacato, sem qualquer sinal de agressividade ou impaciência, trazendo sempre uma inexplicável resignação estampada no rosto, apesar de toda a desordem que orbitava à sua volta, sobrevivendo em um mundo onde buscava atender aos caprichos de seus fregueses, ouvir as reclamações da mulher, o choro da filha pequena, o sol escaldante a lhe cozinhar o cérebro…

Era impossível não hesitar diante de tantas contradições, mas injustiças e perseguições existiam em toda parte, e, na pior das hipóteses, se aquele homem não tivesse feito nada de grave contra o tal coronel, ainda assim não seria o primeiro individuo pacato a morrer sobre a face da Terra.

Enquanto Josué mergulhava na multidão psicodélica e aflita, aonde tudo ao seu redor ia se tornando alheio conforme caminhava a passos largos e pesados na direção da barraca de Fabiano, padre Manuel, na igreja de Areias, não conseguia se concentrar durante o ato de confissão de uma de suas fieis, começando a sentir-se mal, nervoso, um suor repentino, tremedeiras e taquicardia sem qualquer explicação. Não conseguia identificar, entender aquele abrupto espasmo, aquele inusitado sentimento, apenas a aflição que não conseguia controlar era a única coisa que podia definir…

A andança pelo meio daquela gente que se esbarrava a todo tempo já começava a irritar Josué. Era impressão ou de fato a barraca de Fabiano parecia mais longe naquele dia? Respirou fundo e continuou a percorrer o seu infame trajeto. Além do semblante imperturbável, trazia consigo a determinação dos tempos do bando de Zé Porcino, quando participava de emboscadas, raspando à faca de ponta as canelas das vitimas ou dando um banho de querosene para em seguida riscar um fósforo na roupa do infeliz a fim de conseguir a chave de um baú ou de um cofre… Fosse o que fosse, havia aprendido com o antigo chefe, e também com a miserável vida, que nada de fora o penetraria, mantendo, dessa forma, o coração arrojado, ao pé da goela.

De súbito a imagem de Severino, seu pai, lhe veio à mente, e com ela a frase, a maldita frase que ainda gritava dentro de si, cuspida por Severino com desprezo e satisfação momentos antes de encontrar a morte na ponta do facão embainhado por ele, seu próprio filho:

“Seu inferno começa agora, maldito”.

Josué não tinha dúvidas que apesar de tudo a figura infame de seu progenitor seria, até o fim dos seus dias, uma bagagem pesada demais para carregar. Severino Ferreira fora um homem bruto, com dificuldade de se expressar, que perdia dinheiro no jogo, um covarde, uma figura monstruosa capaz de surrar a mulher até a morte e estuprar a própria filha… Alguém que jamais deveria ter existido sobre a face da Terra…

De tão absolvido que estava em sua miséria, em sua tensão, Josué não percebeu quando um garoto surgiu à sua frente lhe oferecendo um pedaço de mamão fresquinho para que provasse. Ainda se recuperando da infeliz lembrança paterna, demorou um instante para fixar os olhos sobre o pirralho e qual não foi sua surpresa ao perceber que estava diante do filho mais velho do vendedor de frutas, Ato contínuo, Josué ergueu a cabeça para se deparar com o homem que o próprio diabo escolhera para que ele tirasse a vida e então um instante de pesar voltou a tomar conta de si, mas tratou de afastá-lo o mais rápido possível ao mesmo tempo em que a ideia para colocar em prática o serviço encomendado, sem levantar suspeitas, lhe veio à mente.

 

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Sivuca e Clara Nunes – Feira de Mangaio (1978)

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