– Vamos deixar a luz entrar e comemorar a recuperação do doutor.

Dona Candinha reforçou a ordem dada às cinco empregadas que cuidavam do serviço doméstico na casa-sede antes de ver a última janela de o sobrado ser aberta.

Era preciso que a luz invadisse cada canto daquele lar para expulsar de vez a apreensão, a tristeza, a apatia, o desânimo e a ansiedade que tomaram conta de todos naqueles últimos dias em que o coronel estivera acamado.

Pela primeira vez, em trinta anos de casamento, Candinha viu seu marido quedar, obrigado a se render por não ter forças para lutar contra as reações do próprio corpo.

Justo ele, o coronel Josué Ferreira, que se orgulhava de ter chegado aonde chegou graças à sua força e persistência, não se dobrando perante homem nenhum e que duvidava da existência de Deus, ser derrotado por dores repentinas, acompanhadas por uma diarreia incontrolável e uma febre que teimava em não deixá-lo, queimando por cinco dias consecutivos todo o seu corpo e fazendo sua testa parecer uma chapa de fogão.

Ainda assim Candinha não se surpreendeu ao vê-lo bastante debilitado, encontrando no que restava de suas energias autoridade para impedir que Doutor Ramiro, ou qualquer outro médico fosse chamado para lhe tratar, afinal de contas, seus acidentes e suas mazelas, em toda sua vida, foram cuidados por ele mesmo ou por rezadoras e benzedeiras, sem a necessidade de qualquer homem fantasiado de branco.

Até mesmo o rasgo na cara, há trinta e quatro anos, se converteu em cicatriz graças às ervas de uma preta velha.

 

Mesmo sob os protestos da esposa e seus dois filhos, o coronel já estava de pé, mal tendo completado as primeiras 48 horas do início de sua convalescença.

Se a morte quisesse levá-lo, não seria em cima de uma cama que iria encontrá-lo, ainda mais com a aproximação das eleições, onde sua influência deveria ser reforçada – ou exercida – a fim de estreitar as rédeas do seu curral eleitoral sobre todos os municípios vizinhos a Laranjeiras.

O rastro da única derrota política que o nome de sua família tinha provado há quase trinta anos precisava ser deixado cada vez mais para trás.

Definitivamente esquecido.

O sabor daquela desonra era algo que ele jurara nunca mais sentir, e todo o prestígio e poder que possuía não eram suficientes se não colocados em prática: era preciso ter votos, ganhar as eleições, independente do preço a pagar e das ações a serem tomadas.

Para os amigos, pão; para os inimigos, pau.

Essa era a lei que prevalecia depois de uma campanha eleitoral onde o saldo entre mortos e feridos sempre beneficiava o vencedor em todos os sentidos.  

 

Faltava pouco para as 8 da manhã quando Josué Ferreira deixou o quarto, atravessando a passos largos o vasto corredor do segundo andar do sobrado, que por sinal estava muito claro de sol, não pode deixar de admirar enquanto acostumava às vistas depois daquela semana preso à cama como um corno

Pronunciou um bom dia entre os dentes para as empregadas e ao dirigir o olhar para Candinha, notou o reflexo tricolor da bandeirola de uma das janelas tingindo sua face e o seu pescoço.  

Numa questão de milésimos de segundos achou que a mulher estivesse perversamente linda, mas atribuiu aquele pormenor ao resquício da recuperação de sua saúde e então deu início ao trajeto rumo ao limiar da escadaria, não tardando a descer, degrau em degrau, pisando firme com suas botas de couro até alcançar o patamar final.

 

Antes de chegar ao pequeno saguão, junto ao portal, virou a cabeça na direção da sala de estar e contemplou a mobília, com requintes europeus, espalhada pelo cômodo.

 

De súbito, ao ouvir o arrastar dos pés da esposa descendo os degraus atrás de si, retornou o olhar à frente e com apenas três passadas alcançou o cabide de madeira que ficava disposto em um canto do átrio.

– Tem certeza que está bem, homem, pra seguir viagem? – Candinha ousou perguntar, enquanto se aproximava pelas costas do marido – Nosso filho Licurgo pode muito bem cuidar dessas eleições…

– Onde já se viu Cândida…

Josué Ferreira principiou ao passo em que retirava do cabide de madeira seu típico chapéu de feltro marcado pela gebada que ele sempre aplicava antes de ajeitá-lo de pronto sobre a cabeça.

– Eleição é coisa que dá despesa. Registro de nascimento, já que o pirralho vai nascendo e só se registra quando chega a hora de votar, um bocado de retratos, lanche, transportes. E eu nem tô falando na distribuição das máquinas de costura, empréstimo de vaca com cria pra quem tá carecendo de leite, casa de graça pra morar… Agora depois de tudo isso, no dia da eleição, ainda tem matuto querendo ver direito o nome dos candidatos. Pode não! O voto é secreto!

 

Dona Candinha – esse era o tratamento que recebera de quase todos os moradores de Olho d’Água desde os tempos de menina – meneou a cabeça em completo silêncio ante o descaramento do marido, que sempre ignorava suas palavras quando não estava disposto a conversar sobre um assunto qualquer.

De pronto postou-se à sua frente, simulando, com gestos lentos, a necessidade para arrumar sua gravata, aproveitando dessa forma para medi-lo de cima a baixo, buscando qualquer vestígio de remorso em seu rosto enquanto o contemplava 

Era uma busca absurda, tinha plena consciência disso, mas era o único consolo que lhe restava diante da sina de sofrimento que havia sido submetida há anos e que a consumia em silêncio, beirando muita das vezes o insuportável.

Ela sabia que as viagens de seu marido não eram tão somente para tratar de negócios ligados à fazenda ou à política. Existia outro interesse e com endereço certo no município vizinho, além de um nome próprio: Adalina.

Dona Candinha jamais conseguiu compreender o fascínio que Josué nutria por aquela mulher. Sempre teve conhecimento das paixões que ele mantinha fora de casa, inclusive com mulheres bem mais jovens, mas elas entravam e saiam de sua vida tão rápido como haviam chegado, porém quase vinte anos já tinham se passado e Adalina continuava presente.

Que feitiço tinha sido usado para prendê-lo por tanto tempo? Para convencê-lo a levar a filha bastarda, fruto daquela relação desaprovada aos olhos de Deus, para viver na fazenda, respirando o mesmo ar de Maria Inês e Licurgo, filhos concebidos dentro do legítimo matrimônio?

Não foram poucas as noites em que rogou a Deus um instante que fosse sem pensar em tudo aquilo.

Já havia chorado e gritado pra si mesma e de nada adiantou.

Reconhecia que sua reação totalmente passiva sempre contribuiu para aquela situação em que vivia. Considerava-se frágil, indefesa e ineficiente, mas que outra postura poderia assumir? O que mais deveria fazer? Coagir a figura autoritária, brutal e ignorante de seu marido, o coronel?

Impossível!

Josué Ferreira era um homem respeitado em todas as suas terras. Tanto pela força e pelo medo, como pelo carisma e liderança fazendo as vezes de salvador da pátria, afinal, ele não era o tipo de político que só aparecia na época das campanhas eleitorais, pelo contrário, era uma figura presente, que ajudava aos seus subordinados arranjando empregos, contratando advogados, providenciando médicos ou hospital, forçando casamentos quando o pai da criança não queria, dando pousada e refeição aos mais necessitados e conquistando, sobremaneira, obediência e fidelidade à sua pessoa…

Lembrou-se da mulher de um primo, também coronel, que foi tachada por todos em sua cidade como uma mulher da vida após seu casamento ter chegado ao fim e ter sido considerada a única responsável, além de nunca mais ter podido ver os próprios filhos… 

Não. Não havia como se rebelar. Ela era esposa, e de um Coronel, e desde que o mundo era mundo as esposas sabiam muito bem, ou deveriam saber, quais eram os seus papéis.

 

Mesmo sob aquele calor infernal de fim de verão, Josué Ferreira não abria mão da indumentária sempre elegante, o terno de linho impecável feito sob medida, mantendo o cuidado em ressaltar sob o fino tecido o busto musculoso que ainda conservava aos 52 anos.

Enquanto ajudava o marido a terminar de vestir o paletó, sentindo o forte perfume que muita das vezes denunciava sua presença à distância, Dona Candinha olhou rapidamente para a própria imagem que estava refletida no pequeno espelho diante de si, por trás da figura ereta de Josué: havia chegado aos 48 anos com a impressão de que não vivera realmente ou alimentara qualquer tipo de ambição fora daquelas paredes grossas da casa-sede e dos portões pesados da fazenda Olho d’Água.

Tomada por uma aflição súbita, buscou encontrar em si mesma qualquer traço da jovem Maria Cândida, de rosto redondo, boca carnuda e cabelos pesados que lhe caíam sobre os ombros, mas encontrou em seu lugar uma mulher madura, de rosto pálido e envelhecido, encoberto por um semblante rígido, emoldurado por cabelos que agora não passavam da altura de sua nuca, levemente desgrenhados sobre a testa.

Deixou escapar um suspiro atravessado no momento exato em que se deparou com o reflexo do coronel; sem saber por que, teve a impressão de ter sido olhada de forma diferente, o suficiente para se sentir, naquela fração de tempo, mergulhada num mar de esperança…

Foi então invadida, ali, em pé, por uma nostalgia desvairada ao relembrar do instante em que conheceu Josué no roçado que ele arrendara de sua tia e também madrasta, Eva… Quando se deparou com os olhos dele, não conseguindo desviar a atenção por mais que tentasse…

Lembrou-se das histórias que ele contava, de suas aventuras, não sabendo se aquilo tudo era realmente verdade ou tão somente mentiras para impressioná-la, fazendo com que ela o achasse às vezes um louco ao mesmo tempo em que a fascinação lhe enchia o peito…

As noites, as muitas noites que perdera de sono pensando em como seria ser abraçada, beijada… penetrada por Josué. A luta para pensar em outra coisa, mas não conseguindo, se sentindo pecadora diante dos pensamentos indecentes…

A sensação crescente dos dias que se passavam, do calor desesperador sempre que via Josué suado, indo e vindo, comprando e vendendo gado, cavalos, burros…

Seu bafo quente e o seu cheiro, forte, na beira daquele rio quando o corpo dele desceu sobre o dela… O gemido quando a mão firme lhe pousou num dos seios, em seguida o arrepio quando a mesma mão escorregou pelo ventre, entrando por debaixo da saia, subindo-lhe pelas coxas como uma aranha… A raiva, a fúria com que agarrou os cabelos de Josué como se quisesse arrancá-los…

– O paletó, Cândida!

Dona Candinha ouviu a voz firme do marido, a reprimenda retumbando pelo vestíbulo, lhe trazendo de volta à realidade, fazendo-a constatar a falsa impressão que tivera quando voltou a encará-lo através do espelho.

– Fique calmo, homem de Deus…

Ela lhe respondeu ao mesmo tempo em que terminava de ajustar o paletó sobre os seus ombros, não ousando dizer em voz alta o término de sua réplica: A outra não vai fugir, não.

 

*   *   *

 

Aparecendo à porta da casa-sede, Josué Ferreira, um tanto inquieto, constatou que o calor que o sol já emanava àquela manhã mal começada de fim de verão, prenunciava um dia severo pela frente. No céu azul, apenas uma nuvem ousava deslizar, silenciosa; nem mesmo o vento, apesar de monótono e cadente, amainava a sensação de abafamento.

Com os ombros retos e o olhar sempre firme, detendo uma postura extremamente altiva, desceu os degraus que o levava ao estreito caminho de pedras que separava os jardins, ainda arrastando atrás de si, como uma sombra, a esposa, dona Candinha.

Sem se virar, despediu-se dela com um aceno quase imperceptível feito com as costas de uma das mãos, antes mesmo de alcançar os pedriscos da diminuta estrada, partindo logo em seguida na direção do cavalo que já estava cuidadosamente selado e à sua espera.

Terminado de montar o animal, mantendo as costas eretas, os ombros, quadris e calcanhares devidamente alinhados, como um exímio cavaleiro, Josué Ferreira acenou novamente para a esposa, dessa vez se dando ao trabalho de contemplá-la, porém de maneira tão fugaz, assim como o gesto feito com a ponta do seu chapéu, que deixou a dúvida em dona Candinha se era ela realmente quem estaria no seu raio de visão… ou nos seus pensamentos.

Parada sobre um dos degraus diante do sobrado, ela respondeu com um sorriso amargo, contrafeito, enquanto uma das mãos lhe cobria os olhos a fim de protegê-los da claridade intensa do sol daquela manhã.

 

– Simbora homens!

Ordenou o coronel à sua pequena comitiva ao passo em que seguia num ritmo acelerado, como se estivesse desafiando os seus quatro capangas a acompanhá-lo.

Nunca lhe faltara ímpeto para estar à frente daquele tipo de empreitada, como no passado, junto do bando de Zé Porcino, quando saqueavam fazendas, povoado e cidades, impunemente, roubando dos ricos para dar aos pobres, subvertendo a ordem social, mas o lado da moeda agora era outro, e antes mesmo de atravessar a porteira da fazenda Olho d’Água, Josué Ferreira precisou refrear seus ânimos e ceder sua posição dianteira a dois de seus jagunços, que juntos aos os outros dois restantes, formaram uma redoma humana em torno de si.

Ele sabia muito bem das tocaias que existiam e podiam acontecer a qualquer instante em virtude da posição que ocupava e dos inimigos que fizera.

Havia transformado Laranjeiras em palco para seu poder, fazendo-se obedecer, elegendo representantes políticos, usurpando propriedades, manipulando autoridades e mandando seus jagunços assassinar ou acossar os pobres coitados que resistiam se dobrar aos seus desmandos.

A autoestima do indivíduo que se sente constantemente humilhado diminui para o nada se ele não for admirado. A admiração traz respeito e respeito é uma proteção contra o desamparo e contra a insignificância.

 

Ainda bem que João tinha ficado na traseira do grupo, pois assim poderia remoer seus pensamentos sem se preocupar em ser notado.

Claro que a maior parte de sua atenção estava direcionada à guarda do coronel, mas era impossível deixar de lado a frustração por não ter conseguido ver Maria Inês e se despedido antes de partir, mesmo em silêncio, satisfazendo-se apenas em olhá-la, mirar o semblante do ser perfeito que caminha sobre a face da Terra e que o havia deixado aturdido, desesperado, dividido entre a voz da paixão que passou a bradar em desespero no seu peito e o dever em completar uma vingança da qual ele tão somente recebera como herança, através de palavras de ódio proferidas por sua falecida mãe e por seu irmão, Miguel, sempre que narravam a trágica morte do pai que ele não conheceu.  

Foram vários os momentos em que ele, João, esteve disposto a enfrentar as consequências por amar a filha de um coronel, mas a questão era bem mais complexa: não podia trair o próprio irmão, mesmo diante do infame propósito que os trouxera, depois de várias andanças, até aquelas terras…

João suspirou forte, pesado, ao mesmo tempo em que lamentava a sina que a vida lhe impusera…

Recordou do momento primeiro em que viu a filha do homem a quem deveria assassinar, quando chegou à fazenda Olho d’Água, jamais imaginando que sua vida mudaria vertiginosamente…

A surpresa (estranha), o constrangimento, as orelhas e as faces começando a arder depois de se encantar com a beleza de Maria Inês, seu rosto redondo, a boca carnuda, olhos oblíquos demonstrando sem titubear um misto de audácia e ternura… O coração do tamanho do mundo ansiando por um amor verdadeiro.

O namoro mantido em sigilo e vivenciado em toda sua plenitude…

 

Aquela noite distante, o céu incendiando de estrelas enquanto os dois se amavam intensamente, pela primeira vez…

 

Maria Inês questionando-o até quando suportariam o peso daquele segredo… O seu silêncio mordaz por não poder lhe revelar os motivos de sua resistência.

As lembranças dos sentimentos daqueles instantes lhe pareceram vívidas, como se os dois anos que se passaram não fossem mais do que dois segundos dentro da eternidade do abismo que agora era o seu coração…

Num rápido instante João fechou os olhos tentando evitar a recordação avassaladora que atravessou sua mente: ele e Miguel fazendo uma cruz com pedaços de taquara e cipós para, em seguida, cravá-la na sepultura da mãe, Eulália, encimando a promessa que lhe fizeram em vida: encontrar o desgraçado que arrancara a alma de Fabiano.

De súbito abriu os olhos e num movimento ágil, porém discreto, mirou o seu entorno e mais a frente. Nada e nem ninguém em seu raio de visão. Nenhuma poeira levantada…

 

Deixando os ombros caírem, João constatou carregado de pesar que o seu pedido de ajuda para o coronel Josué Ferreira não havia sido entregue ao destinatário…  

 

 

 

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° vídeo 1: “Minha princesa cordel” – tema de amor de Maria Inês e João

intérpretes: Gilberto Gil e Roberta Sá  (Gilberto Gil)

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° vídeo 2: “Ai quem me dera” – tema de dona Candinha

intérprete: Clara Nunes  (Vinicius de Morais)

 

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[youtube https://www.youtube.com/watch?v=RGjz98XR1bg]

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  • Quem diria, no meio do sertão nordestino, encontrar um capítulo tão romântico como esse, hein?

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