As famílias de selvagens habitavam casas velhas, subterrâneos, ou canais dos antigos esgotos. O sofrimento traduzia-se em distantes e plangentes sons de choro. A falta de viço indicava a natureza apática, soturna, doentia da população infantil de selvagens. Mesmo antes de estes rejeitados começarem a andar, já eram entregues à vida. A maioria não resistia.
Poucos se davam ao luxo de viver numa família coesa. Não obstante, certas crianças, talvez impelidas por alguma força desconhecida, sobrenatural ou teimosia, conseguiam emergir com saúde suficiente para se destacarem das demais. Apesar da aparência escanifrada e vestido com uma sobreposição de trapos, Triti era um menino lépido, inteligente, um desses milagres da natureza. Possuía naturalmente uma capacidade associativa de dar inveja a qualquer garoto potente. Sem falar na memória fotográfica, capaz de reter informações e fisionomias como ninguém. Uma habilidade sem igual. Porém, possivelmente fadada ao limbo por não pertencer à classe dominante.
Com seus oito anos de idade, driblava as carências e agasturas com bom humor e impetuosidade. Aprendeu a ler e a escrever com o pai, Ganimedes, que procurava conciliar a dedicação ao filho com o peso da luta pela sobrevivência. Era costume, no final do dia, ambos irem à beira do córrego seco para conversarem. Em imaginação, passeavam por mundos distantes, viviam aventuras fantásticas, qualquer sonho bom que pudesse aliviá-los, mesmo que por breves instantes, daquela triste realidade.
Pouco antes do jantar, sentavam-se no topo de uma pequena colina próxima a casa para observarem as estrelas. O menino já era conhecedor de várias delas. Sentado com as pernas apoiadas num breve declive, Ganimedes mapeava o céu a transformá-lo numa espécie de oráculo:
– Filho, vê aquelas três estrelas alinhadas?
– A Três Marias?
– As Três Marias ou Cinturão de Órion. Quando as vejo bem brilhantes, exatamente como estão agora, especialmente nesta época do ano, significa que algo muito importante acontecerá.
– Que coisa importante? – Perguntou Triti, com os olhinhos a faiscar de curiosidade.
– Não sei, mas será algo que mudará a vida de quem as avistou pela primeira vez neste início de noite do dia um de março.
– O que será, pai? Será que nós fomos os primeiros a vê-las?
– Não sei, mas aposto que será um evento importante. Tem outra coisa: vejo nuvens próximas ao disco lunar. Esta combinação significa que a tal mudança acontecerá dentro de alguns anos e será difícil.
– E aquela estrela ali?
– Aquela é Marte. – Logo que a avistou, Ganimedes emudeceu. Mergulhou em alguma lembrança. O menino notou a seriedade do pai e preocupou-se:
– Pai, o que foi? Por que ficou assim?
– Nada não. Não é nada. Estou cansado. Vamos pra casa.
E retornaram calados.
Sentados à mesa para o jantar, a mãe do menino, Adélia, mulher de traços sofridos e endurecidos, colocou a mesa sem muito cuidado. De temperamento forte, não lhe custava demonstrar, sempre de maneira enérgica, sua insatisfação. Mulher de poucas palavras. As poucas ditas, faziam arder os ouvidos e doer o coração. Sempre que via a mãe irritada, Triti procurava manter-se o mais quieto possível. Preferia evitar atritos, pois sabia que terminaria com um chinelo no traseiro.
Sobre a mesa rústica, o bendito alimento que, bem ou mal, garantiria mais uma noite de sono. Pelo menos, aquela noite. Na cozinha simples de chão de terra batida, diante de um fogão de lenha, Adélia preparava o resto da refeição. O cardápio daquela noite seria: pombos assados, pão, vegetais e uma farinha escura, que recendia um odor adocicado e nauseante. Sempre depois de servir, Adélia dizia:
– Coma tudo! Pensa que é fácil caçar estas coisas? É isso que o mantém vivo.
– Mas, mãe! Não gosto de farinha de baratas. Tem gosto ruim.
– É o que temos, menino. Vai deixá-lo forte. É pura proteína. Se nossa realidade fosse outra…
– Lá vem ela com a conversa de sempre. – Cochichou Ganimedes ao pé do ouvido do filho.
– Isso mesmo, senhor Ganimedes. Poderíamos ter uma vida igual à dos Potentes. Por que não? Também somos filhos de Deus. Nem precisaríamos comer. Como não fomos abençoados, ficamos aqui, comendo esse lixo.
– Querida, por favor… Graças a Deus ainda podemos fazer isso. Você sabe que os Potentes, no fundo, estão piores que a gente. Quase não comem e já praticamente nem bebem mais. Que alegria eles têm? Não deveria falar assim.
– Que absurdo! Comer é coisa de pobre. Eles têm outras coisas mais interessantes pra fazer do que ficar mastigando. – disse ela, tirando o pano de louça dependurado ao redor do pescoço e jogando-o bruscamente sobre a mesa.
– Fiquemos em paz, está bem?
– Paz? Viver nestas condições lhe dá paz? Estamos nessa porque você é um acomodado. Um perdedor.
– Ora, mulher, fique calma. Pense! De que adianta ser rico e violar as leis da natureza? Um dia, e não demorará, ela se rebelará contra aqueles que a agridem. Ser portador de nano robôs viola completamente os desígnios da vida.
– Mas, pai, acho que seria bom se tivéssemos nanobots. Principalmente esses novos, que nos fazem viver bastante. Você iria demorar pra morrer. – disse Triti, ao mesmo tempo em que tentava se safar da farinha de baratas.
– Viu? Até um menino de oito anos consegue ser mais inteligente que você. – Disse a mãe.
– Filho, a vida tem começo, meio e fim. Estamos todos de passagem. Aliás, nem sabemos se esta nova tecnologia funcionará. Ninguém viveu tanto tempo assim pra provar se o que eles prometem é verdade. Ah, deixa isso pra lá. O mais importante é que serei eterno em sua mente. Não preciso de um monte de mecanismos dentro de mim pra me fazer feliz. – Triti mantinha-se atento, enquanto o pai completava. – A natureza nos fez assim para que fôssemos do jeito que somos. Violá-la é perigoso. Ela sempre encontrará uma forma de fazer as coisas voltarem a ser como eram. Doa a quem doer. Não podemos superar a programação da vida. Não é natural.
– Pai, como você sabe de tudo isso? – Ganimedes calou-se. A mãe deu as costas e enxugou as mãos, deixando escapar um pensamento em voz alta: – Se a natureza é tão sábia assim, por que nos faz sofrer tanto? Por que fomos expulsos da Cidade Limpa? Só porque não temos o privilégio de sermos abençoados pela tecnologia? – Tornou abruptamente para o marido para completar o raciocínio em voz alta. – É claro que a vida é bela. Basta ter uma cabeça leve e não passar dificuldades. Que necessitado é feliz e calmo, de bem com a vida? Diga-me. Não conheço ninguém que consiga se manter em equilíbrio e sereno, vivendo assim, como nós. Somos felizes, hein? Vamos lá, responda, seu metido a intelectual – Desabou na cadeira, com a voz embargada e um sinal de choro em seu olhar. Então, completou: – Veja seu filho, comendo o resto do que há na natureza. Pensa que ele não gostaria de comer bolos recheados, refeições completas: café da manhã, almoço e janta? Engolimos este lixo para não morrermos. Comemos agora e não sabemos se comeremos amanhã. Dói ver meu filho assim. Perco o sono quando o ouço acordar no meio da noite a chorar baixinho de fome e, em seguida, adormecer de tanta fraqueza. Se ao menos tivéssemos nano robôs que nos fizessem não comer mais…
Ganimedes inclinou a cabeça com olhos tristes. Sentia-se culpado. Afastou de si o prato e disse ao menino:
– Vamos, vamos sair um pouco. Mamãe deve estar cansada.
O menino caminhou hesitante em direção a mãe, como que desejando aliviar sua agonia. Ao tentar tocá-la no rosto, ela esquivou-se. Com a mãozinha ainda pendida no ar e sem saber o que fazer, Triti olhou para o pai e disse:
– Pai, vamos sair dessa situação. Eu sei disso. Teremos uma vida bem melhor.
Pai e filho, abraçados, deixaram a casa entristecidos. Sentaram-se à beira do declive e ao olhar as estrelas, Ganimedes desabafou:
– Que bom que você tem esperança, filho! Sabe de uma coisa? Cometi muitos erros na vida. Também já fui muito ambicioso e sei bem que isso é ruim. Pode prejudicar muita gente. Parece engraçado dizer isso, mas no fundo sinto-me bem do jeito que estamos agora. É um alívio não ter que me preocupar se meus nanobots são de última geração, se me farão viver cento e cinquenta ou duzentos anos. Estou em paz. É claro que não sou cego. Sei que a situação é difícil. Mas, às vezes, é melhor ter menos e ser feliz do que ter um monte de coisas e ser escravizado por elas. Aliás, já tenho a maior riqueza do universo.
– O que, pai?
– Você. – Triti abriu um lindo sorriso. – Sim, você é o tesouro mais precioso que um pai pode ter. – E abraçou o filho com ternura e lhe fez um rápido cafuné. Era tarde, e ambos retornaram para casa.
Nada como um novo dia para dar clareza aos ânimos. O sol rompeu brilhante o céu e o menino, esperto como ele só, saltou da cama. Sua cabecinha fervilhava de planos. A primeira coisa que fez foi procurar o pai. Porém, ele havia saído bem cedo. Saíra para encontrar alimento e material usado, para a reforma que pretendia fazer num dos pequenos cômodos da casa.
– Mãe, será que papai volta logo?
– Não sei. – respondeu enquanto esfregava a roupa no tanque.
– Vou dar uma saída e já volto.
– Onde pensa que vai?
– Vou à casa de um amigo.
– Não se perca por aí. Tome cuidado.
– Tá. Tchau!
Mais do que depressa, Triti montou na bicicleta e rumou para a Cidade Limpa. Um destino perigoso, passível de graves consequências. Fortemente motivado pela discussão da noite anterior e com sua inerente impetuosidade, venceu o medo e para lá se foi, com o desejo de descobrir algo que pudesse transformar a vida de seus pais. – “O que há de mal em entrar naquela cidade”? – Pensava insistentemente, para justificar sua travessura.
Trinta minutos foi o tempo que o garoto levou para chegar aos arredores da Cidade Limpa. Havia uma espécie de cerca laser que delimitava a área. Contudo, ele conhecia um sistema de tubulação que poderia conduzi-lo diretamente ao interior do perímetro. Daria em uma escola de alunos potentes, da qual já ouvira falar.
Depois de ter se arrastado por mais de cento e cinquenta metros, saiu e saltou para trás de um arbusto do campus da escola. Os alunos estavam no intervalo e se divertiam no gramado. Por entre folhas e galhos, Triti observava atentamente o comportamento daqueles garotos que mais pareciam deuses. Exibiam com orgulho seus tatoons, espécie de tatuagens feitas de nanobots que, através de desvios controlados e alternâncias sincronizadas de ondas de luz, criavam a ilusão de movimento. Um tatoon de águia que batia as asas, outro de dragão que cuspia fogo. Para um menino selvagem, aquilo era estonteante.
Já as meninas preocupavam-se mais com a aparência. Quanto mais excêntrica, melhor e, para isso, mudavam a cor dos cabelos frequentemente. Com uma simples sacudidela, podiam mudar de loiro para vermelho, para o verde ou até mesmo para o roxo. Qualquer cor que desejassem. Os nanobots cabeleireiros também alteravam o tipo de cabelo, de crespo para liso, de comprido para curto. Conforme a imaginação.
Triti ficou mesmo paralisado quando viu um garoto saltar três metros de altura para agarrar uma bola perdida. Ao término do intervalo, Triti esperou que todos entrassem e, sem demora, esgueirou-se de volta à tubulação. Com a cabeça cheia e eufórico, retornou para casa imaginando como seria ter todas aquelas habilidades.
À noite, sentou-se com os pais para jantar. Felizmente teriam algo para comer. Enquanto a mãe servia, o pai percebeu o garoto um tanto circunspecto e cabisbaixo. Algo parecia incomodá-lo.
– Filho, – com resistência, o menino ergueu o olhar para o pai – você está bem? – Com voz fraca e desanimada, respondeu com uma pergunta:
– Por que não conseguimos ser como os Potentes?
A mãe parou o que estava fazendo e travou o olhar no marido.
– Minha nossa! Você também? Contaminou-se com o vírus da insatisfação. Parece que o sintoma sempre surge na hora do jantar. Só o que sabemos fazer é nos lamentar?
– Só queria saber.
Antes de lhe responder, posso conhecer o motivo da pergunta?
– Sei lá. Curiosidade. – respondeu o garoto, meio sem jeito.
– Muito bem, – empurrou o prato para longe – minha resposta será tão simples quanto a sua. Existem aqueles que podem e aqueles que não podem. É isso mesmo. Simples assim.
– Nosso antigo vizinho pôde. Aliás, mudou-se para a Cidade Limpa. – Retrucou Adélia, como que acendendo o estopim para deflagrar uma discussão. Refratário ao comentário, Ganimedes continuou:
– Infelizmente fazemos parte da camada menos favorecida que está longe de conseguir algo assim. Sabe, acho interessante uma coisa: o mundo sempre, desde que me conheço por gente, foi segregacionista e elitista. Por que seria diferente agora? Antes era pela diferença da cor da pele, ou então, pela posição financeira ou pela opção sexual. Isso sem falar na segregação acadêmica. Bastava apenas ter um diploma para ser chamado de doutor e, depois, em meados do século vinte e um, surgiu a segregação tecnológico-financeira que, diga-se de passagem, dura até hoje. – E continuou o discurso que, para a mãe de Triti, soava mais como uma arenga escapista para justificar seu insucesso na vida. – Quem tem dinheiro aplica-o em tecnologia, a busca pela vida eterna. A era nano foi absolutamente um divisor maldito de classes sociais. Pois é: quem é rico vive mais.
– O que há de mal em deixar de ser um Selvagem? – Ferreteou a mulher.
– Ora, nada! Desde que isso não se torne uma obsessão. – Redarguiu Ganimedes.
– Tolice! – Exclamou a mãe, enquanto deixava seu prato de lado e passava a enxugar nervosamente as panelas com um pano velho.
– E por que não temos dinheiro? – Perguntou Triti em voz baixa, quase inaudível.
– Porque não temos… Ora, porque não tive sorte. Bem, eu cheguei a inventar algumas coisas, mas nunca consegui encontrar alguém que se interessasse por elas. Quem sabe você tenha uma chance melhor, não é mesmo? – Disse a encarar o filho, que se mantinha cabisbaixo. Ganimedes preferiu mudar de assunto: – Sabe, filho, o que gosto mesmo é de ler. Um dia lhe mostrarei os livros que tenho guardado. São verdadeiras relíquias.
Um silêncio se seguiu. O garoto arrastou a cadeira para trás bem devagar e pediu permissão aos pais para se retirar.
– Viu, mulher? Você o constrange com a sua ambição. – Ela fez um gesto de rechaço com a mão e continuou de costas, a cuidar da pia. – Não vamos ver o céu esta noite? – Perguntou o pai, preocupado com aquele comportamento incomum:
– Não, pai. Estou cansado. Boa noite. – E caminhou quieto para seu quarto, enquanto mergulhava sua atenção para o mundo ruidoso de sua cabecinha cheia de dúvidas, sonhos e esperanças.
No dia seguinte, nem bem o sol se erguera por entre a moldura da janela, o menino saltou da cama e montou na bicicleta. Ninguém o viu sair. Pedalou freneticamente em direção à Cidade Limpa. Bem próximo da tubulação subterrânea, passagem secreta para o mundo dos Potentes, tomou o devido cuidado para camuflar qualquer pista que denunciasse sua presença e, sem pensar duas vezes, rastejou até o campus da escola.
Numa das mãos carregava um corante alimentício vencido que encontrou no lixão a caminho da Cidade. Ao chegar, mais uma vez o deslumbre apoderou-se dele. Caminhou como que hipnotizado e deteve-se diante do magnífico prédio. Ameaçou entrar e ao fazê-lo, surgiu bem à sua frente um robô inspetor de alunos. O menino gelou dos pés à cabeça:
– Você deveria estar em atividade recreativa. – Alertou o robô com voz monofônica e excentricamente gentil. E prosseguiu: – Não o reconheço. Por favor, permaneça nesta área para que consiga acessar seus dados. Olhe aqui para a biometria.
Triti se posicionou diante da câmera localizada no peito do robô de aparência quase humana. Não tinha a mínima ideia do que era biometria. Logo a máquina retirou-se sem dizer nada. Alheio aos perigos decorrentes de tal ousadia, o menino aproveitou a oportunidade para interagir. Sentiu-se solto naquele imenso salão monitorado por câmeras e sensores de presença.
Assustado, ansioso e ao mesmo tempo extasiado, Triti avistou um grupo de crianças e a professora. Pareciam desenvolver alguma atividade artística. Cada uma delas exibia com orgulho as habilidades adquiridas graças a última versão de seus nanobots.
– Hei, você. Venha cá! – chamou a professora.
– Quem, eu? – Recuou assustado.
– Sim, você mesmo. É aluno da outra classe? Está perdido?
– Nã-não.
– Fique conosco e, quando terminarmos as atividades, eu mesma o levarei à sua sala. Ou, então, farei melhor, chamarei o robô-inspetor…
– Tudo bem. Posso ficar um pouco com vocês. – Disse o menino.
– Qual o seu nome?
– Triti.
– Triti? Um apelido para Trimegistro, suponho. – O garoto fez que sim.
– O que seus nanobots permitem fazer?
– Eu… Hã… Acho que consigo mudar a cor dos meus cabelos.
– Acha? Bem, então, mostre.
– É que antes eu preciso ir ao banheiro.
– Está bem, Triti. Vá, e depois, nos mostre suas habilidades.
O menino correu ao banheiro e espalhou o corante verde por todo o cabelo. Em seguida, retornou ao grupo. Estava desconcertado, inseguro. Receava que alguém descobrisse que era um Selvagem.
– Olha! O cabelo dele ficou verde! – Gritou um dos meninos. – Qual é o seu nome?
– Triti.
– Mudar a cor de cabelo é coisa de menina. Mas o seu… Achei legal! Vamos brincar?
Os olhinhos dele se encheram de alegria. Era tudo o que mais queria.
– Você consegue pular alto?
– Claro que sim. – Respondeu a achar que aquilo era fácil. Porém, se desconcertou com a próxima pergunta:
– Quantos metros você consegue alcançar?
– Metros?
– Sim. Quantos? Eu consigo vinte. E você?
– Sei lá.
– Aposto que meus nanobots são melhores que os seus.
– Não gosto de pular. Prefiro… – Triti interrompeu a procurar por alguma outra coisa que pudesse ser mais fácil de fazer. Foi, então, que viu uma mesa com tintas e papel – Sim, eu prefiro pintar.
– Que chatice! – Reclamou o garoto.
Triti se safou, bateu retirada e se aproximou da mesa cheia de tintas. Ficou deslumbrado ao ver as pinturas que mais pareciam obras de arte concebidas por pintores talentosos.
– Nossa! Quem fez? – perguntou a uma garotinha que pintava sem parar.
– Eu mesma. Gostou?
– São lindas!
– Por que você não tenta? Acho que os seus nanobots poderão auxiliá-lo na coordenação e firmeza das mãos. Tente. – Insistiu. – Pegue o pincel assim – mostrou como segurá-lo – e deixe sua imaginação rolar.
Neste mesmo instante, a professora se aproximou com uma feição agradável e solícita:
– Olá, Triti. Vai pintar?
– Eu não sei…
– Ora, vamos lá, tente, não seja tímido. Você consegue, se tiver nanobots para isso.
Subitamente, Triti avistou o robô-inspetor. Volitava rapidamente pelo saguão do prédio em sua direção. De longe, foi possível ver que, em seu peito, uma luz vermelha piscava intermitentemente. O menino intuiu que aquilo não poderia ser nada bom. – “Será que me descobriram?” – Pensou, deixando escapar uma feição de transtorno. A professora notou prontamente que algo estava errado. A tensão aumentou quando dois outros robôs se juntaram ao primeiro.
A professora, bastante preocupada com a reação de Triti, notou uma pequenina gota de suor a escorrer de sua têmpora:
– Hei, o que é isso? Você sua? Não suamos mais. É um desperdício de água preciosa! Seus nanobots devem estar com defeito. Tenho que levá-lo ao centro de reparos.
O menino, trêmulo, deixou cair o pincel e correu em disparada pelo saguão, em direção à saída. Os robôs formaram um cerco e um dos alunos potentes saltou cerca de nove metros para interceptar Triti. Mesmo assim, numa manobra astuta, Triti deslizou por entre as pernas do garoto potente que se preparava para agarrá-lo e, assim, rolou porta afora. Correu como nunca. Com os robôs em seu encalço, saltou por detrás dos arbustos e desapareceu na tubulação. Ao chegar do outro lado, bastante ofegante e assustado, subiu na bicicleta e retornou para casa. No meio do caminho, parou diante de um antigo poço de água suja para se livrar daquele corante no cabelo.
Dias se passaram. Depois daquela confusão, as noites tornaram-se repletas de pesadelos que deixavam Triti exaurido e preocupado. Não saberia o que fazer se seu pai descobrisse. Contudo, uma coisa mais importante ocupava sua mente. Algo que superava o medo do pai: “Se não posso ser um Potente, posso ser alguém mais inteligente.”
Ganimedes chegou e, rapidamente, o menino saltou em seu colo a perguntar:
– Pai, como posso me tornar inteligente? – Para uma pergunta direta, uma resposta direta:
– Leia muito, sobre tudo o que puder.
– Posso ler seus livros?
– Depois.
– Ah, pai, por favor, quero começar agora. – Implorou.
– Está bem, está bem. Dê-me só alguns minutos para descansar. Hoje não foi um dia muito bom.
Triti estranhou, pois, raramente, Ganimedes reclamava de cansaço. O rosto sério e pálido indicava que não estava bem. Foi então que arriscou uma pergunta:
– Você está doente?
– Não, não se preocupe. É comum a gente sentir isso à medida que se fica velho. – E inclinou a cabeça para massagear a testa contraída. Depois, suspirou e disse: – Bem, vamos lá. Você conhecerá tudo sobre o universo em que vive.
Ambos desceram a escada de madeira do porão empoeirado.
O mobiliário consistia apenas de uma velha escrivaninha que há muito não era usada. Duas cadeiras surradas e montanhas de livros. Todos empilhados pelos cantos, que subiam a formar um universo de caos. Um feixe de luz passava através de uma pequena janela suja que fazia reluzir as infinitas partículas de poeira suspensa, formando uma trilha estelar em meio ao porão. Algumas altas pilhas de livros insistiam em desafiar os princípios mais elementares da gravidade.
E o aroma! Sim, típico do lugar onde só os buscadores devem entrar! Cheiro de mofo, de poeira e papel velho. No entanto, para Triti, aquele era o santuário que o tiraria da maldição de ser um Selvagem: Aquele era o perfume da intelectualidade que começava a impregnar seu sangue e sua mente.
Ao notar o êxtase do garoto, que nunca havia entrado lá, o pai foi logo explicando:
– Aqui guardo informações preciosas sobre vários assuntos: Medicina, Biologia, Química, Física, Geografia, Poesia, História e Conhecimentos gerais. Mas estou curioso. O que você procura?
– Quero aprender sobre tudo. – Mais que depressa, o menino correu em direção a uma das pilhas de livros para abrir um dos sacos contendo quatro volumes.
– Cuidado para não rasgar as páginas! – alertou o pai, com sorriso de satisfação ao ver o interesse do filho. – Fique à vontade para ler o que quiser. Preciso descansar um pouco. Divirta-se com seus novos amigos.
Afastou-se a passos incertos em direção a escada, ao mesmo tempo em que observava aquele pequenino tão interessado a revirar os volumes empoeirados. Foi quando se deixou levar pela lembrança de algo que havia lido num livro bastante antigo:
“Para um pai, a curiosidade e tagarelice dos filhos, são verdadeiras e espontâneas expressões melódicas, cheias de vida. Segurar a curiosidade de uma criança é o mesmo que tentar conter a expansão do universo.”
Finalmente, com estranha dificuldade, subiu as escadas. Em vez de seguir para o quarto, decidiu ir para o pequeno morro onde passava horas a observar as estrelas. Suas mãos trêmulas e receosas seguravam um envelope, que foi aberto de forma temerária. Era um diagnóstico clínico, que exibia o nome de um mal, imerecida doença incurável pelos meios naturais e que o corroía por dentro: um tumor cerebral. A tristeza e o medo lhe assolaram a alma, e isso o fez mergulhar em profunda ponderação:
“Foi iniciada a contagem regressiva. Sei que cometi um grave erro, mas é incrível como nesta hora percebemos que, mesmo vivendo num mundo de desigualdades, existe algo inabalável: a beleza da vida, a qual sempre respeitei. O que mais dói é saber que meu filho, tão cedo, ficará sem o pai. Farei falta em seus momentos mais importantes. Na verdade, eu é que ficarei órfão. Meu tempo passou. Será que fui um bom pai? Será que deveria ter passado mais tempo com ele? Ou, quem sabe, lhe abraçado mais, escutado mais sua alma enquanto dormia? Penso que a natureza, apesar de sábia, está me exilando de você, meu filho. Peço que a vida lhe abençoe com sabedoria e felicidade, que não estão contidas em nenhuma máquina ou coisa. Quanto a mim, só me resta esperar, pois meu carrasco aguarda. Poderia fazer algo a respeito, sim, mas não mudarei o curso natural da minha história.”
Ganimedes faleceu três meses depois.