O Circo de Pennywise
Capítulo 1
A viagem de Rafa
Acredite em mim quando digo que a vida não é lá essas coisas. Dizem por aí que sou um menino de muita sorte; filho de gente rica e viajando para os Estado Unido em pleno ano letivo. Eu deveria tá feliz, né? Só que não. Acho que minha família tá fazendo isso para se livrar de mim.
Depois que meus pais se divorciaram me tornei um peso de papel; uma coisa que se joga de um lado para o outro. Vivem sem paciência; com enxaqueca, reclamando da vida e do mundo. A única coisa pelo qual minha mãe se interessa, é pela garotinha do papai – uma moça mais jovem do que ela que fisgou o velho de jeito! Passa a metade do dia vigiando-a pelo Facebook, para depois enfiar a cara na bebida. Diz para todos da família que já sou bem crescidinho – tenho 12 anos – e posso me virar sozinho. Minha avó deu de ombros para a conversa fiada dela e me mandou passar uns meses na casa da Tia Maria Thereza. Ela vive num estado americano chamado de Maine. Lá é frio, mas estou indo no verão americano (menos mal, porque odeio neve). Isso não me anima, apesar de saber que o Tio Heitor vai estar lá. Eu gosto dele. É um cara divertido, cheio de histórias para contar. Bem diferente do meu pai; que nunca mais veio me ver depois da separação. Minha mãe diz que pelo menos ele paga a pensão. Meus pais são estranhos, eu sei. Eu apenas observo. Nem tento falar com eles. Sou como um dos seus carros de luxo, tenho que ser higienizado e levado ao mecânico de tempos em tempos. Eu preciso tá bem apessoado e com saúde. Afinal, sou o único herdeiro da família.
A despeito do que contei, tenho medo de avião. E viajar sozinho não me deixa nada satisfeito. A aeromoça me olha com a cara artificial dos “Free Shopping”. Acha que vou aprontar alguma coisa na classe dos “proletas”. Mais um motivo para me revoltar com meus pais: tinha que ser na classe econômica? Que muquiranas! Aqui a comida é ruim e os assentos apertados. Preferiria ficar lá na frente, com as poltronas largas e sobremesas de chocolate. Talvez meu pai esteja economizando. Sua menininha custa caro, bem mais caro do que eu.
O avião finalmente aterrissou em Portland. A aeromoça conversa comigo em inglês. Dou de ombros. Então ela volta para o português. Devolvo com um sorriso gente boa.
_ Sua tia vem buscá-lo na área Vip. Espere sentadinho no sofá. Têm várias revistinhas para pintar no salão. Pegue uma enquanto espera.
Revistinha para pintar? Essa é boa.
A mulher me entregou minha mochila. Coloquei-a perto do sofá e olhei para as paredes brancas do aeroporto. São como neve. Me arrepiei só de lembrar do frio que faz no Maine
***
Esperar por minha Tia é como esperar por um título do Vasco. Ela nunca chega. E mesmo sabendo que alguém vai me buscar, fico nervoso. Dessa vez não estou no Balneário Camburiú, mas num país de língua estrangeira e regras rígidas. Ela tinha que se atrasar justo hoje? A única coisa que posso fazer é esperar. Não tenho para onde ir. Nem se eu tivesse tentaria chegar sozinho. Não conheço essa tal de Portland, e pelo que vejo da janela, é uma cidade bem grande.
Tia Maria Tereza mora numa cidadezinha chamada de Le Dio (perto de outra cidadezinha chamada de Derry). Ela mexe com construção civil desde que me conheço por gente. Tem uma boa clientela e ganha muito dinheiro com isso. Vive viajando para fazer suas coisas, e tem sempre o Tio Heitor para ajudá-la com as peças de madeira. É bem verdade que não são casado, vivem juntos perto do centro de Le Dio. Mas é como se fossem. Quando Tia Maitê comunicou para a família do seu “casamento” com o marceneiro, não faltaram críticas. Mamãe foi uma das defensoras da moral e dos bons costumes. Acho que virou uma ex-esposa por causa da sua boca de caçapa. Ela julga demais os outros, e Deus castiga quem tem língua grande. Só sei que Titia peitou todo mundo e ficou com Heitor. Acho que não se arrependeu. Os dois são mais felizes que o casal cheio da grana que morava lá em casa. Um prato indigesto para mamãe engolir.
Só sei que espero, espero e espero. A sala Vip já trocou de gente umas três vezes e eu tô sentadinho no sofá olhando as revistas de pintar. Não resisto e pego uma. Só desenhos bestas da Disney. Não vou pintar princesinhas e sapos, não mesmo.
Vejo o Tio Heitor vindo pelo corredor. Ele tá assobiando uma música do Guns’n’ Roses. Começo a rir. Todo mundo olha para mim e para ele. Corro para abraçá-lo.
_ You’ve grown, man!
Franzi a testa para não decifrar os códigos.
_ Você cresceu, Cara! _ Ele revirou o meu cabelo. _ Quando vai aprender a falar Inglês, Rafa?
_ Nunca! _ Disse apontando o dedo para o nariz dele. _ Sou um comunista, e comunistas não falam inglês.
Titio me olhou divertido. Depois cruzou os braços sobre o peito.
_ You’re getting smart, man! Você por um acaso sabe o que é comunismo?
_Tenho uma ideia, sim senhor. Mas vovô se considerava um. Então tô de boas.
_ Truth.
Ele bagunçou meu cabelo de novo.
_ Vamos para casa? Ou quer comer alguma coisa antes de pegarmos a estrada?
_ Para casa.
_ You’re the boss!
_Yes!
Ele colocou minhas coisas nos ombros. Caminhamos pelo aeroporto com aquela marra de latino. Tio Heitor não tinha frescuras e nem eu. Tava de boas ao lado dele. Por algumas horas esqueci do meu pai e da minha mãe. Trocando em miúdos: tava feliz em ficar longe deles.
***
O Maine é de cair o queixo. Tem aquele ar cheiroso, com estradas largas e parques limpos. Tem muita gente branca andando de bicicleta nas ruas, bem diferente de São Paulo com suas ruas sombrias e encardidas (se vovô estivesse dentro desse carro me faria um dos seu sermões). Há muitos pinheiros nos morretes e o sol bate no carro com uma intensidade luminosa. É um lugar bonito e quente – pelo menos por enquanto. Titia disse para não me preocupar, que o frio vai demorar para chegar. Espero que seja verdade, porque não me dei ao trabalho de pesquisar sobre o clima do Maine no Google. Mas como ela nunca mentiu para mim, estou de boas.
Tio Heitor não para de tagarelar e sorrir. Eu dou a entender que estou prestando atenção nele, só que não. Prefiro olhar pela janela, para ver se vejo algum animal nativo dos Estados Unidos. Acho que vou ser veterinário quando crescer. Para mamãe, isso não dá dinheiro. Pelo visto nem o curso de Biomedicina dela, já que chora pitangas para o meu pai o tempo todo. Mulher que não trabalha é foda! Fica estranha como minha mãe. Todo mundo tem que ter o que fazer. Cabeça vazia é oficina do diabo, certo?
O tio ficou quieto olhando para a estrada. Quis me deixar em paz por causa das horas que passei dentro do avião. Concluiu sozinho com seus botões que estou cansado, só que não. Encostei a cabeça no vidro da janela do carro para olhar para fora. O lugar é lindo! Digo que é colorido, com suas árvores de folhagem diferente. É parecido com uma história em quadrinhos, daquelas que lemos no quinto ano e nunca mais esquecemos. É um cenário de Hollywood feito pelas mãos de Deus (Que piegas, Rafael).
Num descampado estranho, no meio dos pinheiros, vejo o reboco de alguma coisa: um borrado de tintas no meio de um campo que parecia macerado pelo fogo. Aquilo não combina com o Maine. É estranho e soturno. Olho para o meu Tio. Parece que ainda não percebeu o descampado. Também pudera! Tá perdido em outro mundo.
O carro avança e começo a entender os seus contornos. Têm cores fortes na horizontal, como uma camisa listrada presa por cordas ao chão. Possui duas torres com a bandeira de um palhaço. Aquilo é um circo?
-Tio, tio, olha lá? _ Cutuquei Tio Heitor para que pudesse ver também.
Ele freou assim que viu o descampado.
_ Jesus, Maria e José! Ele é enorme!
E era mesmo. Tão grande quanto um parque de diversões.
_ O que acha que está fazendo ali?
_ O que você acha, Rafa? O circo chegou em Le Dio!
Engraçadinho.
_ Não é um circo muito grande para uma cidade tão pequena?Vão levar prejuízo.
Tio Heitor olhou para as torres.
_ Quanto maior melhor _ o sorriso dele não me convenceu.
_ Não têm carros e nem caminhões estacionados. Como as coisas chegaram até lá?
_ Provavelmente os carros e caminhões foram levados para outro lugar. Talvez construam barracas em volta do Circo, por isso precisam esvaziar o estacionamento.
_ Pode ser. O que é aquilo ao redor dele? Parece que o circo tá flutuando.
_ Acho que é neblina. Isso é comum nessa época do ano.
_ Só em volta do circo?
Tio Heitor ficou sério ao olhar novamente para o descampado. Depois acelerou o carro. Tia Maitê nos esperava para o almoço.
_ Se eu te contar um coisa vai fazer xixi nas calças, Rafa.
_ O quê? O quê?
Sou curioso, fazer o quê?
_ Quando passei por aqui não havia circo e nem descampado.
Ele piscou para mim.
Filho da mãe! Aquilo quase me fez engolir a língua. Mas acho que ele tá brincando, né? O Tio Heitor é muito de boas.
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