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O Circo de Pennywise – Capítulo 7 – A angústia de Beto

O Circo de Pennywise

Capítulo 7

A angústia de Beto

O Circo parecia um parque de diversões. Tinha barracas de cachorro quente, pipoca, algodão doce, Tiro ao alvo e Sala dos Espelhos. Se esbarrar num Freak Show, saio correndo para nunca mais voltar. Com certeza, Isa entraria com seu narizinho arrebitado. Gostaria de ser corajoso como ela, mas não sou. Pareço um boneco de posto de gasolina quando olho para os cabelos vermelhos daquelas coisas diminutas que chamam de Anões. Engoli a saliva longe dela e olhei para  Beto pelo canto do olho. Parecia hipnotizado pelas luzes que vinham do teto. Parecíamos dentro de um caleidoscópio sombrio. Não se via a lona que cobria o circo, apenas um vazio escuro, como que dentro de um buraco de minhocas. As barracas de comida exalavam o cheiro característico da pipoca e do cachorro quente. Cutuquei Isa e pedi para que sentisse o aroma. Ela meneou os ombros, sem me entender. Suspirei para tentar diminuir minha tremedeira nas pernas.

Beto encontrou três lugares na frente, bem no meio de num imenso palco que se estendia pelas barracas.  Havia uma carranca de palhaço ao fundo, com a boca aberta e língua para fora. A despeito disso, seus caninos pareciam com os de um vampiro. Me sentei no meio dos dois. Comecei a roer as unhas, esperando pelo início do espetáculo.

_ Sua coulrofobia voltou? _ Isa era uma pedra de gelo.

_ Não sei como consegue não demonstrar o que sente. Acho que não tem coração.

Consegui tirar o riso da cara dela.

_ Meu coração não te diz respeito.

_ Ótimo! Então não me enche o saco!

Ela arregalou os olhos para mim. Virei o rosto para não encará-la. Como se não bastasse os monstros daquele circo, tinha também a menina monstro ao lado. Grande merda! Pelo visto Beto não prestou atenção na nossa prosa, porque continuava com os olhos vidrados no teto. De repente as luzes se apagaram. Apertei a mão de Isa. Ela deixou que o fizesse. Percebi que também tremia como um boneco de posto de gasolina.

_ Senhoras e Senhores! _ Uma luz se formou no centro do palco. Do chão subiu o apresentador como um boneco de mola saindo da caixa. _ Conheçam as atrações do Circo Lahetô!

Malabares, dançarinas e alguns anões desceram do teto.

_ Uau! _ O olhar de admiração de Beto me fez roer ainda mais as unhas.

O apresentador dançava ao som de uma trombeta Logo vieram as palmas ritmadas e o tilintar do carro de som. Tudo parecia normal dentro de toda aquela anormalidade. Apenas os dentes pontiagudos dos artistas destoava da apresentação fofa. Todos tinham a mesma dentadura, tão pontuda como a mandíbula de um predador.

Admito que fiquei impressionado com o que vi. Tive a certeza que tudo aquilo não era humano. Os anões demonstravam a desenvoltura de bailarinos do Bolshoi, enquanto os trapezistas pulavam sem o auxílio de cordas. Imagine o Circo de Soleil ligado numa tomada de 220 volts.  Isso definia a apresentação. Por outro lado havia o palhaço, que mesmo sem mostrar sua cara, era assustador. As luzes se apagaram novamente. Dessa vez não quis segurar na mão de Isa. “Demonstre um pouco de coragem, Rafa. Só um pouquinho dela.” O Land Rover do Tio Heitor entrou no  palco. O pintaram de verde e desenharam a cara do palhaço trevoso nele. Olhei para Beto e Isa. Vi seus queixos no chão, assim como o meu.

_ Não pode ser _ disse para Isa.

_ É  o carro do Sr. Heitor?

_ Bobagem! Land Rover são como praga no Maine. Provavelmente esse foi comprado num ferro velho em Derry.

Os palhacinhos que saíram de dentro dele faziam mímicas para a plateia. Sei que muitos reconheceram o carro do marceneiro e da arquiteta, mas preferiram continuar sendo os verdadeiros palhaços daquele circo. Encarei aqueles anões medonhos com sangue nos olhos. Eles mostraram seus dentinhos afiados e suas línguas bifurcadas para mim. Me encolhi na poltrona. Eram assustadores! Mesmo acabrunhado no meu canto, atentei para um cutucar incomum nas costelas.

_ O que foi? _ Perguntei para Isa antes que quebrasse meu tórax.

_ Cadê o Beto?

Olhei para o lado. Ele não estava sentado na cadeira. Tentei enxergá-lo através das luzes do Circo. Ele não estava na arquibancada.

_ Eu não o vi saindo. Talvez tenha ido ao banheiro.

Isa me deixou de pé olhando para o nada.

_ Hei? _ Gritei para que pudesse me ouvir. _ Aonde você vai?

Ela não me deu ouvidos e continuou correndo pela arquibancada. Tava nervosa, assim como minhas unhas corroídas até o talo. Comecei a sentir frio. Havia me esquecido dele.

***

O garoto seguia o anão – que corria entre as barracas do circo. As pessoas levavam um susto quando a criatura de pés diminuto passava por eles.  Ela fazia questão de empurrá-las com as mãos, jogando-as para o lado. Beto gargalhava, deixando desconcertados aqueles que levavam o safanão. Ele o seguia entre os vendedores de lembrancinhas. O menino não atentou para o fato de todos terem a mesma carranca, sem sequer mudar a cor da boca (todos vestiam as mesmas roupas e calçavam os mesmos sapato). Pareciam replicantes, com a mesma aparência e tamanho. Tinham um quê de sombrio na cor dos seu cabelos (de um vermelho intenso). Beto se enfiou no meio da plateia para tentar alcançar o anão. Ele sumiu por um instante, para reaparecer na porta da Sala dos Espelhos.

_ Venha, Beto! Não tenha medo.  Quero te mostrar uma coisa.

A boca de dentes pontiagudos sorriu. Beto retribuiu sem ligar para a carranca do anão. A criatura entrou na Sala dos Espelhos acenando para ele. O menino se aproximou com receio do que tinha lá dentro. 

_  Você tá aí dentro? – Perguntou, se esquecendo do Inglês.

_ Quero te mostrar uma coisa, garoto. Entre, não tenha medo. Somos apenas palhaços de circo

A voz parecia sonora demais para alguém tão pequeno.

Beto  não se atentou  para a falta do sotaque francês; e muito menos para o fato do anão falar tão bem o português. Ele entrou para ver como era lá dentro. Havia espelhos na parede, no teto e na porta. Quando Beto avançava, outro espelho aparecia atrás dele, impedindo-o de voltar. Ele tinha que continuar caminhando, tomando cuidado para não se cortar nos vãos apertados entre um espelho e outro. 

_ Olhe para frente, garoto. O que vê? _ A voz anasalada adquiriu um tom sombrio.

Beto se viu com seis anos de idade – pequeno e frágil no colo do pai. 

_ Isso faz muito tempo. Eu não sou mais assim.

A risada do anão fez com que olhasse para o espelho da esquerda. O uniforme da escola era grande demais para caber nele, assim como a matula em que carregava seus livros. Patrícia sorria para ele num dos espelhos do fundo.

_ Ser pobre não é defeito. Eu …

Sua voz ecoou pela sala.

_ Que outras mentiras vai contar, Beto?

Patrícia reapareceu no espelho da frente. Ela mantinha os braços cruzados sobre o peito e o semblante assustado.

_ Ela se importa, Beto? Ela já se importou com você?

Os passos do anão vinham do fundo.

_ Minha mãe me ama.

As lufadas do circo soaram tão sonora quanto os trovões de uma tempestade.

_ Quantas mentiras vai nos contar, garoto? Vamos, nos conte a verdade. Diga, diga.

Beto tentava encontrar uma saída. Quando trocava de lugar, outros  espelhos apareciam atrás dele.

_ Cadê a porta? Eu quero sair daqui.

_ Não tenha medo, filho. Vim te buscar.

O pai de Beto apareceu no espelho ao fundo.

_ Pai? É você, pai?

_ Claro, filho! Quem mais seria? Quem te ama mais que tudo nessa vida?

Beto enxugou às lágrimas com o dorso das mãos. Ele se aproximou da imagem refletida no espelho. O sorriso no rosto da besta destoava do pai que conhecia. Ele nunca sorria, não para os filhos.

_ Isa disse que nos abandonou para viver sozinho no México com o dinheiro da mamãe.

_ Isso não é verdade. Foi ela que tirou você de mim _ a imagem apontava para uma Patrícia refletida no outro espelho.

_ Não acredite nele, filho. Seu pai nunca quis você. Me pediu para tirá-lo quando era uma sementinha dentro de mim.

_ Mentira! Uma puta de uma mentira!

Beto era muito pequeno quando escutou a conversa dos pais. Mesmo assim entendera o motivo da discussão: brigavam por causa dos filhos e de como arrumar dinheiro para sustentá-los.

_ Eu disse para tirá-lo. Você insistiu com o menino.

_ Você é um monte de merda, sabia?

Beto tampou os ouvidos para não relembrar o passado; para não sofrer tudo de novo. Mesmo sabendo que o pai nunca desejou seu nascimento, o amava de forma incondicional. Sua mãe nunca o perdoara por isso.

_ Você tem inveja dele _ Beto chegou perto do reflexo da mãe. _ Eu quis viver com papai e você não deixou!

_ Ele nunca te quis, garoto. Olha para ele? Vejo como ri da sua cara de idiota.

O pai de Beto  gargalhava com seu dentes pontiagudos.

_ Não!!! 

Beto quebrou o espelho de Patrícia com as mãos. Quando virou para o espelho pai, ele ainda gargalhava.

_ Eu não quero vê-los nunca mais! Nunca mais!

Com as mãos empapadas de sangue, sentiu o trepidar do teto. Os espelhos começavam a rachar, esparramando cacos pelo chão. Um deles acertou o rosto de Beto.

_ Isa! _ Gritou batendo nos espelhos ainda intactos. _ Rafa! Socorro!

O teto despencou em cima dele.

_ Socorro! Socorro!

Os pedaços de vidro acertaram suas costas, pernas e braços. A bruma que desceu do teto revirava os cacos, cortando seu rosto. O garoto tentava se esconder dos estilhaços com as mãos. Seu reflexo no que sobrara de um dos espelho fez com que gritasse por entre os dedos. Seus lábios estavam desconfigurados pelos cortes e suas roupas sujas de sangue. As luzes se apagaram de repente e  seu respirar ficou profundo. Todos os pedaços dos espelhos refletiam o anão. Beto sentia o frio do sangue no corpo e o trepidar das entranhas do circo. A besta sorria de forma frenética, excitada pelo cheiro da morte. O menino começou a se arrastar quando o enxame de anões saltou dos espelhos sobre ele num frenesi de mordidas. As criaturas grotescas se alimentavam dele.

_ Ahhhhhh! Isaaaaaaaaa!

Na iminência da morte, Beto lembrou das últimas palavras do seu pai.

_ Eu volto para te buscar, filho. Amo você mais que tudo nessa vida.

Ele sorriu para o anão.

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