Dois anos se passaram e o país encontrava-se imerso em paz absoluta. Cidadãos podiam passear nas ruas sem temerem os assaltos. Não importava a hora, podia ser um final de tarde, noite ou até mesmo madrugada. Nada para se preocupar. Deixava-se o carro estacionado com as chaves no contato e portas escancaradas o dia inteiro. Ninguém ousaria tocar um dedo sequer na propriedade alheia.
O sentido de justiça agora era percebido de maneira diferente pela população. O julgamento estava nas mãos dos cidadãos comuns. Qualquer que fosse o delito, o povo executaria a pena imediatamente e in loco. Casos de furto, a pena prevista para ser aplicada era a amputação de uma das mãos. Já em caso de furto seguido de agressão, amputação de ambas as mãos. Assalto seguido de morte, a execução seria inevitável. Estupro, morte lenta e dolorosa. Transgressões como xingamentos no trânsito, língua decepada. E assim por diante. Ficou acordado que a polícia interviria somente para documentar a ocorrência.
Dormir com as portas e janelas abertas já era costume até mesmo nas grandes cidades. O sonho tão almejado, finalmente tornou-se realidade num dos países considerado o mais violento do mundo.
Atílio sentia-se o responsável – e era – pela mudança radical. Apesar disso, esse era um segredo que deveria manter a sete chaves. Contudo, o coração continuava amargurado. A saudade de Míriam pesava. A solidão não lhe dava tréguas. A rotina era entediante, mas, o que fazer? Tinha de se acostumar a ela.
Um dia, Atílio fora incumbido de verificar uma estrutura de um dos andares do prédio da prefeitura. Novas estruturas modulares pré-fabricadas proporcionaram uma ampliação na construção em tempo recorde. No entanto, uma pequena rachadura preocupou o técnico de edificações.
Um dia frio. Ventava e a fina garoa congelava até os ossos. Poucas pessoas eram vistas pelas ruas. As que se arriscavam, não apresentavam uma feição amigável. Atílio chegou à recepção trêmulo. Pediu, enquanto assoprava as mãos na tentativa inútil de aquecê-las, para falar com o técnico. Solicitou também a presença do engenheiro-chefe.
Ambos estavam em reunião com o vice-prefeito, mas Atílio aguardaria na sala de reuniões. O frio induzia a todos a falarem baixo, a não rirem, e vez ou outra forçavam um olhar de breve educação. Atílio se dirigiu à sala e sentou-se numa cadeira confortável. O ambiente aquecido era agradável. Mas o tempo se estendeu e a impaciência exigiu que Atílio saísse da sala.
Bem à sua frente surge Gisel, a secretária do Prefeito. Uma jovem bonita cujo sorriso contrastava da sisudez daquele dia cinza. O inverno parecia ter se dissipado naquele momento. A impaciência deu lugar ao descompasso educado de Atílio, como quem se sente culpado por ter sido tão indelicado.
– O senhor deseja um café? – Perguntou Gisel a esbanjar uma educação toda especial. Atílio gaguejou que sim. – Por favor, então fique à vontade. – Completou a moça. – O engenheiro precisou se reunir com o prefeito. Ele me pediu para que lhe avisasse que demorará apenas uns cinco minutos.
– Tudo bem, espero. Respondeu com os olhos fixados nos dela.
Gisel pessoalmente trouxe uma xícara de café bem quente. De certa forma, para Atílio, aquilo pareceu um sinal de interesse. Algo, tocara o coração, de ambos. Um ânimo súbito que os aproximou, evidente também pelo tom de voz suave que os dois passaram a usar enquanto conversavam.
Enfim, a reunião aconteceu e o problema foi resolvido. Tudo breve e passageiro, menos o sentimento de Gisel e Atílio. Assim que deixou o gabinete do prefeito, Atílio despediu-se da meiga secretária. Tiveram uma longa conversa. Sorrisos, frases delicadas e bem medidas, conquistaram o coração de ambos.
O inevitável convite para sair foi aceito por Gisel. Daquele momento em diante tornaram-se íntimos. Ele já não se sentia mais um homem entediado. Ao contrário, esboçava uma alegria espontânea, positiva e bastante produtiva. Depois de algumas saídas juntos, ambos decidiram aprofundar a relação. Gisel convidou Atílio para jantar em seu apartamento.
É claro que sentiu-se lisonjeado e, sem hesitar, aceitou. Numa sexta-feira, ela preparou um jantar, cujo cardápio causaria inveja ao mais exigente chefe de cozinha. Atílio chegou um pouco antes da hora marcada. Gisel terminava a torta de creme de camarão quando, da janela da cozinha, viu-o chegar. Ao ouvir a campainha, mal pôde se conter. Precipitou-se abrir a porta e com voz meiga o abraçou. Atílio parou e ficou algum tempo olhando-a como quem se recorda de algo.
Gisel o fez entrar. O ambiente estava bastante agradável. Prometia ser um momento mágico. Depois de duas taças de vinho, a cortina da formalidade cedeu. A conversa rumou para leviandades agradáveis. Não interessava entrar em detalhes do passado, até que ela o segurou pela mão, sorriu e aproximou-se mais. Atílio correspondeu, temendo que um conflito de sentimentos pudesse estragar tudo.
A conversa era dita, porém não mais se escutavam. O desejo cresceu. Ambos se olharam com carinho, os lábios se encontraram e o beijo selou a noite. Isso aplacou o coração angustiado de Atílio. Após duas horas, despediram-se com a promessa de que voltariam a se ver no dia seguinte.
Atílio sente-se com medo. Medo no fundo, de ser punido pela maior mudança que o país teria: a instauração de uma Nova Ordem baseada na justiça pelas próprias mãos.
Atílio sente-se com medo. Medo no fundo, de ser punido pela maior mudança que o país teria: a instauração de uma Nova Ordem baseada na justiça pelas próprias mãos.