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O Dia da Faxina – Capítulo 11

 

Treze horas do dia seguinte. Gisel havia combinado de se encontrar com Atílio na igreja, próxima à Prefeitura. Era lá que costumava ir antes do almoço. Ao chegar, Atílio avistou-a sentada num dos bancos bem próximo ao altar. Ele se aproximou bem no momento em que ela rezava. Ao percebê-lo ao seu lado, Gisel interrompeu a oração, olhou-o, sorriu e prosseguiu do ponto em que havia parado. Atílio respeitosamente sentou-se e procurou aquietar-se. Uma ou duas vezes, ela interrompeu a concentração e lhe sorriu. Ele retribuiu com olhar meigo. Gisel, então, perguntou:

– Você já rezou hoje?

–  Não. Nunca rezei.

– Deveria. Faz bem ao coração.

– Não acredito em ninguém que reza.

– Por que não? Seu bobo.

– Viu? Quem reza não fala palavrões.

– Venha, ajoelhe-se aqui ao meu lado.

Atílio, meio sem jeito, olhou para os lados e baixou a cabeça. De joelhos e com as mãos unidas, balbuciou algumas frases. Neste tropeço de palavras que Atílio teve uma visão. Mais uma vez Míriam surgiu, vestida de branco e com olhar triste. Ela movia a boca, mas as palavras não eram ouvidas. Por mais que tentasse, Atílio não conseguia entendê-la. Desapareceu aos poucos, deixando apenas dúvidas.

Quando Gisel terminou, olhou para Atílio, sorriu e abraçou-o. No entanto, ele permaneceu duro, frio, atordoado. Em contrapartida, ela, sem notar absolutamente nada, parecia uma menina. Estava feliz. Abraçava-o sempre que tinha oportunidade e beijava-o no rosto.

Decidiram ir a um restaurante próximo. Enquanto almoçavam, o celular de Atílio tocou. Era a sua secretária avisando-o de que a reunião estava confirmada para as quinze horas. Já passava das quatorze e dez. Atílio precisou despedir-se rapidamente, com a promessa de que veria Gisel logo mais à noite.

A caminho do escritório, Atílio encontrou Vinícius:

– E aí, meu amigo. Faz tempo, hein?

– Faz tempo mesmo. Como vai?

– Na boa. Parece que eu entrei em férias permanentes. Nada pra fazer. Só pequenas ocorrências: o gato que desapareceu, o marido que traçou a vizinha, essas coisas. E você? Trabalhando muito?

– Muito.

– Está com uma aparência melhor. Parece mais alegrinho. Já sei: gata nova no pedaço. É isso aí, rapaz!

– Acertou.

– Posso saber quem é?

– Você não a conhece.

– Fala.

– Trabalha na prefeitura. Secretária do Prefeito.

– Quem? Não brinca que é a Gisel!

– Ela mesma.

– Opa meu celular está tocando. Deixe-me ver… Ih! Preciso ir. A gente se fala. Cuidado. Tchau.

“Cuidado?” pensou Atílio. “Com o quê?”

A semana passou de maneira tranquila e mais uma vez a sexta-feira chegou. O casal decidiu fazer um passeio diferente. Algo impossível de ser feito há um ano: Passear de mãos dadas na Praça da República às duas horas da manhã. Seria uma aventura e Atílio passaria na casa de Gisel para apanhá-la.

E lá se foram para o passeio. Ao chegarem, depararam-se com outro mundo. Tudo havia modificado. A praça fora transformada num sonho, um lugar maravilhoso, florido e iluminado. Casais de namorados e até famílias inteiras caminhavam em total tranquilidade, felizes. O local não mais abrigava assaltantes de tocaia. No lugar, animais exóticos, aves coloridas e plantas raras.

Para o espanto do casal, a educação imperava e as pessoas, ao cruzarem o caminho, cumprimentavam-se com um respeitoso aceno de mãos, discreta mesura e um satisfeito “bom dia” às duas horas da madrugada.

Viam-se aqui e outros ali adiante, policiais devidamente fardados, imbuídos de boa educação e respeito. Outra grande surpresa, foi perceber que pessoas de todas as classes circulavam por ali, sem o menor sinal de discriminação. Era o verdadeiro paraíso na Terra. Atílio, antes cheio de estranheza, viu-se num mundo maravilhoso. Sentiu que aquilo fazia parte da sua criação. “Graças a Célia.” – Pensou.

A inquietação e melancolia de antes desapareceram por completo. Agora via apenas Gisel, por quem nutria profunda afeição, carinho e respeito. Poderia até arriscar dizer que já se tratava de amor. Não havia mais por que duvidar disso. Ele se sentia seguro para compartilhar sua vida com um novo amor. E a recíproca era verdadeira. Prometia ser um futuro promissor e feliz.

Já às quatro da manhã, depois de passearem e namorarem, decidiram retornar para o apartamento de Gisel. Ao longo do caminho do metrô para casa, Atílio, mergulhado em seus pensamentos, fazia uma breve retrospectiva de sua vida. Sentia-se profundamente orgulhoso com o movimento que provocara. Era algo que tinha que ser compartilhado com seu novo amor, afinal, foi graças ao seu plano que a felicidade retornara aos corações de um povo tão sofrido e solapado por forças obscuras. Ele, Atílio, sentia-se como um libertador, o salvador de uma nação.

Contudo, intuía que seria melhor calar-se. O anonimato o protegeria, com certeza. Todo cuidado era pouco, pois, Atílio foi o pivô da morte de milhares de pessoas. Criminosos, mas pessoas. E também fora o motivo da população ter assumido as leis nas ruas. Realmente seria prudente manter-se quieto.

No apartamento, Gisel preparou um chocolate quente. Atílio tentou se despedir para deixá-la descansar naquela nascente manhã de sábado, mas ela insistiu que ficasse. Não precisou pedir duas vezes. Enquanto foi buscar as xícaras na cozinha, Atílio permaneceu sentado no sofá da sala, ainda encantado pela autoconfiança, graça e desenvoltura de Gisel. Ela combinava etiqueta com sensualidade. Perfeita demais para ser verdade. Essa fusão de qualidades só poderia resultar em paixão profunda.

Ela sentia essa mesma admiração por Atílio e, por isso, estava disposta a amá-lo ainda mais. Já era hora de se apresentarem ao mundo. E depois de um gole de chocolate quente servido com um beijo na boca, Atílio convidou Gisel para sair à noite. E entre elogios e carícias, com o rosto corado, ela concordou.

Às onze horas da manhã, Atílio deixou o apartamento. Retornou à sua casa e já desejoso de rever sua paixão. Decidiu que naquela noite levaria Gisel dançar. O tempo voou. Era aproximadamente vinte horas quando Atílio chegou. Estacionou em frente do prédio e não demorou para que Gisel aparecesse. Assim que se viram, cumprimentaram-se com sorrisos e um beijo apaixonado. Estava linda. Curiosa, perguntou para onde iriam. Atílio preferiu manter segredo. Deveria ser surpresa. Com certeza, seria o lugar mais caro da cidade. Aquela noite seria marcante para ambos.

O caminho foi preenchido com várias e insistentes solicitações de Gisel para que o namorado revelasse o segredo. Não demorou a chegarem. Ali estava: o prédio mais novo e sensacional da maior cidade da América do Sul. O famoso arranha-céu de cento e oitenta andares, a Torre Maserati.

Carros lindíssimos enfeitavam a vitrine do prédio. O sistema de estacionamento dispensava os inconvenientes manobristas. Mecanismos inteligentes incumbiam-se do serviço. A cobertura do prédio era o local onde iriam celebrar a noite. A casa estava lotada. Celebridades e pessoas importantes tornavam o local ainda mais emocionante. Gisel e Atílio dançaram a noite toda. Cansados, foram à ampla varanda onde pretendiam ver o nascer do Sol regado a um excelente vinho francês.

– Essa noite é especial. – Disse Gisel. Atílio concordou aninhando-a em seus braços.

– Como é bom não termos mais receio de sair de casa! Isso nos dá a chance de sentirmos a vida. De vivê-la sem medo. – Disse Atílio.

– Tudo graças ao povo que depois de longos anos de violência resolveu dar um basta em tudo isso.

– Bem, alguém começou.

– Aquela mocinha… como era o nome dela? Ela foi citada inclusive em todos os jornais. Ninguém sabe quem ela realmente é.

– Lúcia.

– Isso! Graças a ela é que estamos aqui juntinhos, eu e você

– Graças a mim.

– Que estamos aqui? Claro que sim. Você é que me fez essa surpresa…

– Não é isso que eu quis dizer. É que… eu sou Lúcia.

– Como assim você é Lúcia? Bebeu demais, amor.

– É sério! Eu me fiz passar por essa tal de Lúcia. É um perfil fake.

– Acho que eu é que bebi demais. Não consigo entender o que você quer dizer.

– Minha esposa foi assassinada. Eu precisava me vingar. Então, arquitetei um plano para que uma cratera se formasse bem debaixo do presídio. E deu certo. O complexo inteiro foi engolido. Achei nos escombros uma identidade. Era de uma moça, uma tal de Célia. Então, para que não me rastreassem, comprei um computador em nome dela e criei um perfil offline. Aí, eu, ou melhor, Célia, criou um perfil falso. Usei o nome Lúcia. E foi assim que tudo começou. Movimentei milhares de pessoas. Eu tinha que dar o troco naquela cambada de gente desocupada que só sabe prejudicar a vida dos outros.

Gisel ficou ali parada, de braços caídos, quieta. O sorriso de antes foi substituído por uma densa sombra. Sua beleza espontânea se apagou. No auge emocional da explicação, Gisel olhava Atílio agora como um estranho. Seus lábios comprimiram, até que Atílio interrompeu e indagou:

– Você está séria. O que houve?

– Nada. – Disse com voz contraída quase abafada e a enxugar os cantos dos olhos.

– Mas você está chorando! Falei alguma coisa…

– Falou. Várias. Mas tudo bem.

– Por que você está assim, então?

– Porque… a gente nunca sabe o que os nossos atos podem fazer às outras pessoas.

Ela deu as costas e caminhou apressadamente em direção à saída. Atílio a seguiu sem saber o que dizer. Solicitaram o carro e o caminho de volta ao apartamento foi silencioso. Gisel não permitiu que Atílio entrasse. Fechou a porta abruptamente e ele permaneceu ali de pé, estático, pensativo. Desistiu de tentar entender o que acontecia com sua amada. Entrou no carro e foi para casa.
A alegria de antes simplesmente evanesceu para dar lugar somente a dúvidas. E é neste momento que o raciocínio lógico e frio começa a assumir o comando. O que antes era apenas flores e amores, agora, restava apenas desconfiança. Algo tinha de ser explicado. Aquela atitude inesperada indicava claramente algo de errado. O dia já amanhecia e Atílio queria dizer a Gisel muitas coisas. Quem sabe se explicar e por que não questionar. Sentiu vontade de chorar, mas isso não ajudaria em nada. Sua felicidade fora terminada em questão de minutos.

“O que foi que aconteceu?” – Se perguntava. Afinal Atílio tinha libertado o país daquela onda de violência.

“E por que ela se ofendeu daquele jeito?” – Pensava enquanto caminhava pela sala de um lado para o outro. Subitamente Atílio se lembrou de Vinícius: “Aquele dia que nos encontramos… Ele conhece Gisel. Será que ele sabe de alguma coisa?”

“Ele ficou estranho quando citou seu nome. Desviou o assunto usando o celular como desculpa. Aliás, ela nunca falou nada sobre a sua vida, seu passado.”

 

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