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O Dia da Faxina – Capítulo 4

Vinham-lhe à mente lembranças intermitentes de Miriam, o combustível que alimentava a revolta. Seu plano tomava forma e ficava cada vez mais claro. Ideias de vingança sobrevinham para instigá-lo a prosseguir. Eram pensamentos só seus, nos quais, agarrava-se com unhas e dentes. Contudo, Atílio oscilava para o sentido prático da situação palpável. Tinha de ser coerente com a realidade. Nada de loucuras. Sabia que para executar um projeto daquela magnitude, teria que deixar de lado a ética e a moral. Para pôr o plano em ação, faria o que fosse preciso. Contudo, dúvidas quanto ao êxito surgiam. Quem sabe isso o levaria à derrocada em vez de alcançar o objetivo esperado: uma nova ordem social? Alucinação ou não, era a única coisa que o motivava: A nova ordem. A cura. Seria preciso uma boa dose de coragem para realizá-lo. E era o que não lhe faltava.

Depois de um dia inteiro de trabalho, numa quinta-feira, para ser mais preciso, Atílio resolveu caminhar de volta para casa. Uma distância de quase dois quilômetros.

Era aproximadamente dezenove horas quando deixou o escritório. Garoava. Poucas pessoas transitavam pelas ruas. No caminho, relembrava seus amigos do trabalho que estranharam o seu bom estado de ânimo. Temia que desconfiassem de alguma coisa. Precisava ser mais discreto. Chegavam a comentar que Atílio havia se reeditado, estava mais aberto para a vida. Há muito não o viam sorrir e conversar.

No meio do caminho, a garoa cessou. A paisagem, antes timidamente movimentada, dera lugar a um ambiente deserto e obscuro. Com exceção da janela de uma casa antiga que permitia iluminar um pequeno trecho da calçada. Poucas luzes pálidas ajudavam a criar um ambiente de sufocante silêncio.

A garoa voltou, e o asfalto molhado refletia a luminosidade triste dos velhos postes de luz. Atílio parecia indiferente e prosseguia em sua caminhada, anestesiado, com os ombros arqueados e as mãos enfiadas nos bolsos. Embora estivesse um pouco mais densa a garoa, Atílio se deslocava a passos moderados, sem demonstrar pressa.

De repente, notou que o laço do sapato se desfez, o que o obrigou a parar. Agachou diante do portão de uma casa abandonada, a única, aliás, que mantinha um poste de luz que fornecia claridade relativamente adequada. Deu o laço e antes de se erguer, elevou os olhos.

Lá adiante, uma figura caminhava à passos lentos, emergindo da bruma úmida. Usava uma jaqueta pesada, escura. Parecia ter o cuidado de sempre manter-se junto aos muros das casas do lado oposto da rua. Atílio pôs-se de pé. Imediatamente, aquele indivíduo acelerou os passos e atravessou a rua.

Atílio tentou ignorá-lo, apesar de intuir o que iria acontecer. A total compreensão do que estava prestes a atingi-lo se deu quando, ao tentar virar para esquivar-se daquela figura, sentiu um objeto sólido tocar-lhe as costas, e uma voz baixa e chiada disse:

– Perdeu, mano.

A sensação de impotência fez Atílio erguer as mãos para o alto. Virou-se, e antes que pudesse ver a face do assaltante, este gritou:

– Olha pa mim não! Olha pa baixo. Se olhá pa minha cara te mato. Passa a carteira e o celular. Vai logo.

Bem devagar, Atílio tirou a carteira e o celular dos bolsos e entregou. Com mãos agitadas, o assaltante agarrou os objetos e colocou no bolso do casaco. Mas não ficou satisfeito:

– Então… deixa ver o cebolão.

Ele mesmo, o assaltante, de maneira invasiva, ergueu a manga da camisa de Atílio e viu o relógio:

– Passa pra cá. Vai logo, porra!

Com todo o cuidado, o relógio foi passado para o canalha.

– Agora vira e se ajoelha.

– O que você quer mais? Está tudo bem. Não chamarei a polícia…

– Cala boca!

Num impulso repentino, o assaltante golpeou violentamente a testa de Atílio com a arma. Apesar do susto e da dor, Atílio notou que a arma, aparentemente uma trinta e oito, era leve demais. Ajoelhou-se, mas antes de virar-se, num gesto rápido, agarrou o braço do assaltante e arrancou-lhe a arma da mão. Constatou naquela fração de segundo que era de brinquedo. Mas… aquele rosto… Atílio o reconheceu. Sim, era ele, o que tinha ceifado a vida de Míriam.

Anos de ódio emergiram em forma de força bruta. Atílio saltou sobre o assassino desferindo um soco pesado contra o queixo. Foi o suficiente para o canalha cair desfalecido. Mesmo inerte, Atílio saltou sobre ele golpeando-o seguidamente no rosto. Não satisfeito, tomou um paralelepípedo solto próximo a sarjeta. Ergueu a pedra acima dos ombros e terminou o serviço. “É assim que um bandido morto deve terminar” – Pensou. Pequenos espasmos dos membros eram os únicos sinais de que aquele não se levantaria mais.

Apesar do ato em si, Atílio foi tomado por um profundo êxtase. Recuperou a personalidade, mas não a sua de antigamente. Algo despertara naquele momento que não era mais possível conter.

“A melhor terapia que já fiz.”

Com um sorriso sádico, resgatou seus pertences do bolso do casado do morto, sem a preocupação de se ocultar, e simplesmente deixou o local. O corpo ficou ali, largado, como um monte de carne estragada. Tudo voltou a ficar silencioso e Atílio simplesmente retomou sua caminhada, só que agora a passos firmes e vigorosos.

Ele não se lembra de ter feito o trajeto. Enfim, antes de abrir a porta do apartamento, enfiou a mão no bolso da calça para pegar as chaves. Ao empunhá-las, notou algo estranho. Era imaginação ou o vizinho do apartamento ao lado o observava pela fresta da porta? Seria apenas imaginação ou alguém sussurrava a seu respeito? Sim, ele ouviu vozes distantes. Prestou atenção. Cessaram.

Estranhando tudo aquilo, antes de entrar em casa, Atílio deu mais uma olhada por sobre o ombro para certificar-se de que ninguém o seguia. Enfiou a chave na fechadura, girou-a e abriu cuidadosamente a porta. Para seu alívio, entrou. Assim que tornou a fechá-la, ao acender as luzes, foi acometido de uma súbita e angustiante náusea.

Precipitou-se até o banheiro. Caiu de joelhos diante do vaso. A raiva e a tristeza vieram em forma de golfadas e depois o alívio. Tirou a roupa e abriu a ducha.  Permaneceu sob a água quente por um bom tempo. Sentindo-se melhor, enrolado na toalha, jogou-se na cama. Adormeceu.

O sono foi interrompido ao ouvir a maçaneta da porta de entrada estalar. Num único impulso, saltou da cama. Espreitou no escuro até a sala. Uma pancada fez a porta estremecer. Seguiram-se vários golpes, um grito pavoroso veio de lá de fora. E outros gritos se seguiram. Soava como alguém em desespero.

Assustado, Atílio vociferou para que, seja lá quem estivesse do outro lado, fosse embora. As batidas cessaram e o silêncio voltou a prevalecer. Sobressaltado, precipitou-se até a cozinha em busca de uma faca. Vasculhava a gaveta do armário, quando sentiu uma coisa estranha. Algo perturbador. Era como se alguma coisa invadisse sua mente. Atílio fechou os olhos, levou as mãos à testa e pressionou-a, como que na tentativa de extrair um parasita invisível. Mas a pressão aumentava. De repente, um som o atraiu para o corredor que dava para o quarto. Temendo que fosse um invasor, correu até lá. Deparou-se com uma visão estarrecedora: um espectro. Este tomou a forma de Míriam. Formou-se definida aos olhos, quase material. Atílio recuou assustado. Sufocado, perguntou:

– É você? Não pode ser. Estou louco!

A visão volitou em sua direção e Atílio reagiu com um gesto de rechaço e um berro ríspido.

– Fique onde está!

Ela apenas respondeu com um esboço de sorriso. Alarmado, quase a ponto de desmaiar, Atílio perguntou:

– O que faz aqui? O que quer? Não faça isso comigo… por favor. – E desatou a chorar compulsivamente. O espectro, então, respondeu:

– Você fez o certo, meu querido. Vingança. Devem pagar pelo que fazem. É por causa deles que agora estamos separados. – Aquilo foi demais para ele suportar. Acuado contra a parede, desmaiou.

A luz da manhã bateu-lhe no rosto. A cabeça pendia sobre o ombro esquerdo e o cabelo todo desgrenhado. Abriu os olhos como se estivessem cheios de alfinetes. A boca amarga o fez despertar com asco. Pôs-se de pé, sentindo-se dolorido. Foi ao banheiro lavar o rosto. Retornou à sala. Tentou convencer-se de que tudo aquilo não passara de um péssimo sonho e foi à cozinha. Esquentou o café, olhou para o relógio da parede. Nove horas. Atrasado. Um frio percorreu a espinha ao pensar no que tinha feito com o assassino. Temeu ser descoberto, o que lhe deixou inseguro, mas intimamente forte. “A vida continua. Pelo menos pra mim.” – Pensou com sorriso de deboche.

Partiu, então, para o trabalho. Uma sombra parecia ter se apoderado de sua alma. O dia seguiu normalmente. Ao terminar o expediente, Atílio fez uma parada no bar de sempre. Chegando lá, pediu uma cerveja; a de sempre O atendente conversava com um cliente. Ambos comentavam sobre o assassinato ocorrido na noite passada. Notícia de capa do jornal daquela manhã. Atílio aguçou os ouvidos e ao dar o primeiro gole, sentiu a mão de alguém bater-lhe amigavelmente no ombro.

– E então, meu amigo Atílio. Aí está você!

– Vinícius! Opa, desculpe, coronel Alencar! Outra vez aqui?

– Gostei deste boteco. Ô amigo, me vê uma cerveja, por favor!

– Dessa vez é por minha conta.

– Quanta gentileza! O que houve? Conheceu alguma gatinha? Parece animado.

– Só retribuo a gentileza do outro dia.

– Espero que aquele encontro lá no presídio tenha te trazido paz de espírito.

– Acha que trouxe?

– Você é que tem que me dizer. Se bem que, pela minha experiência, as pessoas quando se confrontam com o assassino que arruinou suas vidas, elas se tornam mais resignadas. Sei lá, perdoam… dão um fim à agonia que sentem. Acabam se reencontrando com Deus…

– Ou com o diabo.

– Oi?

– Foi só um pensamento bobo.

– Como se sente?

– Espero que melhore. Ah, a cervejinha! Chegou trincando. Que delícia!

– Vinícius, posso te perguntar uma coisa?

– Claro, meu amigo. Ainda mais agora que estou no céu.

– Não lembro se já te perguntei isso, mas essa onda de assassinatos… até quando?

– Nunca vai acabar, Atílio. Enquanto houver desigualdade social, interesses políticos, cobiça, esqueça. Você sabe como o ser humano é.

– Não há o que fazer?

– É a única coisa.

– Mas você é um coronel da polícia militar! Não haveria como…

– Hoje os presos até votam. Os políticos têm o maior interesse de cativar a população carcerária, que é enorme, diga-se de passagem. Cresce a cada dia. O resto você já sabe.

– Então, não há mesmo o que fazer.

– Não. A gente combate o crime com “revorvinho”, e os caras usam fuzis de última geração. Sem falar nas “ponto cinquenta.” Então? Fazer o quê?

Atílio deu um gole na sua cerveja já quente e amarga, coçou o queixo, e com um sorriso forçado levantou-se. Foi até o caixa pagar a conta. Em seguida retornou ao balcão, inclinou-se e sussurrou ao ouvido de Vinícius:

– Quem sabe isso mude um dia. – E partiu.

Sem dizer nada, Vinícius engoliu mais um pouco da cerva.-” ”>-‘.’ ”>

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