Você está lendo:

O Dia da Faxina – Capítulo 5

 

De volta ao apartamento, Atílio mergulhou naquele seu plano secreto. A ansiedade crescia pelo simples fato de pensar nas possibilidades que se abririam, caso conseguisse botar seu plano em execução. O problema era encontrar a forma correta e o momento certo. Precisava descobrir um jeito de viabilizá-lo. Então, sentou-se à mesa, pegou uma folha em branco e um lápis, e começou a desenhar. Acessou a internet. Coletou informações. Ponderou, consultou especificações técnicas de edificações e mecânica de fluídos, estudou a rede pública de esgotos. O sorriso já se fazia brotar novamente, afetado, franzido, produto de uma ansiedade febril.

Atílio permaneceu assim por várias horas. Adentrou a madrugada e ao concluir as pesquisas, ergueu-se da cadeira com a sensação de vitória. Suas pernas doíam e teve de usá-las com cautela. O estado de espírito, antes ansioso, tornou-se irritável e estranho, sinistro. Havia um quê de impetuosidade, como quem persegue um objetivo precioso e o acha. Ligou a TV. O noticiário da madrugada mostrava ao vivo um novo caso de assassinato hediondo. Logo que viu as cenas, foi tomado por um acesso de fúria difícil de descrever. Algo demoníaco emergiu com força.

Sentou-se ofegante no sofá, cabisbaixo, em profunda quietude, amargo. Memórias de cinco anos atrás, foram trazidas à tona como se desenterrasse artefatos, há muito deixados para trás. Isso o fez decidir. Em voz baixa, pensou:

– Agora chega. É a minha vez.

Para o que estava prestes a acontecer não haveria mais retorno.

No dia seguinte, levantou cedo. Pegou o bloco de anotações e fez uma longa lista de materiais. Sem demora, foi para a construtora. No almoxarifado, sem que o encarregado percebesse e munido de uma grande mochila, coletou tudo o que precisava: luvas, macacão impermeável, equipamentos e explosivos plásticos. Apressado e pensativo, colocou cuidadosamente a mochila no porta-malas do carro. Retornou ao escritório e agindo normalmente, prestou contas da tarefa burocrática. Já quase no final do dia, voltou para casa. Na gaveta da estante da sala estava o projeto. Tomou-o para rever detalhes:

-É isso.

Bastava agora executar o planejado. Só precisava encontrar o álibi que o colocaria no caminho certo da sequência de eventos que se seguiriam. A vistoria do local seria de primordial importância. Precisava pensar e pensar. Tinha de existir alguma coisa que justificasse sua ida ao sistema de esgotos de uma das maiores penitenciárias do estado. Só restava ser paciente. O momento certo aconteceria.

Atílio atravessou a madrugada insone. A mente borbulhava. Vozes o atormentavam, sobrepostas umas às outras. A perturbação e a agonia cresciam e o suor frio escorria pela face. Num determinado instante, em meio a uma espécie de delírio, Míriam lhe apareceu novamente envolta numa espécie de bruma:

– Grandes crimes não admitem dramas de consciência. Para ser bem-sucedido, deverá vingar-se sem nunca ser descoberto.

Em seguida volatizou-se no ar. Atílio ergueu-se da poltrona e foi ao banheiro. Inclinou-se sobre a pia, abriu a torneira e lavou o rosto suado.

– Sim, é isso mesmo. Como sempre ela tem razão. Um toque de mestre. Minha Míriam sempre tem razão. Esse plano deve ter um tratamento artístico. É assim que um artista faz: Cria uma mentira para que o mundo acredite nela. Um acidente é apenas uma fatalidade. Tudo na vida tem risco. Tecer acontecimentos acidentais é o mesmo que realizar um trabalho de arte. Requer paciência. O crime perfeito é uma obra de arte.

Enxugou o rosto com uma toalha branca e voltou a debruçar-se sobre o plano:

– Sim, querida. Vamos limpar esse lugar. Um já eliminei. O resto será o presente que lhe darei. Chega de varejo. O negócio agora é vingança no atacado.

Atílio se arrumou e foi para o trabalho. Ao chegar, havia um bilhete sobre a mesa. Era do diretor. Precisava conversar sobre novos projetos. Deixou, então, suas coisas na sala e apressou-se para o escritório de Lívio. O novo gerente de projetos, Cássio, já se encontrava em reunião quando Atílio chegou:

– Que bom que você veio, Atílio. Deixe-me apresentá-lo. Este é Cássio. Ele é a ponte entre a companhia de fornecimento d’água da cidade e a nossa empresa.

– Como vai, Atílio?

– Bem-vindo, Cássio.

– Estávamos conversando e temos um grande desafio pela frente. – Disse Lívio com ar de satisfação.

– Nossa construtora ganhou a licitação para a construção de um novo centro cultural da prefeitura.

– Onde?

– Será próximo ao maior complexo de detenção do país, o presídio do Carandiru. Existe a intenção de reurbanizar a área. Deverá ser um prédio inteligente, amplo, com área para exposição de obras de arte e literatura. Terá de ser algo inovador, com uma arquitetura futurista. Aqui estão alguns esboços feitos pela arquiteta.

– “E que coincidência.” – Observou e pensou Atílio completamente atônito, pois, agora estava mais que interessado no assunto. Para a sua surpresa, as coisas confluíam para o que tinha em mente.

– O problema – interveio Cássio – é que teremos que resolver alguns problemas no subsolo.

– Como assim? – Indagou Atílio.

– Vazamentos das tubulações de água do subsolo. Há um significativo desperdício.

 

Atílio surpreendeu-se com a informação. Era bom demais para ser verdade. Cássio prosseguiu:

– Naquela região em particular é problemática. As tubulações são velhas. O vazamento e infiltrações colocam em risco a estrutura de qualquer prédio. Tivemos um problema semelhante no passado.

– Há cinco anos. – Completou Lívio.

– E, como queremos construir algo desse porte, temos que nos precaver. Não queremos que ocorram desmoronamentos.

– Acho que Atílio deveria dar um pulinho até a área para verificar as condições da área e do subsolo. – Sugeriu Lívio.

– Eu gostaria de conhecer as galerias subterrâneas do local. – Reforçou Atílio sem ainda acreditar na coincidência dos fatos.

– Tenho aqui a planta do local incluindo as galerias… – Disse Cássio.

– Ótimo. Mas a inspeção in loco seria melhor. – Reforçou Atílio.

– Como queira. Tem cara que não gosta de se sujar. – Ironizou Cássio.

– Não tenho medo de pôr a mão na merda. – Respondeu Atílio à provocação.

– Opa, epa, tudo bem. Atílio, vá até lá e verifique o local. Faça um levantamento minucioso. Depois faça um relatório, sim?

– Levarei um pessoal comigo.

– Informaremos a prefeitura. Um engenheiro de lá irá acompanhá-lo, e precisaremos obter uma autorização. Disse Lívio.

-Tudo bem. Assim que a tiver me avise.

– Creio que amanhã mesmo.

 

Atílio retornou à sua sala eufórico. A vingança era a coisa que mais desejava. Um golpe contra o sistema corrompido, nojento. Tomava a si mesmo como um libertador. Não seria um mártir. Isso não. Desejaria viver o bastante para presenciar a transformação que provocaria no mundo depois de seu plano ser executado. Seria força contra força, a inteligência contra o demônio. Sangue frio. Nada de temor nem remorso.

Sim, Atílio queria tornar-se um vingador, um justiceiro, aquele que daria a volta na história do país. Tantos crimes impunes, homicídios, pilhagens, contrabandos, tudo bem debaixo de nossos narizes. Atílio realizaria o dia de faxina. Só não poderia cometer erros. Nada de pistas que conduzissem ao autor. Contudo, se via como um artista impossibilitado de assinar sua obra.

Uma fatalidade apenas ocorre graças a uma sequência de eventos. E é isso que ele deveria provocar: uma sequência perfeita de eventos. Por isso, tinha de analisar bem os detalhes. Conhecendo as falhas e transformando-as em causa, tudo caminharia por si só.  Agora, o engenheiro deixava a impaciência de lado para dar lugar ao profissional.

O plano, aparentemente simples, consistia do seguinte: Causar um choque no mundo do crime. Uma inversão da situação atual. Em vez dos bandidos aterrorizarem, seriam aterrorizados. Experimentariam viver como nós, com medo, com insegurança. Dia após dia. Sentiriam o pavor de terem suas vidas ameaçadas. E Atílio saberia como fazer isso. Contudo, o plano-mestre seria tecido com propósito de deflagrar uma sequência de outros eventos.

Caso funcionasse, a população certamente seria atraída para a sua causa. Por isso, tinha que ser feito algo grande para chocar. Objetivo número um: destruir o complexo penitenciário inteiro e não deixar nem um único bandido vivo. E o engenheiro Atílio já sabia muito bem o que fazer.

A experiência profissional mostrou o jeito certo de se forjar um acidente. A história da cidade serviria como inspiração para o ato divino da guerra entre o bem e o mal.

-” ”>-‘.’ ”>

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

Leia mais Histórias

>
Rolar para o topo