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O Dia da Faxina – Capítulo 6

 

No dia seguinte, pela primeira vez em anos, Atílio chegou ao escritório cedo. Sobre a mesa, a autorização da prefeitura expedida no final da tarde do dia anterior. Em posse dela, sem demora convocou a equipe de apoio: três operários mais um mestre de obras. Local da obra: Carandiru.

Ao se reunirem, Atílio ligou para o engenheiro da prefeitura no intuito de cumprir o protocolo de avisá-lo que o aguardaria no local. Assim que chegaram, pediu que isolassem a área e abrissem a tampa do bueiro. Enquanto procediam, nada do engenheiro chegar. Atílio ligou imediatamente para ele para cobrar sua presença durante a vistoria. Não podia haver atrasos. O mesmo atendeu o celular dizendo o seguinte:

– Olha, eu não posso ir agora. Faça o seguinte: veja o que você precisa e depois me informa. Realmente não dá pra ir.

Era bem o que esperava. Atílio desligou o celular com um sorriso de satisfação. Conhecia bem o ritmo de trabalho dos fiscais de obra. Tudo convergia positivamente para botar em ação o seu plano. Vestiu um macacão, luvas, botas e desceu. Munido de uma lanterna, caminhou pelas galerias. Direcionou-se para o subterrâneo do complexo penitenciário. Em meio ao trajeto, percebeu algo interessante:

“Olha só isso! Exatamente o que eu queria. Aquele desgraçado do Cássio tinha razão. Há rupturas nas paredes das galerias. Infiltrações provocadas pelos vazamentos das tubulações. O subsolo cederá, mas espere aí; pelo volume de água aqui… não pode ser! Melhor impossível! Se eu estiver certo a coisa vai bombar.”

Atílio chamou, então, o mestre de obras:

– Mario, dê uma olhada aqui. O que acha?

– Olha, pela minha experiência, acho que deve existir uma adutora que passa ali atrás daquela parede. É só colocar o aparelho e escutar.

E foi assim que Mario confirmou a existência uma adutora que, pelo jeito, poderia apresentar problemas gravíssimos. Caso rompesse, a terra por debaixo do complexo penitenciário, em pouco tempo, erodiria. Além disso, levando em consideração os sinais de vazamentos, provável seria que já existissem trincas nas paredes da prisão. Então, Atílio pensou o seguinte:

“Pedirei que abram a parede da galeria para expor o duto. Simularei uma análise e proporei soluções. Depois instalarei mini detonadores em pontos estratégicos. Haverá vazamentos de água em volume controlado, sem que detectem umidade na superfície. O pessoal da secretaria de infraestrutura nem se dará conta. Pelos cálculos, a terra abaixo do complexo penitenciário amolecerá, e tudo rolará para dentro de uma enorme cratera.”

Com a planta das tubulações em mãos, Atílio emergiu das galerias. Deu ordem para os operários iniciarem a escavação. Mario quis alertá-lo de que poderia ser perigoso, mas Atílio assegurou-o de que ele sabia o que estava fazendo. Tempo estimado para a realização do trabalho: quatro dias após a aprovação da diretoria.
Era final da tarde quando Atílio dispensou a equipe e retornou para casa. No entanto, Mario ficou preocupado com a situação. Tinha motivos para tal. Seu cunhado fora preso e cumpria pena há cinco anos no pavilhão três do Carandiru. Todo o complexo correria um risco muito sério. Mario chegou até a comentar com sua esposa a respeito.

Como era de costume, a cada quinze dias, ela fazia uma visita ao irmão. Já era esperado que desse com a língua nos dentes. Em pouco tempo, a notícia se espalhou pelo presídio. Os detentos pediram ao diretor que verificassem as trincas nas paredes, mas não foram levados a sério. Fizeram uma manifestação. Os ânimos inflamaram e, o que era apenas um pedido de manutenção, tornou-se rebelião. A tropa de choque foi chamada. Mais de cem prisioneiros foram mortos.

Atílio, em casa, ouvia o telejornal. Não acreditou no que viu. Foi uma enxurrada de notícia ruim que tomou proporções inimagináveis. O crime organizado prometeu o revide, e disse que muitos pagariam pelas mortes de seus companheiros. A notícia correu o país feito trilha de pólvora acesa. Todos, principalmente a população, tinham que se preparar pelo pior.

Atílio suava frio. A ansiedade induzia-o a um estado quase hipnótico. De olhar parado e respiração ofegante, parecia estar prestes a perder o controle. Foi quando, naquela mistura de péssimas sensações, Míriam se fez mais uma vez presente. Surgiu como era, jovem, cheia de viço e encantos. Uma visão mágica, inexplicável. Seu sorriso o acalmou dos péssimos sintomas. De repente, aquele semblante leve de Míriam se desfez. Ergueu as mãos e levou-as à altura do colo, pressionando-o. Curvou-se como se sentisse uma dor aguda e profunda. Atílio tentou acudi-la, mas ficou paralisado. E ela, com um resto de fôlego, disse:

– Não deixe que façam isso outra vez. Mate-os. Todos eles. – E, então, ela tirou a mão do colo e expôs um fio vermelho de sangue. Estendeu as mãos ensanguentadas. Aos poucos desapareceu, em fases cada vez mais diáfanas. Atílio, com esforço trêmulo, esticou a mão para alcançá-la e ao perceber que era inútil, rompeu em choro.

Mais uma noite se passou e o dia surgiu nublado. Atílio havia adormecido no sofá. Abriu os olhos com dificuldade e levantou. Arrumou-se e saiu para o trabalho com uma única coisa em mente: o plano. No intuito de agilizar o trâmite documental para dar início às obras, preparou o relatório endereçado ao secretário da Companhia Nacional de Águas e Esgotos, e outro para a Secretaria de Infraestruturas e Planejamento e Mobilidade Urbana. Bastava apenas que Lívio assinasse.

Cerca de uma hora depois, Lívio chegou. O relatório já estava sobre a mesa e Atílio também o aguardava.

– Quer um café, Lívio?

– Não, obrigado. Ah, sim, o relatório. A coisa parece grave.

– Nada que não se dê jeito.

– Mas a Secretaria terá que reparar…

– Eu mesmo gostaria de acompanhar a obra.

– Por quê? Ou melhor, pra quê?

– Quero ter certeza de que farão um bom trabalho. Afinal, é nossa reputação que está em jogo.

– Tem razão…

– A previsão é de chuva para as próximas semanas. Se eles não limparem o lixo e o mato engalhado nos entornos e nos bueiros, isso contribuirá para o problema permanecer.

– Mais uma vez você está certo. Estimou os reparos que deverão ser feitos?

– Sim. A princípio, temos informação que há uma adutora que passa por detrás das paredes das galerias de esgoto. Deve ter aproximadamente dois metros de diâmetro. A velocidade de fluxo de água equivale a seis mil litros a cada seis segundos. Os funcionários da Companhia Nacional de Águas e Esgotos estarão no local. Um trecho da avenida principal precisa ser interditado.

– Mas essa adutora não consta na planta.

– Ninguém nos avisou. Um erro grave no projeto da cidade. Se as autoridades souberem, o prefeito terá que se explicar.

– E o engenheiro da prefeitura?

– O que é que tem?

– Precisa estar presente para acompanhar.

– Está sempre ocupado, dá desculpas para não comparecer ao local da obra. Aquilo que a gente já sabe.

– Sei bem como é.

– Melhor pra nós. Vamos assinar o relatório.

– É isso. Chega desse assunto. Estou com uma ressaca do cão. Minha cabeça vai explodir.

– Festinha ontem?

– Saí com uma gostosa. O problema é que a mulher bebeu tanto… E eu tive de acompanhar. Resultado…

– É assim mesmo.

– Agora, tira esse monte de papel da minha frente. Comece as obras o quanto antes.

– Fui.

E deram início as obras. Pontos estratégicos foram escavados e parte da adutora foi exposta. Atílio pessoalmente verificou da integridade da tubulação. Parte da linha paralela precisou ser trocada. Mario – o chefe de obras – se aproximou e disse:

– A coisa é pior do que imaginava. Sabia que meu cunhado foi assassinado lá no presídio?

Atílio nem se importou como também não respondeu. Aproveitando que os trabalhadores deixaram a área, ele pessoalmente desceu até o local. Sem que ninguém o visse, instalou bombas plásticas acopladas a detonadores eletrônicos pré-programados. Dezenas foram cuidadosamente colocadas de forma a não ficarem visíveis aos olhos dos trabalhadores. Atílio, então, ordenou que cobrissem a adutora e restaurassem as paredes dos esgotos. Assim fizeram.

Com ar de função cumprida, Mario disse:

– Graças a Deus não está chovendo. Senão, seria impossível terminar hoje. Acho que agora tudo ficará bem.

– Bem pra quem?

– Pra todos nós que não mais teremos que vir aqui. Não gosto desse lugar não. O diabo mora nas redondezas.

– É. Também acho.

Atílio dispensou a equipe e retornou ao escritório. Era só uma questão de horas para que os detonadores acionassem. Oito horas se passaram. Foi na madrugada que tudo aconteceu. Trincas se abriram logo após a detonação. Certa quantidade de água começou a vazar. A terra começou a erodir aos poucos.

Pacientemente, dia após dia, Atílio esperava. Não via a hora que tudo ruísse. Ao mesmo tempo, gabava-se de seu projeto:

“Como é bom ser exato! Nunca gostei de subjetivismo. Só tem valor aquilo que pode ser visto e medido. E é exatamente por isso que gosto de ser engenheiro. Não se dá um passo sem saber qual o efeito que produzirá. Tudo é lógica. É ela que nos diz que um mais um é dois. Sempre será dois. Este plano me conduzirá ao resultado que eu quero. É só fazer a natureza trabalhar a meu favor. O dia em que acontecer, esse sim será o primeiro dia da faxina.”

Atílio deu um gole no café enquanto despachava alguns documentos, mas sua mente estava fixada apenas no dia da vingança.

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  • Muito bom capítulo. Suspense e motivações sombrias que convergirão para um final catastrófico. Gostei!

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