“No 3º Interlúdio, Maya se depara com o estranho zelador do antigo hotel Overlook. Por pouco não perdera a vida no escombros daquele velho hotel assombrado. No capítulo de hoje, nossa caçadora continua sua busca pelo continente americano. Dirigindo um Plymouth 1958, enfrentará os monstros do seu mundo.”
IV
Interlúdio
A encomenda
Eu não conseguia desligar o rádio. Por mais que mexesse nos botões do aparelho eles nem sequer se mexiam. Então não tirei os olhos da estrada. Acostumada com o Fusca velho, me dei conta pela primeira vez de como era gostoso dirigir um carro novo (acreditei ser uma réplica do antigo Plymouth). Não me importei com os porquês (como ele foi parar lá? Por que me esperava na porta daquele maldito hotel? Por que não conseguia desligar o rádio?) Fui descendo pela rodovia sem me preocupar com os pormenores.
Meu coração demorou para voltar ao ritmo das batidas da minha idade (só tenho 17 anos, porra! Sou jovem demais para batimentos cardíacos irregulares). Só sei que a estrada me levaria sabe-se lá para onde. Olhei para os bancos de couro do carro, a estrutura firme do painel. Não havia ferrugem e muito menos o desgaste do tempo. Abri o porta luvas com as mãos tremendo, com o roquinho safado nos ouvidos. Uma barra de chocolate caiu no meu colo. Há tempos não via uma desse. Comi sem medo. Se aquilo me matasse, ficaria no lucro.
Numa estrada cheia de cascalho vi uma casinha no estilo Dona de casa feliz. Talvez encontrasse o que procurava lá dentro (…e por que não?). Esposas felizes cuidam de casas felizes. E casas felizes são cheias de coisas que nos fazem felizes, concordam? Apesar do desgaste do tempo e das constantes investidas de saqueadores, havia algo para ser explorado. O que procurava não podia ser comido e nem transformado em arma. Sua importância tinha a ver com a introspecção; ou tanto faz.
Lá dentro talvez tivesse água. Talvez tivesse uma cama quente. Talvez tivesse a promessa de uma soneca. Comida? Talvez … O mundo que habito fora construído por inúmeros TALVEZ e os constantes SE. Vivemos em função deles. Mas com certeza, aquela casinha de boneca me protegeria do sol por algumas horas. Quem sabe havia a promessa de uma noite bem dormida.
O carro parou sem que eu pisasse nos freios. Remexi os olhos assustada. A porta se abriu e eu desci.
-Obrigada. – Agradeci.
Minha loucura estava se tornando genuína. Conversar com um carro parecia café pequeno para quem assistiu a morte da mãe e endossou o assassinato do pai. A vida varreu a doidice do mundo; maluco era aquele que não acreditava.
O clima quente tratou de secar o jardim da esposa feliz. O que restara de suas plantas foram engolidas pelo capim selvagem. Sem uma arma me sentia nua. Apesar do dia claro, com o sol bem no topo da minha moleira, quis improvisar alguma coisa. Uma tora de madeira me serviria muito bem. Foi o que fiz. Peguei o primeiro galho de árvore que encontrei. Não estava em bom estado, mas me permitiria um golpe se precisasse me defender (que fosse um golpe certeiro). Estava podre de um lado, mas a estrutura do meio estava boa. O carro continuava estacionado na estrada, me olhando através do para-choque cromado. O que meu pai diria se o visse? Uau, menina! Daquele jeito covarde de ser. Já Paulo: Home run, Maya, home run!
Não havia mais portas naquela casa. Tudo estava escancarado, jogado no chão, mutilado, estuprado e saqueado. Suspirei ao ver o estado das coisas. Tudo estava no pó. A casa fora usurpada no começo da praga. Nada me chamou a atenção. Nada que pudesse ser reciclado e transformado em armas contra os VM’s (ou contra plantações demoníacas; ou contra ratos gordos como uma capivara; ou contra hotéis possuídos e seu zelador pirado; ou contra carros endiabrados). Subi as escadas até os quartos, talvez tivesse alguma coisa no andar de cima.
E não é que tinha mesmo?
Somente três. O suficiente para mim. Todos empoeirados, mas em perfeito estado (um pouco desgastados pelo tempo, mas ainda grã-finos). Pensei num jeito de carregá-lo. Sem minha mochila corria o risco de perdê-los pelo caminho. Busquei numa das camas um velho cobertor. Com ele fiz uma improvisada matula e amarrei-os nas costas. Problema resolvido. Com o porrete que fiz do galho velho, desci para a cozinha. Nem me dei ao trabalho de procurar comida na dispensa. Não tinha nada lá. Pela janela da sala, procurei o Plymouth. Ele continuava no mesmo lugar. Que dia feliz!
No entanto, não existem dias felizes no meu mundo. Um rosnado nas minhas costas me deixou paralisada. Havia algo bafejando no meu cangote. Com certeza um animal. E dos bem grandes.
Um cachorro? Um maldito cachorro!
Dos grandes (uns 120 quilos), peludo, sujo e babando uma gosma escura. Estava enfurecido. Ele rosnava algo rouco (como que engasgado com um osso). Pensei na carne tenra dos seus quadris, no gosto de suas vísceras. Como se manteve gordo, amigo? Comendo aquilo que perambula na noite (e que temos em abundância?) Tu és carne podre. Não vale a pena me arriscar por você. Comecei a me esgueirar pelos armários, sentindo que me observava com aqueles olhos remelentos e caídos. O rosnado foi ficando mais alto, forte, como se seus pulmões trabalhassem só para isso. Ele não demorou para avançar. Mostrei meu porrete, afastando-o. O rosnado continuou no meu cangote, me farejando. Olhei pela janela. O Plymouth havia sumido.
-Filho da puta! Desgraçado! Carona do Demônio!
Não sei por que gritei esses despautérios para um carro. Um desabafo solitário? Todo mundo tem o direito de surtar, não tem? Fui me arrastando pelas paredes, olhando para o cachorro, o porrete dançando nas mãos. Assim que me vi perto da saída, escutei o roquinho safado dos anos de 1950 de novo.
“Go go
Go Johnny go go
Go Johnny go go
Go Johnny go go
Go Johnny go go
Johnny B. Goode”
Corri pela porta com o cachorro nos calcanhares. Apesar de gordo, era ágil. Não olhei para trás, só sentia seu bafo nas costas. Pulei para dentro do carro batendo a porta. O cachorro escancarou sua bocarra na janela. Dessa vez o Plymouth deixou que eu desligasse o rádio. Pisei no acelerador, com o cão raivoso latindo no meu encalço. Me preocupei apenas com a encomenda presa ao meu corpo. Suspirei aliviada. Que a volta para casa fosse tranquila. Que o Diabo tirasse sua soneca e me deixasse em paz.
O São Bernardo babou nas rodas do Plymouth por um tempo. Depois parou. O cachorro foi diminuindo de tamanho, diminuindo, diminuindo, até sumir do retrovisor. Respirei tremendo, morrendo de sede e louca por um cigarro (fumavamos qualquer coisa que fizesse fumaça). De trás do espelho do motorista caíu um maço de Hollywood. Em seguida um isqueiro. Puta que pariu! O carro era mesmo endiabrado.
Busquei pela estrada que me levaria de volta ao feudo do cadeirante. Sua encomenda estava segura no banco do passageiro, me dando aquela falsa modéstia, a humildade que não tenho. Não é por acaso que sou considerada uma das melhores caçadoras do meio oeste. Não tenho medo do mundo que vivo. Isso me diferencia dos outros, me dando fama e comida no bucho. Se ele realmente quer o que tenho, vai ter que pagar um preço alto por eles.
No restante da tarde dirigi por estradas bravias; isoladas do mundo. Sempre perto das montanhas, com lugares altos e poucas árvores. Com o cair da noite fui obrigada a vagar pelo deserto do Kansas (ou tanto faz). Os nomes das coisas deixaram de ter importância e a espécie humana tornou uma só. Não havia credo que nos separasse, cores que nos dividisse ou o nome do nosso habitat. Apenas caminhávamos nas entranhas do mundo, com os olhares atentos na estrada e o coração em suspensão.
Não demorou para que os primeiros mutantes cruzaram a rodovia. Os vi assim que o sol se escondeu por entre as montanhas. Estacionei o Plymouth fora do alcance das bestas. A noite seria longa. O nascer do dia promissor.
Cochilei com o barulho de um grilo, mas meus olhos treinados se abriam com o farfalhar das pedras. Seus grunhidos exalavam o cheiro do Inferno. Os mutantes passavam por mim esbarrando no carro, cuspindo seu catarro fedorento. Enfiada no breu da noite, contive os movimentos diminuindo o ritmo da respiração. De repente (atendendo ao chamado do Diabo) o Plymouth 1958 escancarou sua bocarra infernal, soltando aquele roquinho safado, acendendo as luzes e piscando os faroletes. Corri para o rádio, tentando desligá-lo. Os botões duros como outrora. Com meu porrete tentei quebrá-lo. Os VM’s começaram a me atacar, arremetendo contra o carro, tentando dilacerá-lo para extrair o que tinha lá dentro (no caso, eu). Podia sentir o trepidar das estocadas das bestas, seu rosnado de fome, suas súplicas pelo alimento. Percebi que a fome deles não era diferente da minha. Somos tão mutantes quanto eles.
Quando pequena abri uma lata de sardinha. Me assustei com a quantidade delas enfiadas num lugar tão pequeno. Estavam tão apertadas que tive dificuldade em retirá-las com os dedos. É assim que me senti, esmagada dentro de uma lata de sardinha, empapada no suor para ser servida aos mutantes. Eles continuaram batendo, entortando a lataria do carro, transformando-o em sucata. Mas nada punha fim naquele roquinho filho da puta.
“Peggy Sue, Peggy Sue
Oh how my heart yearns for you
Oh Peggy, my Peggy Sue
Oh well, I love you gal, yes, I love you Peggy Sue”
Sai correndo pela porta de trás. Me arrastei para o acostamento. A horda me farejou. Continuei me arrastando, ralando as peles que ficavam fora da armadura de borracha. Por sorte (ou sabe-se lá o quê) havia um pequeno túnel para travessia de animais há poucos metros do carro. Se conseguisse alcançá-lo, talvez me livrasse das bestas. Foi o que fiz. Corri pela estrada, estocando os mutantes com meu porrete de madeira podre. Ele se esfarelou na segunda cabeça que arrebentei, me deixando desarmada. Me joguei no chão sem pensar, batendo o joelho no asfalto frio. A dor foi monstruosa. Mesmo assim continuei me arrastando, cuspindo sangue, sentindo que o corpo ardia como brasa. Quando dentro do túnel me permiti respirar. Ouvia-se o rosnar da horda sobre mim. Sentiam meu cheiro, mas eram incapazes de me achar. Passei a noite encolhida num canto escuro, com sede e fome. O Plymouth encontrava-se destruído na estrada. Mas o roquinho safado … ah, o roquinho safado … esse continuava tocando sem parar como numa lanchonete dos anos 1950.
O sol finalmente deu o ar da sua graça. Não me permiti fechar os olhos durante à noite. Fiquei atenta, preparada para correr se algo entrasse por aquele túnel. O som do rádio no carro há muito deixara de tocar. Nada de Rock na madrugada (para mim só se for do AC/DC).
Me arrastei para a luz do dia. Os Mutantes voltaram para suas tocas e o ar quente soprava na minha cara. Me limpei da sujeira preocupada com a encomenda que deixei no carro. O filho da mãe do Plymouth continuava no mesmo lugar, com a lataria nos cacos, os faróis quebrados, a traseira batendo no chão. Puxei a matula pelo que sobrara da janela. Havia uma boa distância entre mim e o cadeirante (para ser feita com fome e sede). Mesmo assim me pus a andar cada vez mais rápido, com pressa de chegar.
Sou capaz de resistir à fome e a sede sem perder o ritmo. O corpo transmutado se adapta ao que temos. É nosso instinto garantindo a evolução da espécie. Papai ficaria feliz em me ver falando assim. Sempre me quis culta. Conversa fiada. Comecei a sentir calafrios no meio da manhã. Tive que parar várias vezes na estrada, procurando por sombras. Cavei um buraco perto da raiz de um arbusto, para puxar um pouco de água do solo. Veio um barro preto, que tive que sugar. Tinha o gosto de merda, mas era o que tinha no momento (ou isso ou a morte velada). Continuei andando, o sol na moleira, a febre das têmporas. Pensei ver VM’s, mas não passavam de rochas incrustadas no deserto.
Algumas glebas na frente, com o sol no auge do mau-humor, um vulto se destacava na aridez da estrada. Passei a língua pelos lábios secos, tentando entender o colorido de suas roupas, a brancura do seu rosto, o cabelo vermelho como fogo. Não acreditei no que vi. Não era possível. Sim, sim, era possível. Tudo é possível nesta terra de doidos. A coisa segurava um balão vermelho, sorriso na cara e roupinhas de pompom.
Só pode ser brincadeira. Aquilo era um palhaço?
Ele me encarou no meio da rodovia. Fiz o mesmo. Parecíamos dois duelistas de filmes de faroeste, prontos para sacar nossos winchesters 57. O palhaço veio em minha direção com um sorriso na cara, o balão vermelho na mão direita. Ele parou a alguns metros me oferecendo um.
-Está escutando o Circo, Maya? Pode ouvir o rugido do leão?
Como sabia o meu nome? Quem era esse cara?
-Do que você está falando, maluco?
O palhaço não mudava a expressão do rosto. Mantinha aquele sorriso amplo característico da profissão.
-Estou falando do circo. Ele chegou na cidade.
-Que cidade? – Fiz com o corpo a rodinha do John Travolta em Pulp Fiction – Só tem cascalho e árvores secas
Tentei ver alguma coisa através da pintura do rosto, das roupas de palhaço. Mas não vi nada. Não fazia a menor ideia de quem era aquele cara.
-Você é bem maluco. No entanto, quem não é.
Continuei caminhando. Não passaria outra noite no relento.
-Não sente o cheiro da pipoca … poc poc… poc poc.
-Não, senhor, sinto apenas o cheiro do estrume.
De repente ele reapareceu como num passe de mágica na minha frente.
-No meu circo todo mundo flutua. Você deseja flutuar também, Maya?
Fora o papo mais estranho que tive na vida. Nem nos meus piores pesadelos pensei num palhaço me embaralhando as ideias.
-Enfia no cu, palhaço.
Caminhei com a encomenda. Um balão vermelho flutuou rumo a montanha. Procurei pelo palhaço além da curva. Ele havia sumido. Desaparecido com os redemoinhos de vento. Um derrapar de pneus chamou minha atenção. Não acredito nisso! O roquinho safado de novo? Aquele carro estava no bagaço quando o deixei na estrada. Como era possível ouvir o som daquele rádio novamente? O Plymouth veio em minha direção (novinho em folha) me empurrando para o acostamento. Ele quase acertou minhas pernas. Corri para o mato. Ele veio atrás de mim com seu motor potente, acelerando, cuspindo poeira. O carro me arrancou do chão me jogando numa moita de capim. Senti uma dor na lateral da barriga. Pedia aos céus que não tivesse quebrado uma costela. O Plymouth esperou que eu ficasse de pé, acelerando o motor. O roquinho safado diminuindo, diminuindo, diminuindo. Da janela do Plymouth brotava a cabeça imensa do palhaço.
-Aqui todo mundo flutua, Maya.
-Vá flutuar no Inferno, filho de puta! – Gritei chutando poeira.
O carro deu a volta na encosta. Escancarei a boca em um o maiúsculo quando os vi desaparecer numa montanhas (como se atravessasse as rochas). Demorei alguns segundos para retomar o ritmo da vida – a respiração voltando ao normal, a dor num ritmo menos acelerado. O balão vermelho ficou preso numa árvore. Deixei-o enroscado nos galhos. O melhor era seguir pelas montanhas evitando a rodovia. Os VM’s são café pequeno perto das maluquices deste mundo.
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