O SANTO SALVADOR: 

Parte um: 

I: NO PRINCÍPIO, ERA O VERBO: 

Era uma vez Deus, que decidiu criar o tempo, o espaço e o cartão de crédito. E eram duas ou três vezes na semana o Alan, garotão das finanças da Paulista que vivia a cheirar grande porcentagem de seu salário em diversões vazias lá no Quartel das Primas, no Baixo Augusta. Graças à epidemia da AIDS vinda da última década, o lugar quase sempre estava vazio, sendo perfeito para absorver, haurir, transar, aspirar e cheirar, também, o nariz em carne viva. Ele, rapaz de sucesso, adotado de um orfanato pobre por uma boa e bem abastecida família e bolso, vive o melhor da economia da Era Collor. Aos pobres, poupanças confiscadas; já aos ricos e bem escalados socialmente, tramóias políticas e muitos Dólares. Pro garotão, muito pó, bunda, bordel e um bom Macallan clássico — eis a boa vida até uma parada cardíaca o paralisar… Zé Fernando, colega de escritório e bordel de Alan, engasgou-se com a própria morte de língua roxa, coração em câimbra e calças arriadas. Ficaram impressionados, o Alan e as primas. Zé estava a experimentar diferentes meios de transcender a própria mente e ir conversar com seu guia espiritual usando as hemorróidas como aspiradores de pó de alta absorção.

Em partes, a tentativa deu certo: de fato, Zé foi conhecer seu sagrado interior ou exterior; ao passo que em outras tantas partes, a empreitada foi completamente frustrada, pois seu coração deu um tempo e nunca mais voltou. “Ai, ai!”, disse ele antes de engasgar-se em dor. Que situação degradante: seus filhos e esposa nunca mais teriam um pai no Dia dos Pais; só no Dia de Finados. Que coisa, gente! Que tal um momento prum cafezinho?! Testemunhar a morte como ela é ou ver a vida seguindo plácida depois de toda e qualquer tempestade: o que mais te assusta? Para Alan, ambas as possibilidades lhe foram arrasadoras, principalmente quando coube a ele ser o porta-voz das boas novas: “Alô, Alice? Lembra de mim? Aqui é o Alan… O Alan Bittencourt, lembra? Amigão do Zé Fernando… Então…”. Para alguém como ele, o Alan, que vive no mundo do money and business, dos pilares das promessas de investimentos no negócio dos outros, resgates de grana, capitalismo pulsante, overnight e storytelling meritocrata, falar a verdade dói. 

II: DON’T KILL THE MESSENGER, POR FAVOR: 

Foi o enterro de Zé. Para Alice, overdose. Para os familiares, muito café pra aguentar as demandas da firma (storytelling meritocrata). Pros filhos, foi pra Terra do Nunca junto do Peter Pan. Pros vizinhos, diabetes não tratada. Pro Alan, um momento sozinho em seu apartamento nos Jardins. Água com gelo. Depressão. O que foi aquilo? A vida! A vida? Um dia você é, ao passo que n’outro você era. Questão de segundos. O pior de tudo, porém, depois do IML, delegacia e conversas jurídicas e tal e coisa, foi o caçula de Zé Fernando em sua missa de Sétimo Dia: “Eu sei que o papai foi pro céu. Mas não é com isso que tô triste!”. Alan engoliu o choro a seco e perguntou seus porquês. Ele tomou fôlego, o garotinho: “Só fico chateado que o pai não me deu o Super Nintendo, né. Eu gosto muito do Mortal Kombat. E você?”. Alan ficou vitrificado. Não expressou nenhum tipo de reação. Continuou na missa e voltou pra casa. Copo de água bem gelada. Ligou pra sua mãe adotiva. Dona Cícera. Pulsos telefônicos Brasil-Itália custam caro. Um absurdo. Alan chorou um pouco. Questionou a existência de Deus e seus demônios ao mesmo tempo que arrependeu-se de ter fugido do Jardim do Éden, vagina fecunda de sua genitora. Dormiu de terno. Fez xixi na cama. Seu luto durou a eternidade numa madrugada inteira e uma Stolichnaya quente. O que mais lhe ferrara a cabeça naquele turbilhão de bosta, descarga mal dada, não foi a morte de Zé. Não? Não! O que mais ferrara-lhe a mente e Prozac foi o maldito Super Nintendo! Mortal Kombat quem?

III: MÃOS À OBRA. OU NÃO: 

Erivelto Santos era um grande trambiqueiro. Já viveu fazendo de tudo um pouco: desde vender o sonho da casa própria em sorteios duvidosos das vielas de Diadema; passando por dono de sebo de revistas pornográficas já muito coladas de desejos, lá na região da Boca do Lixo. Até desembocar em anunciante de promoção de supermercado da Liberdade: os preços eram altíssimos, mas Erivelto os fazia parecer quase bons, de qualidade japonesa, apesar da fabricação chinesa. Sinofobia? Não: marketing e caixote! Mas Erivelto era trambiqueiro por ter trabalhado em vários empregos? Claro que não, raparigas! O problema não são os “trabalhos” em si. Mas sim, os empregos em si (ou como saia deles). A casa própria? Barracão em beira de estrada sem garantias de sobrevivência às garoas de São Paulo. As revistas pornográficas? Vendas permitidas a menores de dezoito anos, até porque, quando a carne fala, o sangue precisa entrar em ação, não é?! E um outro detalhe: vender revistas pornográficas lá na Boca do Lixo é tipo vender areia na praia — não dá, meninas. E os preços da Liberdade? Não eram japoneses, nem chineses: eram bolivianos sem remuneração e carne de pomba. Quando Erivelto soube do esquema, passou a cobrar propina dos senhores de engenho para ficar de bico fechado. Melhor dizendo: passou a querer cobrar propina. E cobrou? Não , né! O mal do malandro é achar que só a mãe dele fez filho esperto. O esquema rodou, mas o único que tomou foi ele, o Erivelto. Apanhou, ainda por cima. De quem? De um dos bolivianos: “Perdí mi trabajo, pendejo!” disse amuado ou quase isso. Vai entender…

IV: SANTA SUELEN:

Suelen não nasceu. Suelen foi criada em laboratório. Em 1970, apesar de não parecer, as pesquisas com genética já estavam avançadas no superlativo: do óvulo e de tratamentos bioquímicos, nasceu a mórula em chocadeira elétrica e bem aquecida. Partenogênese. Um experimento de alguns tentáculos da Ditadura Militar que até deu certo. Até certo ponto, na realidade, pois foi dado nome ao experimento, registrado em cartório, o experimento, e jogado ao mundo e destino ela, a Suelen, experimento. Por que o criador repudia a criatura? Por que Deus nos arrancou do ventre de nossa mãe, Éden e seus Jardins?! Para cumprir o ciclo natural das coisas. Tá, mas quem disse que eu queria fazer parte deste circo? Meu Deus, e para aquelas criaturas que não vieram nem do ventre e nem do ovo? Por que a expulsão? A expulsão ocorreu pois Suelen tinha a marca de Cam: era negra, ela. Como que a Ditadura Militar assumiria um bebê de procedência tão tecnológica da cor preta? O jeito foi o orfanato e uma ajuda de custo simbólica à coordenação do lugar. Toda aquela vida, uma quimera até completar seus dezoito anos, Suelen. Depois, ela foi pras ruas brincar de Maria Madalena em dinheiro vivo.

Das idas e vindas de seu trabalho lá no Glicério, ela conheceu Erivelto. Amor à primeira vista. Namoro à primeira beijada e casamento ao primeiro filho. Por motivos da vida ou do destino, não era gravidez. Milagre da ciência ou fatos da fé? Não: gases. O pessoal lá do postinho de saúde se confundiu. O que fazer numa situação dessas? Arregaçar as mangas e batalhar uma vida junto do homem que você jurou amor eterno com data de validade, a morte. Com a vida e o tempo, Suelen fez carreira sendo lavadeira de madame de classe média. Falavam em caviar, arrotavam pão com ovo e cagavam-se pelos boletos e poupanças confiscadas. Apesar das turbulências todas, ela se manteve firme e forte em seu emprego, diferente do marido que, a despeito de estar beirando os quase cinquenta anos, era mais filho que seu marido, às vezes. Respira. Quando soube do fim do contrato de Erivelto de animador de mercadinho de calçada da Liberdade — e que, por ironia do acaso, apanhou de sair sangue pelo nariz e de sentar e chorar —, virou fera! “Amanhã mesmo quero ver você na fila do emprego ou gastando seus olhos nos amarelinhos dos jornais da cidade!”, disse ela berrando. O cortiço todo ouviu os gritos. Mais um motivo para deixar Erivelto envergonhado. E bem feito!

V: EPIFANIA: 

Uma lâmpada queimou na cozinha. Tony, o manda chuva lá da firma de negócios e papéis moedas, onde o nosso garotão trabalhava, mandou a empregadinha, Dona Mocinha, velha de calcanhar defeituoso, trocar a lâmpada. Uma lâmpada queima para que outra a substitua. Alan estava estudando os papéis e cases do Zé Fernando, espólio burocrático. Dona Mocinha não alcançava a lâmpada. Reclamação. O relógio estava fazendo seu “tic tac” miserável. Alan estava batendo sua Montblanc nos teclados de seu Macintosh. O fax berrando alguma coisa. A velha quase se estabacando no chão. Telefone tocando. Secretária eletrônica. Secretaria de carne e osso. Salto alto no chão de taco. O relógio. A Montblanc. O fax. A velha. O telefone. O trânsito lá fora e a falta de descarga lá do banheiro. E o Tony, com a impaciência que seu cargo e salário lhe concederam, foi ser grosseiro com Dona Mocinha, que não estava a alcançar a lâmpada e nem a achar a escada e nem… Apenas com sua linguagem corporal de delambido, apesar dos olhos oblíquos, Tony calou-a ao mesmo tempo que trocou a lâmpada rapidamente. Passivo bem agressivo. Bem passivona, mesmo, meninas! Acabou o drama sem cenas pós-créditos. Dona Mocinha foi de esfregão e banheiros encardidos do outro andar, ao passo que ele, o chefão, foi de Alan: “Bittencourt, quando você terminar aí com esses papéis, faz um favorzão pra mim? Desliga a velha, amigão?”.

Antes de qualquer conjunção adversativa de Alan, Tony deu a carteirada da conjunção explicativa: “Porque sim!”, saindo rápido pois tinha uma reunião importantíssima lá na Augusta com um grupo de jovens. A bomba estava instalada e a batata esquentando. Tempo pro cafezinho, o Alan: “Mas ela, a velha, precisa desse emprego!”. Sorumbático. O relógio continuava com seu “tic tac” miserável. Fim de expediente e Alan não teve coragem de demitir a velha. Ele foi pra casa. Mais um pouco de água gelada com ar fresco pra racionalizar suas ideias. O que fazer quando se tem dentro da garganta um mundo interno que precisa berrar? O sol. As nuvens. A poluição de São Paulo. O Alan indo de metrô até o trabalho. Caminhada pela Avenida Paulista até chegar aos pés da firma, bem de frente ao Conjunto Nacional e do ladinho da Augusta, e ver Dona Mocinha acendendo um cigarro. Inspira, expira e deixa o fogo queimar o estresse. Ele chega até ela e a questiona como ela está: “Nunca estive melhor, filhinho!”, tosse, “Acabei de me demitir. Mandei aquele viado do Tony pra bosta!”. Alan tem um misto de “ué” com um toque de “vish”. Ela retorna: “Tem hora que não vale a pena, né?! Vou vender pano de chão lá na Brasilândia. Melhor, né?! E outra, você sabia que o Tony dá no coro de um bando de menores de idade lá na Augusta. Doente, né?!” Os olhos de Alan despertaram-se em um misto de demissão da velha com um toque de “Vá a bosta, Tony!“. Ele tira sua gravata caríssima, joga no chão e vai ter um papo com o chefe…

VI: CATAR MANGA PRA VENDER: 

Todo santo dia, Suelen acordava um pouco mais cedo para ajudar Erivelto a catar mangas. Manga Palmer. Pega a fruta, embala em jornal, acomoda em caixotes de madeira e os organiza em uma carriola. Sai vendendo. Durante semanas, a produção estava rendendo bastante, até o dia que Erivelto decidiu ler o jornal do dia anterior: “Herdeiro enlouquece, abre mão de super emprego, Dólares e apartamento nos Jardins e passa a viver como andarilho pelas ruas de São Paulo“. Coçaram a cabeça o Erivelto, a Suelen, os paulistanos todos e você, caro amigo, que não está entendendo nada. “Oxe, Erivelto. Herdeiro abriu mão de fortuna, foi?!”, Suelen indagou incrédula. Erivelto disse sim com com o queixo caído: “Como que um alguém como este imbecil teve acesso ao dinheiro, à boa vida, a uma herança? A gente na pindaíba não ganha promoção nem de farmácia de bairro, Suelen. Mas esse idiota nasceu em berço de ouro. Pra quê?!”. “Porque Deus quis”, retrucou Suelen. Erivelto incrédulo: “Não perguntei os motivos, mas sim a finalidade: para o quê este desgraçado nasceu em berço de ouro e a gente, na bosta?!”. Minutos de discussão para, logo em seguida, prepararem-se para as horas de trabalho. A revolta indagada acompanhou o casal, cada um à sua maneira. Foi o dia inteiro filosofando a realidade, até Erivelto vender suas últimas mangas na região da Praça da Sé. Vendeu, recolheu sua carriola e alguns caixotes e foi tomar um martelinho para clarear sua cabeça.

De martelinho em martelinho, foi ficando menos crítico e mais calmo e contemplativo. Contemplou os mendigos, os marginais, as garotas da noite, os ratos, as baratas, as pombas, os retirantes e os pregadores da Bíblia e palavras da Fé. Penhorou a carriola e os caixotes lá no bar. Foi caminhar. Viu muita gente falando a palavra de Deus. Todos de terno, uma Bíblia velha e bastante revolta na oração. Todos homens da Escatologia pastoreando suas ovelhas pro fim do mundo e dízimo… Porém, tinha um que fugia completamente do padrão: alto, loiro, roupas sujinhas, bom português, bochechas rosadas, barbicha por fazer e mãos livres. Era Ele, o Alan. Erivelto ficou assistindo-o. Suas palavras estavam a cativar um certo público, o Alan. O “pra quê” virou “o quê?”. Na hora, Erivelto não ligou o pregador Alan da Praça da Sé àquela matéria de mais cedo, do herdeiro, apesar de ter se apaixonado por ambas as figuras. A primeira paixão foi pela bizarrice, ao passo que a segunda, foi interesse genuíno, tipo adoração. Amor homoafetivo? Não: as pessoas estavam a dar-lhe moedas a cada vírgula proferida por sua boca de gramática perfeita e uma garganta berrando o mundo inteiro. Sem pensar duas vezes, Erivelto entregou-lhe um de seus caixotes: “Aqui, amigo. Pra sua voz chegar mais longe!”. Alan agradece perguntando seu nome e agarrando mais ares para seus pulmões, “Tenho Fé na humanidade! O nosso irmão Erivelto me deu a oportunidade de minha voz…”, sobe no caixote, “A oportunidade de minha voz chegar mais longe e atingir mais almas, as minhas palavras!”. Aplausos. “Você gosta de cerveja?”, uma amizade acaba de nascer, paga por Erivelto.

VII: SEJA FEITA VOSSA VONTADE: 

A vontade de Alan era falar. Falar, falar e falar. Ao passo que a vontade de Erivelto era dinheiro. Dinheiro, dinheiro e dinheiro. “Eu trabalhei por anos como garoto-propaganda para o maior mercado oriental daqui de São Paulo. Posso arranjar um microfone para você!”, tomou dois Pinga Fogo consecutivos, o Erivelto em tons de exageros autovangloriados. Comendo feijoada com bastante farinha, tudo na conta de Erivelto, Alan deliciou-se: “Eu quero palanque, sabe? Quero ser livre, falar livremente tudo o que eu sempre quis! O mercado de ações te prende igual uma rodinha de hamster…”, toma uma golada de Coca Cola, assentando a farinha e arrotando gostoso. “Eu te entendo. Juro! Não era fácil bater as metas lá no mercadinho. Isso quando não tínhamos que mentir a procedência de qualquer coisa que era vendida. Carne de porco? Gato de rua!”, projeta a voz, o peito e o corpo, “Mais uma Coca, amigão!”. Coquinha gelada. Alan continua a explanar suas idéias: “Eu quero falar, pregar a minha verdadeira história, a minha verdadeira vontade, sabe? Sem depender de chefe, ou estar comprometido com qualquer agenda. Quero ser eu mesmo, o Alan!”. Termina de falar, toma o resto da Coca e arrota novamente. Gente como a gente.

Já Erivelto, mais vivido na dificuldade material e de carne bem gasta, queria dinheiro. “Não que eu não acredite em Deus ou em qualquer outra entidade. Creio, sim. Porém, pra mim ou pra qualquer outro pobre, não tem entidade mais presente que o nada, que a escassez, sabe? Como preencher o vazio existencial, que É o que realmente dói na carne? Enchendo meu quarto escuro de luz, minha barriga faminta de comida e um pouco de luxo, por que não? Poder comprar papel higiênico folha dupla é um objetivo!”. Alan ri por dentro, mas percebe que aquele desejo é genuíno. Ali, naquela mesa de bar, nascia a parceria do século XX! De ambas as partes, um podia dar ao outro os milagres que tanto procuravam. A famosa relação ganha-ganha. Erivelto entrega holofote, enquanto que Alan entrega a voz e o dinheiro. Erivelto fica com o dinheiro. Alan, adoração! “Se eu soubesse que o destino ia fazer a gente se encontrar, não teria doado minha grana pras crianças carentes, pô!”, riem-se. “Vou transformar você no maior pregador daqui da Praça da Sé!”, pede uma coxinha de saideira, Erivelto. Ensimesmado, o Alan: “Mas não quero ser o maior…”, raspando o prato de feijoada. De coxinha na boca, Erivelto arremata o murmurar de Alan com um aperto de mão e muita ganância no peito: “mas EU quero que você seja o maior!“. Pimenta caseira da casa.

FIM PARTE UM. 

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