PARTE I – A Chegada

“Quando o mundo dos vivos se misturar ao mundo dos mortos eu serei tudo o que você sempre teve medo”

1920 – Vilarejo Santa Helena – Internato no alto da colina

Aquele menino raquítico, de cabelos encaracolados e olhar amedrontador que sempre infernizava a vida das outras crianças do internato, terminou de escrever estas palavras em uma parede de pedra do celeiro. Se virou para os seus “amiguinhos” e largou a pedra pontuda com que rabiscava. Todos estavam em colunas de frente para ele à vinte metros de distância. Encaravam-no com olhos arregalados. Tinham medo de suas brincadeiras. Tinham receio de
suas atitudes.

“1, 2, 3, bate na parede”. Disse o menino de frente para a parede rabiscada. Então virou a cabeça e os quatro amigos já estavam mais próximos. Havia mais quatro rodadas e se ninguém tocasse seu ombro ao final da contagem, ele escolheria mais um para se juntar à Anne e Richard no quarto misterioso do segundo andar.

“1, 2, 3, bate na parede”. Disse mais uma vez virando-se novamente para os colegas. Três deles estavam mais perto e um estava dois passos para trás. Restavam três rodadas. Ele tinha plena certeza que iria mandar mais alguém para aquele quarto. Sorriu seu sorriso maléfico e voltou seu rosto para a construção. “1, 2, 3, bate na parede”. Disse ele e…

…quando virou-se nenhum dos amigos estavam ali. Arregalou os olhos sem reação. Atrás do internato nuvens escuras e carregadas prometiam chuva para qualquer momento. Um trovão cortou o céu. Ele estava sozinho. Ele agora sentia medo. Ele pressentiu que tinha perdido. Podia ouvir claramente as risadas das quatro crianças, mas não fazia a mínima ideia de onde eles estavam.

Olhou para a floresta fechada que rodeava o internato e decidiu sair procurá-los antes que a chuva chegasse. Adentrou a mata quando as primeiras gotículas começaram a cair. Ouviu as vozes chamando pelo seu nome. Vozes que se tornavam mais nítidas. Vozes que se juntavam aos trovões. Vozes que tomavam conta do ambiente enquanto um vento soprava intensamente dobrando o topo das árvores.

Dois dias depois

Passos pesados subiram apressadamente os degraus da escada que levavam até o segundo andar. A senhorita Mercedes, uma freira magra e alta de cabelos negros como a noite ia na frente seguida de perto pelo padre Roges, um homem negro no auge dos seus 50 anos de idade. Ao chegarem no corredor escuro ambos se encolheram em seus braços sentindo um ar gelado que tomava conta do ambiente. “Eu lhe disse, padre.” Comentou Mercedes com uma voz rouca que fazia as palavras saírem tremulando de sua boca.

E então Mercedes se dirigiu para a porta vermelha daquele quarto no final do corredor. As tábuas largas e gastas do assoalho rangiam enquanto ela trocava os passos. Padre Roges permanecia parado no topo da escada observando o ambiente. Puxou de dentro da sua batina um crucifixo que carregava pendurado ao pescoço, fechou os olhos e beijou-o, aparentando já imaginar o que havia dentro daquele cômodo.

A fechadura dourada fez um estalo quando a mão fina e branca daquela freira forçaram-na para abrir. Ela fez cara feia ao sentir o odor que impregnava de dentro do cômodo. Respirou fundo e empurrou calmamente a porta. Olhou por sobre seus ombros e notou que o padre Roges já estava mais próximo, aflito pelo que estava por vir. No escuro, tateou com sua mão à procura do interruptor. Quando o encontrou não hesitou em acendê-lo. Então a luz amarelada iluminou aquele cômodo. Um ambiente que exalava tristeza. Uma cama de madeira com cabeceira detalhada e com lençóis encardidos estendidos. Na janela lateral uma cortina vermelho sangue impedia que a luz exterior adentrasse no local e no fundo, ao lado do roupeiro antigo, havia uma cômoda com algumas bonecas que pareciam estarem sempre lhes observando.

“Então este é o quarto?” Perguntou o padre Roges parando ao lado de Mercedes na porta.

A freira olhou ao redor e demorou alguns instantes para responder a pergunta e também para criar coragem de entrar naquele quarto.

“Eu ainda não me conformo que eles ficaram aqui dentro presos por dois dias seguidos sem comer e clamando por ajuda sem que nós ouvissemos os seus chamados.” Disse Mercedes com a sua voz peculiar. Padre Roges percorreu o olhar por cada centímetro daquele quarto até fixar os olhos em um crucifixo de madeira pendurado na parede acima da cabeceira da cama. A luz começou a piscar e o crucifixo começou a girar lentamente até ficar de cabeça para baixo. Mercedes arregalou os seus olhos enquanto Roges pressentiu o mal que se fazia presente. Arrancou o cordão com a cruz de seu Jesus do pescoço e segurou firme à frente do corpo. Risadas de crianças tomavam conta do lugar e não demorou para que os vultos das mesmas se fizessem presente pelo quarto. Um total de sete crianças. Todas rindo de forma amedrontadora e fechando o cerco em volta dos súditos de Deus.

“Em nome de Jesus!” Dizia o padre Roges enquanto apontava sua cruz na direção dos vultos…em vão.

Um menino raquítico e de cabelos encaracolados se aproximava cada vez mais dele até que o padre tombou para trás caindo de costas no chão. De imediato seus olhos reviraram e seu último suspiro pôde ser presenciado. A irmã Mercedes, apavorada, se aproximou mas foi interrompida pelo vulto de uma menina loira que agarrou seu pescoço com ambas as mãos apertando-o. Esperneou, lutou e conseguiu se desvencilhar. Correu saindo do quarto e fechando a porta com força. Ajoelhou-se chorando no corredor. Não tinha mais forças para seguir. Aquele quarto. Aquele maldito cômodo estava tomado pelos fantasmas daquelas sete crianças…e quem entrasse ali dificilmente sairia com vida. Ela era uma sobrevivente. Deus tinha algo melhor planejado para ela. Respirou fundo, desceu as escadas, saiu porta afora sem olhar para trás e nunca mais pisou ali.

2020 – Estrada de terra batida

“Alguns segredos devem permanecer para sempre escondidos nas entranhas da terra”

A frase escrita em uma placa empoeirada na beira da estrada chamou a atenção de Magali, uma senhora de cabelos curtos e brancos, óculos de grossas lentes e pele enrugada. Ela virou o rosto quando passou pela placa torta pendurada no tronco de uma árvore com o seu Fiat 147 caindo aos pedaços. Com a mão trêmula ajeitou o retrovisor e encarou o banco traseiro, onde uma menininha loira estava agarrada em uma boneca de pano. Emburrada. Triste. Ao seu lado no banco havia uma mala antiga.

“Estamos quase chegando, Alicia!” Disse a senhora ficando sem respostas da menina de sete anos de idade, que fitava os seus olhos azuis nos campos verdes do lado de fora.

Algumas nuvens escuras já se formavam no céu ofuscando o brilho dos raios solares daquela manhã nitidamente estranha no vilarejo Santa Helena. O Fiat 147 de cor azul bebê de Magali estacionou no alto da colina em frente à imponente construção antiga que estava intacta após um século de vida. Com imensa dificuldade, Magali saiu do veículo e puxou o banco para que a pequena Alícia descesse. Emburrada, a garota cruzou os bracinhos abraçada à sua boneca e ficou escorada no carro enquanto a bisavó puxava a mala para fora.

O silêncio do lugar só era quebrado pelo canto de alguns pássaros que sobrevoavam o casarão. Foi quando um estrondo chamou atenção de Magali e sua bisneta. A porta grande e com detalhes emoldurados foi aberta e uma mulher alta, de longos cabelos loiros e andar arcado, beirando os seus 50 anos de idade e usando um longo vestido preto surrado, apareceu sorridente convidando-as para se aproximarem já descendo o lance de cinco degraus indo de encontro para ajudar com a bagagem.

“Sou Allegra Doménic” Disse a mulher sorridente estendendo a mão para a senhora.

Allegra Doménic perdeu o marido e o filho pequeno há 10 anos em um trágico acidente naquela mesma rodovia que levava até o internato Santa Helena. Sofreu todo este tempo em silêncio entrando em uma profunda depressão que quase a levou para o túmulo. Com uma quantia razoável herdada do marido falecido, comprou o casarão antigo datado de 1861 e reformou-o para reabrir ali o internato. Em um mês já contava com três crianças e agora chegava mais uma, a pequena Alicia Stela.

Magali sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. Sua paranormalidade, que há tempos andava escondida, parecia querer aflorar. Sua expressão congelou e ela fez questão de não aceitar o convite de Allegra. Uma voz ecoou dentro de sua cabeça e a fez refletir por alguns instantes.

“Salve a menina! Não a deixe! Salve a menina!”

“Tenho pressa pra voltar” Disse Magali pegando na mão de Alicia e a entregando para a mulher sorridente.

A pequena não esboçava qualquer reação. Baixou a cabecinha e ficou ao lado de Allegra. Apenas levantou o olhar tristonho e assustado quando ouviu o ronco do motor do Fiat 147 que logo ganhou a estrada descendo a colina. O amplo salão da entrada estava preservado com os móveis de 1920. Armários grandes cobriam as paredes com a pintura escura renovada e os lustres cobertos de detalhes e com suas luzes amareladas, iluminavam sofás amadeirados com estofados verde musgo. Em um canto, em frente à uma porta dupla que levava direto para o jardim de trás, havia uma mesa grande que parecia estar posta para alguma refeição importante. Allegra puxou uma das cadeiras estofadas e serviu duas xícaras de chá, convidando a pequena Alicia para sentar. Tímida e ainda emburrada, a garota sentou sempre com os olhinhos acesos na direção de um vidro de biscoitos. “Está com fome?” perguntou Allegra abrindo o recipiente e entregando um biscoito para a menina que assentia que sim com a cabeça.

Não demorou muito para as algazarras das outras crianças tomarem conta do ambiente. Manu, menina morena de 7 anos e Kevin, loiro de olhos claros de 9 anos, entraram correndo no grande salão seguidos por Phelipe, magro, moreno de 8 anos, que gargalhava enquanto tateava o lugar com a sua bengala, mostrando que mesmo sem visão já se adaptava ao ambiente.

Allegra logo fez questão de que as crianças se acomodassem para conhecer a nova colega. Alicia observava-os de canto de olho enquanto saboreava o seu biscoito. Foi quando as três crianças se sentaram quietas. Manu e Kevin, com seus olhinhos arregalados, encararam Alicia, que parecia já não se importar muito com a presença deles. Phelipe olhava pro nada. E foi em sua face que a pequena Alicia concentrou sua atenção de uma hora para a outra largando a xícara e o biscoito sobre a mesa.

Allegra estranhou aquela atitude da mais nova moradora do internato. Notou que algo estava fora do normal. Arrepiou-se com um vento repentino que adentrou o local e encolheu-se abraçando seus braços. “Ok, hora de ir conhecer seu quarto”, disse ela se levantando e chamando Alicia para lhe acompanhar.

Havia uma cama velha de madeira, uma cômoda caindo aos pedaços e um roupeiro na parede ao lado da janela de cortinas amareladas. A mão de Allegra pousou no interruptor de luz ao lado da porta e, de repente, tudo clareou. Alicia, com os olhinhos esbugalhados, observou atentamente aquele cômodo. Allegra suspirou fundo, olhou para baixo em direção à menina ao seu lado e sorriu. “Pronto, este será o seu quarto, Alicia. Guarde suas coisas no roupeiro e pode descansar um pouco se quiser. Mais tarde te chamo”. Alicia deu dois passos para dentro e ouviu a porta às suas costas se fechar. Sentiu um frio na espinha, encarou um crucifixo de madeira pendurado acima da cabeceira da cama e puxou sua mala para perto do roupeiro começando a guardar seus pertences. Ouviu algazarras vindo do lado de fora, foi até a janela e espiou puxando o canto da cortina amarelada. Manu, Kevin e Phelipe brincavam no gramado. Perdeu-se no tempo ali observando àqueles que seriam seus companheiros de agora em diante.

Um sussurro acompanhado de três fortes batidas vindas de dentro do roupeiro assustaram a pequena Alicia. Ela virou o rosto rapidamente para o local de onde ouviu o barulho e seu corpo congelou. Seus olhos arregalaram-se e ela não teve forças para se mexer. “1, 2, 3…bate na parede”, e ela ouviu repetir-se as três batidas. Tudo silenciou e Alicia virou-se novamente para a janela. Lá fora, Manu e Kevin corriam dando gargalhadas ao redor de Phelipe. Mas não foi isso que despertou a atenção de Alicia. Além deles, na entrada da floresta, um menino de capuz fazia sinal com a mão como que a chamando para lhe acompanhar…

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  • Excelente estreia, meu amigo! Já quero ver o que vai acontecer com a Alicia nesse Internato.

    • Obrigado meu amigo. Você se surpreenderá com o que está por vir. Que bom que gostaste!!!

  • Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

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