Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:

automedicação / confusão mental / homofobia internalizada / linguagem imprópria / relação interpessoal aluno e professor.

 

12 de fevereiro, 2017, manhã de domingo

— Sei que estou fazendo a coisa certa, sei que estou. E não é por mágoa. Ou talvez seja. Mas com certeza não é por vingança, não é.

Lucas sente-se emocionalmente desorientado, uma desorientação que a cada segundo se espalha por todos os recantos do seu ser, se expandindo como o universo, enquanto roga desesperadamente para que os seus pensamentos, sentimentos e sensações e toda essa confusão mental e paralisia emocional possam ser consumidas por um buraco negro errante, deixando-o oco, inteiramente vazio.

Mas isso não vai acontecer, ele sabe. A fragilidade, a impertinente fragilidade arraigada dentro de si, está alimentando mais e mais a batalha entre a razão e a emoção que se entrelaça como uma erva daninha em meio às flores saudáveis da sua essência, da sua derradeira ingenuidade, forçando-o a confrontar, perversa e sistematicamente, o lado sombrio da personalidade humana. O que precisa fazer — o que deve ser feito — segue bailando firme e determinado com uma feroz hesitação motivada pela porra de um bom senso que se ele pudesse extirpar, ali, agora, com as próprias mãos, onde quer que esteja, faria sem pestanejar e pagando com a vida se fosse preciso.

Como? Como? Como? Lucas não cansa de se questionar, uma indagação que contém milhares de respostas, porém, nenhuma delas satisfatórias, nenhuma delas que não consiga deixá-lo completamente em pedaços. Como lidar com a figura desonrada do pai? Como vai conseguir encarar a mãe para contar o que precisa ser exposto, por mais difícil e tenebroso que essa verdade possa parecer? E o pior de tudo: como lidar com o embate, com a inevitável dissociação de seus sentimentos em relação a Márcio Antônio?

Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, senta-se para um banquete de consequências, e essa tempestade não fora provocada por ele, não mesmo.

— Sei que estou fazendo a coisa certa, sei que estou. E não é por mágoa. Ou talvez seja. Mas com certeza não é por vingança, não é.

Com os pés fincados ao chão, Lucas permanece imóvel, tenso, os dedos crispados na amurada do viaduto ao tempo que semicerra os olhos sem desviar um instante sequer a atenção dos carros, dos caminhões e das motos avançando velozes a alguns metros de distância sob seus pés, enquanto segue sussurrando, repetindo e repetindo que não irá, não irá e não irá de jeito nenhum à chácara alugada por seus pais para passarem o carnaval. Não, não irá. Ponto. Até porque vai ser impossível essa viagem acontecer.

Mas por que razão está sussurrando? Quem vai escutá-lo, ali, onde está?

— Por que não contei pra ele? Por quê? — Lucas volta a balbuciar ao mesmo tempo que sente uma fisgada na altura do umbigo — Márcio Antônio me deu todas as chances. O cretino sabia que eu queria falar… Na verdade, ele sabia O QUE EU QUERIA FALAR. Mas eu me perdi. E se uma coisa não for dita no momento certo, ela desaparece, irreversivelmente. A verdade se afasta, escapa…

Lucas sente uma vertigem, forte, à medida que o ar lhe falta por um breve instante, segundos que se transformam numa eternidade ao passo que contrai os dedos com mais força na amurada do viaduto. Nesse ínterim, o celular começa a vibrar no bolso da bermuda vermelha que está usando e algo, dentro de si, sugere que é Márcio Antônio no outro lado da linha e ele, claro, não vai atender, não vai. Irá pra casa, é isso, vai pra casa e correr para o banheiro e arrancar aquelas malditas roupas: a camisa polo, branca, de Márcio, a bermuda vermelha de Márcio… E depois… E depois… E depois de se enfiar no chuveiro e tomar um bom e longo banho para lavar as impurezas da noite anterior, irá queimá-las. Sim. Aquelas malditas roupas irão se transformar em cinzas assim como o sol enganador de seus sentimentos em relação ao professor.

Por que razão não acabou vestindo as próprias roupas antes de deixar a porra daquele apartamento para trás, ainda que elas estivessem úmidas e com alguns rasgos, amolambadas como Márcio Antônio mesmo as chamou? Por que se deixou convencer do contrário?, Lucas se questiona, a raiva determinado o ritmo da respiração.

“Gosta do que vê, pro-fes-sor?”.

O celular segue vibrando.

“Vá para casa… Seus pais… Eles sabem onde você está?”.

Lucas, por fim, arranca o aparelho do bolso da bermuda e no display um número desconhecido que não é o mesmo número desconhecido que está gravado no seu WhatsApp — o tal número que lhe enviou as fotos, aquelas malditas fotos enquanto estava na cama de Márcio Antônio —, conclui depois de uma rápida comparação. Sem demora, conforme a dor lhe engasga a garganta, conforme o celular, graças aos céus, acaba por silenciar, arremata, sob o domínio nocivo da ira, assim como todos os homens que se sentem injustiçados, respondendo intensamente a uma ameaça, que a pessoa que está tentando falar com ele é, sim, o professor.

— Por que fui esquecer a porra do papel onde anotei o meu telefone? — ele lamenta; o peito arfando de cólera e indignação ao passo que empurra o aparelho bolso adentro — Era a primeira coisa da qual deveria ter me lembrado quando saí daquele maldito apartamento.

O celular volta mais uma vez a vibrar deixando Lucas, agora, quase completamente fora de si, a ponto de arrancar o aparelho do bolso e rejeitar a ligação com uma fúria de titã para, logo em seguida, associar o nome do professor àquela nova sequência de algarismos; uma marca de Caim para lembrá-lo de sua vulnerabilidade, de seu pecado, de sua queda.

12 de fevereiro, 2017, madrugada de domingo

“Lorde Henry examinava-o… Ele era, decerto, extraordinariamente belo, com os lábios escarlates finamente talhados, os claros olhos azuis, a cabeleira de cachos de ouro. Tudo na sua face atraía a confiança desde que nela não se descobrisse essa candura de mocidade aliada à pureza ardente da adolescência. Sentia-se que o mundo ainda não o havia poluído…”.

Márcio Antônio, nu, sentado à beira da cama, próximo à porta do quarto do seu apartamento, se recorda de uma passagem de O retrato de Dorian Gray enquanto segue contemplando Lucas, deitado, adormecido, também nu em pelo e pele. Assim como no célebre personagem criado por Oscar Wilde, nada, exatamente nada no corpo do filho de seu amante pode ser chamado de imperfeito, ainda que seja um corpo franzino, de pernas esguias, torneadas, mas esguias demais, ainda que tenha os braços longos e os poucos pelos, um conjunto destoando impiedosamente da beleza grega com a qual está acostumado a apreciar e usufruir, Márcio Antônio pondera e conclui sem melindres. Sim. Da eterna beleza grega que sempre buscou incessantemente nos corpos perfeitos dos rapazes, dos mais jovens, sempre dos mais jovens, na marca da sexualidade lapidada, inebriante de cada um deles, embora muita das vezes acompanhada de uma irritante prepotência.

Mas nenhum deles, nenhum daqueles paus, daquelas bundas e línguas, nenhuma daquelas peles ainda sem as marcas deixadas pelo tempo, pela vida, nenhum daqueles efebos, daqueles moçoilos conquistados fosse pela força do desejo ou pela necessidade do vil metal, Márcio Antônio agora pode afirmar, convicto, depois do que ele e Lucas fizeram sobre esta cama, depois que o adolescente o surpreendeu com sua beleza não só admirável, mas também demoníaca, selvagem, nenhum deles, nenhum daqueles corpos perfeitos levou a ele, Márcio, dar e receber emocional e sexualmente o que Lucas lhe dera… Nem mesmo a paixão dedicada ao desembargador.

Lucas! Lucas!

Não. Não. Ele não cedeu aos encantos do filho do seu amante por vingança. Não. Mesmo se sentindo injustiçado e ofendido e por mais que o desembargador merecesse, por mais que o desembargador mereça, ele não está se vingando. Não está. A vingança, sem sombra de dúvidas, não deixa espaços para receber todas essas sensações que lhe foram ofertadas, ao contrário, a vendeta endurece as feridas emocionais.

Márcio Antônio sente lágrimas se formarem no canto dos olhos. Talvez pudesse ficar ali, eternamente, admirando aquela criatura humana tão primorosa; admirando seu corpo firme descansando sobre o lençol emaranhado com sua pele marmórea cobrindo a cama como um manto etéreo. Permanecer ali para sempre apreciando aquele tórax, a penugem sobre aquela barriga exata, o sexo, a virilidade perfeita ainda que adormecida.

Não. Não. Mas é claro que não pode. Já não poderia ter cedido a Lucas. Ele, Márcio Antônio, deveria ter chamado a porra de um táxi e enfiado o garoto dentro dele e adeus! Deveria ter imposto limites; deveria ter se imposto limite…

“Gosta do que vê, pro-fes-sor?”.

Márcio Antônio meneia a cabeça; a consciência, de repente, se permitindo contorcer por inimagináveis torturas, esmagando-o.

A mão direita está tremendo… Mas há quanto tempo?

Novembro, 1976

Ronaldo seguia inquieto e em completo silêncio em sua cadeira, a primeira da fila próxima à porta da sala de aula, enquanto o vozerio dos outros alunos não cessava. O primeiro tempo ainda não havia começado; o professor de geografia estava atrasado já havia vinte minutos.

As costas ligeiramente curvadas de Ronaldo se tornaram um pouco mais proeminentes depois que ele se projetou para frente, focando a atenção sobre algumas páginas em branco do seu caderno à medida que começava a passear com a ponta do lápis sobre elas, registrando rabiscos aleatórios, desenhos aparentemente disformes até, por fim, esboçar um coração de traços delicados, tão tênue e hesitante como se ele, Ronaldo, carregasse todas as dúvidas e vergonhas existentes no universo ao ousar estampar aquela figura.

Como se já não bastasse o que escrevo no meu diário, ponderou entre receoso e exultante.

Um suspiro longo e então Ronaldo ergueu a cabeça rapidamente em direção à porta e depois à mesa vazia destinada aos professores, à frente do quadro negro. Cadê você, Camiro?, ele se questionou, angustiado, o sentimento de culpa avançando mais e mais por cada canto de seu coração e de sua mente conforme voltava a deitar o olhar sobre o caderno.

“Não importa se você aparenta ter mais idade, você continua sendo apenas um adolescente”.

A voz enfática do professor de geografia repreendendo-o repercutiu pesada, densa. O olhar de advertência de Camiro sobre ele, sobre o seu corpo nu, franzino, mancebo, tomou uma proporção alarmante dentro daquela recordação e daí a sensação de vergonha, uma vergonha absurda, quase sufocante, a mesma sensação de vergonha avassaladora e dilacerante que sentiu na noite anterior, invadiu Ronaldo por completo. Se pudesse voltar no tempo não teria ido atrás do professor, até a casa dele, na noite anterior, não teria ficado semiembriagado para tomar coragem, não teria forçado tudo aquilo, não teria se apaixonado, Ronaldo lamentou, os rabiscos aleatórios sendo registrados com mais força sobre algumas das páginas do caderno.

— Eu entendi tudo errado — balbuciou, amargo — Entendi todos os sinais, os olhares e os gestos de Camiro de forma totalmente errada… Fui um completo idiota, é claro. Como nem sequer pude imaginar que o professor, um homem adulto, bonito, um corpo perfeito, que com certeza pode ter todas as pessoas que quiser no mundo, e possivelmente deve ter alguém na vida dele, iria olhar pra mim, um aluno dentre tantos, um reles moleque de catorze anos?…

“Não temos nada em comum, garoto, a não ser o colégio onde você estuda e onde eu leciono”.

Ronaldo inspirou e expirou e inspirou e expirou, pausadamente, pelo diafragma, ao invés do peito, à medida que resquícios da noite anterior, a humilhação pela qual se permitiu passar, insistiam em se fazer presentes, ainda que lutasse para que desaparecessem… Ainda que vez em quando tudo aquilo lhe parecesse um sonho, um mero sonho, um delírio, um recorte de uma realidade preservada.

Nós iríamos nos arrepender… Eu iria me arrepender…”.

“Arrepender do que, professor? Podemos ser amigos…”.

“Não. Não podemos…”.

“Claro que podemos”.

“Ronaldo, você tem o quê? Catorze, quinze anos, se não me engano, não é mesmo?”.

“O que importa? Todos me acham mais velho…”.

“Não importa se você aparenta ter mais idade, você continua sendo apenas um adolescente e eu… Eu tenho vinte anos a mais que você. Eu sou o adulto nessa história. Um abismo separa os nossos mundos, Ronaldo, entenda isso. Não temos nada em comum, garoto, a não ser o colégio onde você estuda e onde eu leciono. E isso por si só já seria um grande obstáculo dentro dessa história. Então, ouça bem: nunca seremos amigos fora daquelas paredes”.

As mãos de Ronaldo, após abandonar o lápis, as páginas do caderno e a mesa, desceram até suas pernas, refazendo mecânica e inconscientemente o mesmo gesto de afago que fizeram sobre as pernas trêmulas do professor de geografia.

Sim. Ele esteve lá. Ele sentiu o medo, a hesitação e o controle digladiando por e sobre cada parte de Camiro…

Sim, professor, sim, Camiro, você reparou em mim desde o começo. Desde o instante em que fiz questão de me destacar nas suas aulas, me mostrando curioso sobre tudo o que você dizia… Passou a me observar como se eu tivesse sempre olhando pra você, vigiando cada um dos seus passos. Passou a me observar com olhos transbordando expectativa, uma expectativa muda, angustiada, desde o momento em que aceitou aquele jogo ridículo envolvendo meus livros e meus gibis que eu deixava… não… não… que eu fingia esquecer sobre a minha carteira…”.

“Eu já disse que é melhor você ir embora. Pela minha sorte, pela sua sorte…”.

“Você não quer que eu vá”.

Ronaldo fechou os olhos, forte, continuando a lutar para apagar aquela lembrança, tentando modificar o que viria logo em seguida, mas sabia que não iria conseguir. Ele precisava, mas não conseguiria. Ele deveria, mas não conseguiria. A imagem, a sua imagem, o seu corpo franzino enrolado na toalha se colocando de pé em frente ao professor de geografia era tão nítida quanto às águas de um lago. A sua imagem se afastando lentamente da imagem de Camiro enquanto o professor mirava o chão era constrangedora, digna de pena. Por sorte o seu corpo não estava carregando marcas deixadas pelas cintadas do pai…

Por favor, professor, por favor, me olhe”.

A lembrança vívida do olhar hesitante, apreensivo e revoltado de Camiro se erguendo sobre ele, se transformando imediatamente num olhar condenatório, voltou a queimar a alma de Ronaldo como na noite anterior, a ponto de ele apertar com uma força quase sobrenatural as mãos sobre as pernas, a ponto de fazê-lo morder os próprios lábios de raiva, de arrependimento… mas, também, e infelizmente, de satisfação por ter tido coragem de chegar onde havia chegado…

— Eu vi o mundo todo no seu rosto, professor. Toda beleza e todo sofrimento…

Ronaldo meneou a cabeça, lentamente, assim como o Ronaldo de sua recordação também o fez enquanto desenlaçava a toalha da cintura, até deixá-la cair por completo aos seus pés, como se tivesse planejado cada um daqueles movimentos.

Gosta do que vê, pro-fes-sor?”.

Ronaldo abriu os olhos mal conseguindo conter a aflição e então começou a piscar uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acabou durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote fez com que seus olhos voltassem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda. O que mais precisaria fazer para afastar para bem, bem longe aquela sucessão de pensamentos e recordações exasperadas e tumultuosas? Estava começando a se cansar daquela luta insana contra moinhos de vento. Decepções eram e sempre seriam resultados de falsas expectativas.

— Talvez se eu tivesse contado pra ele… — Ronaldo balbuciou; a respiração ainda um tanto exausta competindo com o vozerio dos outros alunos — Talvez se eu tivesse contado tudo que passamos, eu e a Laura, naquela maldita casa, tudo que eu passo com aqueles verdugos que o destino nos presenteou como pais, tudo o que a pequena Bruna vai passar… Talvez você, Camiro, se você tivesse me aceitado, eu teria contato tudo, pois tenho certeza que você acreditaria em mim, não duvidando, não me julgando, não me culpando como o sacerdote Lucas fez…

— Meninos e meninas…

A voz grave do diretor do colégio, rompendo sala de aula adentro, resgatou abruptamente Ronaldo do mar de sua agonia. O diretor, ao lado da coordenadora do turno da manhã, estava parado, defronte à mesa destinada aos professores, de frente para a turma, com os braços apoiados às costas e com o semblante completamente tomado pela apreensão, assim como o da coordenadora, que mantinha agarrada ao peito a prancheta com os horários das aulas de todas as turmas.

— Meninos e meninas… — o diretor pigarreou antes de prosseguir; seu olhar passeando por sobre cada um dos alunos.

Ronaldo sentiu de imediato um aperto no peito. Segundos antes de o diretor retomar a palavra uma sensação estranha e perturbadora de que alguma coisa não estava certa percorreu todo o seu corpo. Evidente que seria algo a ver com o professor de geografia, com sua ausência. Será que ele havia pedido demissão? Ou pior! Será que Camiro havia sofrido algum acidente? Independente do que tivesse acontecido, Ronaldo puxou o ar com força enquanto começou a morder o canto dos lábios, afinal, ele, somente ele, Ronaldo, seria o culpado por tudo o que pudesse vir a acontecer com Camiro.

— Meninos e meninas… — o diretor sustentou a voz, por fim. — Infelizmente não temos uma boa notícia para lhes dar. Já contatamos os seus pais para que venham buscá-los. As aulas de hoje estão suspensas. O professor Camiro, infelizmente, nos deixou…

— Como assim nos deixou?

Ronaldo, não conseguindo conter-se, interrompeu o diretor ao mesmo tempo que se colocou de pé. Todos os olhares recaíram imediatamente sobre ele, mas aquilo não o deixou nem um pouco melindrado, por incrível que pudesse parecer.

— O professor Camiro… — o diretor encarou Ronaldo com firmeza por alguns instantes e depois de engolir em seco se voltou para a turma — Infelizmente recebemos a notícia da morte do professor Camiro.

24 de maio, 1976

Há duas semanas que ele chegou. O novo professor de geografia. Veio substituir o anterior, Everaldo.

Ele é lindo.

Tem os ombros largos, os cabelos castanhos, levemente desgrenhados que lhe cobrem as orelhas e que não passam da altura de seu pescoço. Os olhos são grandes, de um castanho-claro arrebatador, hipnótico, pude constatar um pouco mais tarde. Algo disparou dentro de mim e também se iluminou ao vê-lo entrando na sala de aula pela primeira vez, vestido em mangas de camisa e com uma camisa com riscas e cores claras, ainda que discretamente colorida, ganhando um destaque ainda maior sobre a calça preta, de veludo com cintura alta; e, claro, infelizmente usando uma gravata, possivelmente por ordem da direção da escola. Mas ainda assim belo, instigante, bem, bem diferente dos outros professores caretas, monocromáticos com suas roupas formais. E jovem. Ele, C., não deve ter mais de 30 anos… Ok. Pode ser que tenha um pouco mais, porém, não mais que 35.

Não consegui mais tirar os olhos dessa criatura notável e não sei se foi impressão minha, mas em algum momento, acho, ele também me olhou de uma maneira diferente. Um olhar como se tivesse me reconhecido. Óbvio que nunca nos vimos na vida, mas tive a impressão de que nossas almas se reencontraram. Ok. Ele passou a me reparar depois que descobriu que gosto de anagramas assim como os pais dele… Mas é um sinal. Tenho certeza de que é um sinal.

Contando os dias para a próxima aula. Uma pena ser apenas uma vez na semana.

PS.: ele está me chamando. Não quero ir. Venha me salvar, professor.

24 de novembro, 2016, quinta-feira

Instituto de Ensino Pedro Gouveia

A saída do turno da manhã no Instituto de Ensino Pedro Gouveia segue sua rotina em meio à rotatividade de alguns pais com seus carros estacionando rapidamente em frente ao colégio, assim como alunos caminhando em rumos diferentes, em grupos ou sozinhos, e um bocado de vendedores ambulantes espalhados no entorno da porta da escola. Toda essa movimentação é observada por Ronaldo, que se mantém de pé e a certa distância, ao mesmo tempo que detém uma atenção quase irracional na portaria do Instituto, de modo a não deixar passar despercebida a saída do filho do desembargador. Precisava ver de perto, sim, ao vivo e a cores e não só através das fotos, das imagens disponíveis nas redes sociais, o garoto que vinha tomando cada vez mais espaço na vida de Márcio Antônio, como se já não bastasse o pai daquele fedelho atormentando a existência do seu amigo.

O destino realmente mistura as cartas e só nos resta jogar, Ronaldo reflete um tanto investigativo numa enérgica e amarga constatação. Será que se ele mesmo tivesse continuado a aceitar as investidas do desembargador depois… depois…

Ronaldo meneia a cabeça conforme gesticula no ar com uma das mãos, enfático, afastando as consequências perturbadoras de lembranças vergonhosas de sua mente.

JP… Por que cedeu ao desembargador? Por quê? E por que cedeu a todos os outros ainda que muita das vezes continue a carregar a impressão de que aqueles absurdos, aqueles esgotos pelos quais chafurdou não tivessem passado, não passem de um pesadelo, de um maldito pesadelo?

Gaby… Por que desrespeitou Gaby já próximo do fim da relação?

Mas o que importa e que está arrependido, como sempre esteve, pois ele não é gay, não é. Não! Não é um homossexual, um mulherzinha, um veadinho, um mariquinha. Não é! Bem diferente do amigo, Márcio Antônio, sempre buscando explorar todos os limites permitidos por seus prazeres, fantasias e desejos com outros homens. Em verdade com rapazes, os mais jovens. Sim. Sempre, sempre os mais jovens dotados de corpos perfeitos e exalando sexualidade por todos os poros. E isso em qualquer lugar, em bares, saunas, aplicativos de relacionamentos, banheiros públicos e até mesmo em ruas. Relações baseadas em dominador e dominado, Ronaldo delibera, por fim, enquanto termina de ajeitar os ombros buscando aprumar a postura, as costas ligeiramente curvadas.

“Sim, você me estimará para sempre. Represento para você todos os pecados que nunca teve coragem de cometer”.

Márcio Antônio… Márcio Antônio… Por que cedeu à influência do amigo durante todos esses anos? Por quê? Por que deixou que ele enxergasse suas vulnerabilidades, seus enganos, seus autoenganos e suas vergonhas?… Eu devia ter permanecido onde sempre estive, afinal de contas, Ronaldo lamenta, não se sente falta daquilo que não possuímos ou conhecemos.

Amigo… Nos últimos tempos a relação entre ele e Márcio Antônio começou a ficar estranha e ressentida, talvez. Não seria a primeira vez depois de todos esses anos, desde que se conheceram naquele albergue, que isso acontecia. Não. Mas agora um mal-estar, hesitante até, nos gestos, nos olhares de Márcio Antônio, algo de incerto, como se uma ameaça indefinida pairasse no ar e que só ele, o amigo, soubesse do que se tratava, estava causando uma ruptura cada vez maior entre os dois.

É possível que seja por causa do desembargador, Ronaldo pondera, arqueando uma das sobrancelhas sem deixar de mirar um instante sequer o portão de saída do colégio. Já considerou essa hipótese dezenas de vezes, ainda que Márcio Antônio sempre negue, rejeite a ideia de que esteja provocando uma separação, cavando uma fenda provavelmente irremediável entre a amizade de ambos.

Ronaldo respira dolorosamente e engole em seco. Será que se ele mesmo tivesse continuado a aceitar as investidas do desembargador, de JP, o amigo não teria entrado nessa história? Às vezes perguntas e respostas é a mesma coisa e você não percebe, remata, dando de ombros.

Até hoje não conseguiu entender o porquê de o desembargador ter decidido mantê-lo na sua equipe, lá, no Ministério Público, depois… depois… depois daquele mal-entendido. Será que ele, Ronaldo, foi o primeiro e único homem no Ministério a ser abordado daquela maneira tão incisiva? Por que justo ele, um cinquentão, um coroa comum e sem grandes atrativos, burocrático até? Por que não um jovem? Por que não rapazes, moços que ainda não traziam as marcas do tempo, as amarguras; muchachos que não lhe cobrariam nada, que não lhe questionariam?… Talvez JP não quisesse problemas ao ter de lidar com imaturidades emocionais, ou talvez, vai saber, realmente sinta atração por homens maduros…

“Tem certeza de que não se lembra do nosso primeiro contato?… Isso é bom. Ser cauteloso é ser confiável. Isso só me fez gostar mais de você”.

Ronaldo volta a ajeitar as costas, respirando devagar, aumentando a barriga e contando até cinco.

Quem sabe, ele, Ronaldo, realmente não tenha sido o primeiro e JP talvez tivesse sido transferido para aquele Tribunal, há um ano, depois de alguma “desavença”? Não. Não. Se fosse isso… Esse tipo de notícia se alastra como fogo até mesmo num Tribunal de Justiça. E JP não teria galgado seu caminho dentro do Ministério Público e chegado aonde chegou se tivesse se envolvido em algum tipo de escândalo, ainda mais dessa natureza.

E a família perfeita… Juliano parece ter a família perfeita, como faz questão de demonstrar nas várias fotos derramadas em sua rede social, sempre ao lado da mulher e filho, todos sorrindo em momentos adoráveis e divertidos, assim como todas as famílias perfeitas que pululam pela internet divulgando os diversos e maravilhosos instantes capturados por uma câmera, como se não houvesse nenhum dilema, nenhum desafio em suas vidas… Nenhum segredo.

Seja como for, mesmo depois de tudo, de ter renegado às investidas de JP, ele flagrou em algumas ocasiões os olhares ambíguos do superior em sua direção, detectou gestos, sorrisos, amabilidades do desembargador para com ele. Impressão? Talvez. Enfim, por muito menos já presenciara colegas serem transferidos ou até mesmo exonerados após se verem, tarde demais, engendrados em maquinações até então sutilmente traçadas. Precisa continuar o seu trabalho, mesmo acreditando ainda estar pisando em ovos; falta menos de um ano para sua aposentadoria.

Lucas, por fim, surge na porta do colégio de mãos dadas com uma garota. Os dois, após se afastarem da saída, se abraçam e se beijam num beijo longo, ousado, um beijo embriagado até mesmo para dois adolescentes, e em seguida se despedem, partindo para lados opostos. Ronaldo, então, começa a caminhar na direção do rapaz, observando-o com uma atenção ainda mais apurada conforme a distância entre ambos diminui. Lucas tem um corpo franzino, pernas esguias, torneadas, mas esguias demais, e os braços longos, Ronaldo não tem dificuldade em averiguar já que Lucas está vestindo uma camisa pólo bem justa ao corpo e uma bermuda que vai pouco abaixo do joelho.

— O que você viu nesse menino, Márcio Antônio? — Ronaldo se pergunta, em completo silêncio, enquanto Lucas atravessa o seu caminho — Esse moleque não é tão ingênuo como eu fui. Esse moleque sabe muito bem o que está fazendo e irá te fazer de bobo, com certeza, assim como o pai dele está te fazendo… — Ronaldo segue com suas considerações, já estacionado, olhando o garoto se afastar — Seja como for, dependendo do que acontecer, de que rumo essa história tomar, não vou deixar que ela se repita. Sim, essa história tem tudo pra se repetir. E eu não quero que você tenha o mesmo fim, Márcio Antônio, não quero.

10 de junho, 1976

Hoje faz um mês que o professor de geografia chegou à escola. Um mês que venho conseguindo encontrar forças para acordar, para olhar adiante… Não sei como venho conseguindo tirar boas notas durante esses últimos anos…

Desde que você, professor C., chegou, passei a sentar na primeira cadeira só para vê-lo bem de perto. Sentir seu cheiro. Observar e entender os seus gestos. Olhá-lo nos olhos. Respirar o mesmo ar que você respira. Será que você notou como me tornei interessado por demais nas suas matérias? Será que você notou que sempre que posso, procuro responder às suas perguntas, assim como faço questão de ser curioso com tudo que me é permitido ser em geografia? Será que notou que busco avidamente encontrar, em meio a tudo que diz, alguma informação, algum indício do que você possa ser fora da escola?

12 de fevereiro, 2017, madrugada de domingo

Márcio Antônio segue observando a mão direita tremendo, como se aquela reação, aquela resposta do seu corpo desde o acidente, fosse uma novidade, uma manifestação incompreendida. Contudo, por mais que se esforce, não consegue se lembrar de exatamente quando o tremor começou. Será que foi realmente depois daquele acidente?

O acidente… Depois daquele acidente…

Mas por que está evocando isso agora? Questiona-se enquanto volta a olhar para Lucas descansando, adormecido sobre o lençol emaranhado, com sua pele marmórea cobrindo a cama como um manto, ao mesmo tempo que meneia a cabeça tratando de expulsar a incansável sequência de inimagináveis torturas morais relacionadas ao amante e ao filho dele e que insistem em continuar esmagando a sua consciência, à medida que traz a mão trêmula mais uma vez sob o seu radar conforme se coloca de pé, com todo zelo, preocupado em não despertar o aluno, caminhando, ato contínuo, rumo à cozinha, alcançando a pia a passos rápidos.

Precisa tomar sua medicação, conclui com o olhar vagueando pelo pequeno apartamento, pelo mobiliário multifuncional feito de madeira compensada, servindo de divisória entre os cômodos, sala, cozinha e quarto, como se tivesse esquecido por um instante, um breve instante, o local em que estava. Fodam-se as doses de uísque, ele murmura logo em seguida num tom insurgente, recordando da garrafa e do copo, deixados sobre o sofá, ao passo que abre a gaveta de remédios num ímpeto.

A água…

Os comprimidos…

Um e dois e três goles.

Pronto; os comprimidos descem queimando, arranhando sua garganta.

Precisa se acalmar, precisa se acalmar, Márcio Antônio pondera, fechando os olhos, forte, mantendo-os assim por um bom tempo conforme sente a pressão atrás deles e uma pulsação no canto esquerdo do rosto até que, de chofre, sente-se tomado por uma necessidade, não, uma urgência, não, uma emergência em verificar o celular. Súbito, descerra os olhos, se afasta da pia e utilizando-se novamente de passos rápidos, atinge seu objetivo, mergulhando no sofá, relegando a garrafa e o copo, vazios, ao chão, tateando, ato contínuo, os cantos, as brechas do estofado em busca do aparelho, tendo a certeza de que o deixou ali antes de ir resgatar Lucas na portaria do prédio. Por fim, consegue encontrá-lo: no visor, quatro ligações perdidas de JP.

Não! Não!

As torturas, aquela sequência de inimagináveis torturas morais voltam a esmagar sua consciência, porém, agora, escoltadas por pensamentos mal formados e dinâmicos e também por uma sucessão de imagens incompreensíveis, ora estáticas, ora potentes; tudo se intercalando aleatoriamente.

Não! Não!

Márcio Antônio faz menção em se levantar, mas é tomado por uma inesperada vertigem, pela sensação de que tudo está rodando, ora indo para frente, ora para trás, acompanhada de um zumbido no ouvido, náusea, espasmos na laringe, um forte gosto metálico na boca… e de uma crescente irritabilidade. Ele então inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, tentando, em vão, manter uma respiração consciente e controlada.

O que negas te subordina… O que negas te subordina…

Márcio Antônio volta a cerrar os olhos. Forte. A capacidade de razoamento e um juízo da realidade não estão lhe escapando. Não. Ao contrário. Sente finalmente que tudo que havia ignorado, a sua dignidade, seu amor-próprio, sua persona, enfim, estavam voltando a ocupar um lugar ao sol. Tudo tomando forma, como num quebra-cabeça, revelando coisas impossíveis à sua frente.

Enquanto o consciente vacila, o inconsciente age. Enquanto o consciente vacila, o inconsciente age, ele pronuncia entredentes, como um mantra, apertando a superfície do sofá como se as pontas de seus dedos fossem garras. Sou uma pessoa. Não vou me permitir ser tratado, não mais, de forma insidiosa e cruel. Sou uma pessoa, não um mero fragmento personalizado por fobias, imperfeições, oscilações e arroubos, remata, resolutamente, abrindo os olhos e passando, de pronto, a esmurrar o sofá de forma violenta, socos surdos, ao tempo que enterra o telefone num dos cantos, ao tempo que busca num esforço hercúleo — por Lucas — amordaçar-se, reprimir o ímpeto de bradar, expulsar sua insatisfação, seu desespero em estar ali, em ter se permitido chegar até ali. Reprimir o ímpeto de protestar em alto e bom som o quão angustiante foi o mergulho sem fim naquele estado de torpor, naquele inferno que obscureceu a intimidade do seu próprio ser depois de assentir na aproximação do desembargador, de admitir que Ronaldo fizesse isso com ele.

O semblante de Márcio Antônio é tomado pela muda infelicidade, pela desventura que assola todos aqueles que são obrigados de uma hora para outra a confrontar as agonias da realidade que os rodeia.

Enquanto o consciente vacila, o inconsciente age. Enquanto o consciente vacila, o inconsciente age, ele volta a repetir e a repetir à medida que finalmente consegue se colocar de pé, para, então, começar a caminhar pelo pequeno apartamento, ao mesmo tempo que esquadrinha o piso inspirado nos bistrôs parisienses com tons e padrões marcantes. Se pudesse, parava de respirar, agora, neste exato momento, mas não pode. Não pode. Por Lucas. Não pode.

Lucas e o pai, o desembargador e o filho, eles se parecem…

Márcio Antônio sente o estômago girando, a respiração ficando curta e as palmas das mãos começando a suar.

Não. Eles não se parecem. Não. Os limites entre eles não se confundem, não se combinam. Pai e filho não é uma dicotomia e tão pouco um amálgama, como ele e Ronaldo são, Márcio Antônio constata um tanto amargurado, aflito, obstinado, os olhos ansiosos se erguendo do piso inspirado nos bistrôs parisienses.

Lucas?

A atenção de Márcio Antônio de repente se volta na direção do quarto, como se estivesse afastado daquele cômodo há tempos, milênios; como se tivesse esquecido o que viveu com Lucas há poucos instantes… Ele sente a cabeça extremamente pesada conforme experimenta um esgotamento flutuante, experimenta um gosto metálico ainda mais consistente em sua boca, uma reação tardia ao remédio para ressaca, ou será que ingeriu um antidepressivo? Ou foi um ansiolítico? Ou todos eles juntos? Isso pouco importa agora, conclui, sentindo espasmos na laringe.

Inspira e expira.

Por que, agora, tem a impressão de que lacunas parecem ocupar espaços em sua mente?

Inspira e expira.

Por um instante é tomado pelo pressentimento de que vai chegar ao quarto e encontrar a cama vazia, sem nenhum sinal de Lucas, de sua beleza admirável, demoníaca, selvagem. Por que inesperadamente parece ter de se esforçar de forma absurda para associar a imagem de Lucas a cupidez inebriante, extraordinária, ao pecado que ele, o professor, se permitiu sucumbir de corpo e também de alma? Ter de se esforçar para localizar as lembranças de quando passou a observar Lucas em sala de aula ao aceitar aquele joguinho ridículo envolvendo livros e gibis… Não, não… Envolvendo livros e mangás. Por que lhe parece que o seu aluno, o adolescente que decerto está lá, deitado em sua cama, é um mero fragmento de memória prestes a se dissipar, como se a existência dele, como se os momentos que passaram juntos, para o bem ou para mal, tivessem sido plantados em sua mente, pré-desenvolvidos, tal como essas inesperadas lacunas mentais?

Não.

Sou uma pessoa, não um mero fragmento personalizado por fobias, imperfeições, oscilações e arroubos, Márcio Antônio insiste, enquanto se recusa a trilhar a estrada diante de si, pois sabe muito bem onde o levará e daí inspira e expira mais uma vez e de novo, ao passo que, de súbito, não sente mais a mínima vontade de se mover. Mas irá. Precisa. Por Lucas. Lucas. Lucas…

“O sono diurno é como o pecado da carne: quanto mais se tem mais se quer, contudo, nos deixa infelizes e satisfeitos e insatisfeitos ao mesmo tempo”, Márcio Antônio relembra uma passagem de “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, conforme segue adiante rumo ao quarto — ainda que suas pernas pareçam pesar toneladas —, num desespero estranho e selvagem enquanto todas as incertezas relacionadas aos caminhos que o levaram até ali, todos os questionamentos de o porquê ter se permitido chegar naquela situação, vão se acomodando em definitivo em sua mente.

A capacidade de razoamento, o juízo da realidade, presentes prestes a serem desembrulhados, ao mesmo tempo que sua consciência também insiste continuar a plantar aquelas falhas, aquelas malditas falhas.

Necessita dar um basta em tudo isso. A mente reina, mas não governa. A mente reina, mas não governa, reproduz ininterruptamente até, por fim, alcançar a porta do quarto e encontrar Lucas de pé, ainda nu — assim como ele próprio —, em pele, em pelo, olhando para o visor do celular para, então, no segundo seguinte, erguer o rosto e encará-lo, sem pressa. No semblante do seu aluno, Márcio Antônio pode enxergar, sem grandes dificuldades, em face da curta distância que os separa, uma decepção atroz, um mundo inteiro permeado por toda a beleza e também por todo o sofrimento.

— O que houve?

Márcio Antônio questiona um tanto ofegante e sem conseguir disfarçar a aflição, entretanto, não obtém nenhuma resposta, nenhum gesto, nenhuma manifestação por parte do aluno, do filho… Não. Não. Lucas, o desembargador e ele próprio, meros atores arremessados sobre um palco encenando uma peça sem roteiro, sem direção.

— Lucas…

Márcio Antônio faz menção em dar um passo à frente, porém, desiste diante do recuo do adolescente, que acaba por baixar o celular logo em seguida, num gesto quase mecânico, sem deixar de encarar o professor um instante sequer com seu rosto trancado como um cofre.

— Lucas, isso que aconteceu… Eu, você…

Márcio Antônio tenta prosseguir, mas não consegue, pois os músculos de sua língua travam, em guerra, num conflito abismal entre razão e emoção e também porque sabe que não conseguirá, não poderá dizer tudo, toda a verdade que cerca aquela realidade.

— Há tão pouco tempo que você existe, mas agora, para mim, você… você…

Márcio Antônio desaba por inteiro sentado sobre a beirada da cama. Não quer perder Lucas… Sim… Agora não quer mais perdê-lo, ainda que tenha tentado manter o filho do seu amante distante, e de todas as maneiras possíveis e imagináveis, durante todo aquele percurso insano que lhe foi imposto. O seu aluno, seja ele quem for, não pode ser, não mais, uma ideia absurda nascida de um mecanismo de defesa, da porra de uma necessidade de compensação.

Às vezes, a mente reina e também governa. E em algumas ocasiões por um longo tempo.

Um silêncio pesado, repleto de vergonha e raiva incandescente, toma conta do pequeno quarto.

— Onde estão minhas roupas?

Lucas indaga, por fim, enquanto Márcio Antônio o observa um tanto exasperado. O aluno, o adolescente à sua frente que havia mostrado a ele, ali mesmo, naquela cama, e há tão pouco tempo, o poder e a beleza sublime da conexão profunda e sincera que se pode alcançar na troca de uma energia sexual sem que se sentisse esgotado, solitário, desequilibrado, agora, infelizmente, lhe enxerga como a um estranho na cólera da rigidez de seus ombros. E por um instante, breve — talvez? —, Márcio Antônio tem a impressão de que está entrevendo o jovem através de uma divisória de vidro, isolando e bloqueando qualquer possibilidade de contato que possam ter.

— Onde estão minhas roupas? — Lucas volta a perguntar e dessa vez com uma assustadora hostilidade.

12 de fevereiro, 2017, manhã de domingo

Márcio Antônio segue sentado no chão, abraçado aos joelhos, com a cabeça entre as pernas e com as costas apoiadas na porta fechada do apartamento. Está ali desde a partida de Lucas, já há algumas horas, quando tentara a todo custo, mesmo sem a mínima chance de sucesso, reter o aluno, ajudá-lo a entender e a compreender toda a situação que os cerca, embora com cautela, a devida cautela.

Não consegue chorar. Nenhuma lágrima. Nada. Parece estar vazio de sentimentos apesar de transbordar um desespero atroz ao imaginar a real possibilidade de perder Lucas para sempre, assim como aconteceu com todos os outros que vieram antes dele, com a diferença de que nutria por cada um daqueles jovens efebos e seus corpos perfeitos e sexualidade potencializada, tão somente a ternura de um pombo e a brutalidade de um lobo.

Márcio Antônio ergue a cabeça; o olhar, sem qualquer direção, alheio. Desorientação e debilidade valsam em sua mente de um canto ao outro ao lado de sentimentos de culpa e de tristeza, assim como também de raiva e de ódio e de mágoa e de repúdio — emoções lutando entre si para impor-se às demais; cada uma delas presentes e concretas em sua consciência.

— Ronaldo!

Márcio Antônio se coloca de pé num átimo tão logo termina de dizer o nome do amigo, entredentes, como se o invocasse. O senso de direção e discernimento sendo recuperados.

— Amargura, tristezas, esperanças, infelicidade, felicidade, frustrações; a depressão, os traumas, a solidão… — ele ergue as sobrancelhas — É tudo seu, Ronaldo, somente seu. A minha história com Lucas pode ser diferente. E você não irá me impedir.

Márcio Antônio conclui e em seguida começa a caminhar pela sala, um ir e vir numa fúria crescente, tudo e todas as coisas tomando forma cada vez mais, um quebra-cabeça, por sinal, quase finalizado, revelando as possibilidades que pode alcançar.

De repente, um som…

A merda de um som…

Um som que parece familiar, contudo, distante…

É o celular, Márcio Antônio finalmente consegue distinguir, mas se detém, atônito, ao reconhecer o toque do aparelho, que executa um trecho de uma canção setentista que por alguma razão, aparentemente inexplicável, sempre, sempre odiara, mas que é perfeita para anunciar quem está do outro lado. Ele então respira bem, bem fundo, a respiração ficando ofegante e quase descontrolada, mas daí, depois de recuperar um pouco do seu equilíbrio, segue, sim, segue sem pressa na direção do sofá, até por fim alcançar o telefone. Antes de atender, porém, observa o display demoradamente, na esperança de que a pessoa do outro lado desista; uma expectativa pueril, pois sabe que ela jamais desiste.

— Como você me encontrou? — Márcio Antônio indaga numa entonação um tanto falha tão logo atende a ligação.

— A mente reina, mas não governa. Ainda bem que você não se esqueceu — uma voz branda e macia de uma mulher responde de pronto — Mas pelo jeito, se esqueceu de quem é você nesta história.

— Como você me encontrou? — Márcio Antônio, inquieto, tenso, repete sua pergunta.

— Você realmente achou que ele ia te blindar pra sempre? — devolve a mulher, a voz agressiva, mais agressiva do que gostaria.

12 de fevereiro, 2017, manhã de domingo

Lucas começa a sentir sede ao mesmo tempo que dores trituram seus músculos e a região lombar “grita” desesperadamente por socorro, ao passo que segue com a mão parada no ar, hesitante em bater à porta do quarto da mãe. Ideias sombrias, medo, tensão, desespero e raiva dominam sua mente cada vez mais e ele não faz nenhum esforço para freá-las, organizá-las ou o que seja.

— Estou fazendo a coisa certa, sei que estou… — Lucas respira fundo; um nó no estômago e a culpa à flor da pele — E não é por mágoa… Ou talvez seja. Mas com certeza não é por vingança, não é.

Súbito, a porta do quarto se abre e o pai surge diante dele. Ambos se encaram um tanto surpresos e ato contínuo o desembargador lança um olhar de reprovação sobre o adolescente após medi-lo de cima a baixo. Lucas, mesmo intimidado, não se deixa alarmar enquanto recolhe a mão suspensa no ar.

— Está tudo bem? — o desembargador questiona enquanto fecha a porta atrás de si. Os olhos duros, implacáveis, ainda fixados no filho — Onde você passou a noite?

— Por aí — Lucas devolve, dando de ombros, se esforçando em parecer o mais despreocupado possível.

— É essa a resposta que vai me dar? — o desembargador inquire; o tom da voz sendo mantida sob controle — Você some, passa a noite fora de casa…

— Quero falar com a minha mãe — Lucas interrompe sem deixar de encarar o pai conforme tenta, sem sucesso, se aproximar da porta atrás dele.

— Sua mãe está descansando — o desembargador informa, dando um passo adiante, sustentando, implacável, o olhar do filho — Ela precisou tomar um calmante.

— E por que ela precisou tomar um calmante? E não diga que foi por minha causa, só porque passei a noite fora.

O desembargador nada responde enquanto Lucas sente um inesperado calafrio percorrer rapidamente todo o seu corpo. Uma espécie de medo, não, uma inquietação, a princípio sem fundamento, mas que com certeza não é uma reação à autoridade paterna, conclui absolutamente.

— Preciso falar com ela.

Ele balbucia. Ou talvez não. Talvez sua rogativa, suas palavras tenham ficado entre a garganta e a mente, entre a garganta e a língua; um nó reprimido, inevitável, sem fundamento. A fragilidade, independente de sua força, nos faz perder a habilidade de pensar e de nos expressar com clareza.

— Preciso falar com ela.

Lucas insiste, tendo a certeza, por fim, de ter ouvido a própria voz após sentir aquela inusitada sensação de inquietação fugir, escoar por seus pés. Contudo, desvia o olhar, sabe-se lá o porquê, ainda que por alguns instantes, buscando, num esforço hercúleo, aplacar a ira de confrontar o pai definitivamente para cuspir toda a verdade sobre ele. Entretanto, as peças desse jogo precisam, devem ser movidas com cautela, e por isso necessita falar primeiro com a mãe. Sim. Não pode colocar tudo a perder. Não pode dar munição a esse homem parado diante de si para que manipule, engane Abigail como sempre fez. Esse homem que retorna para casa, para a esposa e para o filho comportando-se como um leão, reinando absoluto na sua selva, exigindo respeito, defendendo “a moral e os bons costumes”, vomitando hipocrisia, e como se não bastasse, regurgitando homofobia depois de trepar com outro homem, depois de trepar com o seu… com o professor Márcio Antônio.

— Vamos conversar em outro lugar.

O desembargador determina à medida que faz menção em colocar a mão sobre o ombro do filho, que trata de se desvencilhar rapidamente.

— Eu só quero ver a minha mãe — Lucas balbucia. A voz vacilante. Seus olhos, agora ainda mais cabisbaixos, estão prontos para chorar, mas ele respira fundo, inspira, expira…

— Claro. Mas pode aguardar, não é mesmo?

Lucas ergue a cabeça, por fim, voltando a fitar o pai. O que não daria para invadir a consciência do desembargador, ele pondera conforme o nó no estômago, a raiva, a mágoa e a culpa à flor da pele se intensificam. Por quê? Por que o pai não decide logo pela separação? Por que continuar a viver nesse mundo de mentiras?

— Lucas? — o desembargador perscruta o rosto do rapaz como se soubesse o que está por detrás da sua fisionomia tensa e agoniada — Vamos conversar em outro lugar. Quero saber onde você passou a noite e porque não nos avisou… E esse hálito? Você andou bebendo?

O desembargador é surpreendido pelo filho, que se aproxima, deixando apenas que uma distância ínfima os separe.

— Eu já sei de tudo… — Lucas não consegue mais se conter. O celular volta a vibrar no bolso da bermuda, mas ele ignora.

— De tudo o quê? — o desembargador arqueia uma das sobrancelhas aparentando genuíno desconhecimento.

— Você e meu professor de geogra… — Lucas hesita por um instante, confuso, como se sua língua estivesse travada, em guerra, num conflito abismal; como se alguém, um terceiro estivesse tentando forçá-lo a dizer palavras que não são suas. Mas ele respira fundo, inspira, expira ignorando, ainda que com certa dificuldade, aquela sensação disparatada — Você e meu professor de filosofia — arremata, afinal, ante o semblante do pai que segue impassível, deixando-o ainda mais indignado.

— Do que você está falando garoto?

É claro. O pai vai mentir e negar, como sempre faz quando lhe convém, Lucas constata enquanto a raiva represada segue buscando atalhos para poder se libertar.

— Márcio Antônio! — ele devolve enérgico, sem deixar de avaliar o semblante do desembargador, que tão somente o confronta de volta, imperturbável.

A raiva finalmente alcança patamares insuportáveis, fazendo com que Lucas arranque o celular da bermuda vermelha no intuito de buscar as fotos, aquelas malditas fotos que recebeu pelo WhatsApp de um telefone desconhecido enquanto estava na cama de Márcio Antônio. Porém, ele hesita por um instante ao se deparar com uma mensagem na tela do aparelho também enviada pelo mesmo número desconhecido:

Não faça isso. É o que ele quer. Não faça.

Lucas meneia a cabeça, devagar. De repente, todos os pensamentos, percepções, ideias, desaparecem por alguns instantes, como aconteceu enquanto estava no chuveiro com Márcio Antônio, ao mesmo tempo que um sem número de vozes volta a passear pela sua mente, como aconteceu enquanto estava a caminho daquele viaduto. E elas, essas vozes, seguem como antes, em dissonância; algumas parecendo estar gritando, lutando para abafar as outras, que por sinal mantém um tom moderado, pacífico, contudo, audível. Mas o que elas estão falando ou tentando falar?, Lucas se questiona absurdamente confuso, quase sucumbido à perturbação, entretanto, decide eclipsar esta impressão, esta reação em detrimento à necessidade de tentar entender o que há por detrás dessa mensagem recém-recebida, tentar compreender o jogo que o dono daquele número desconhecido está jogando.

— Lucas?

A voz do pai invade seus ouvidos.

— Lucas. Vamos conversar em outro lugar. Quero saber onde você passou a noite e porque não nos avisou…

Se uma coisa não for dita no momento certo, ela desaparece. A verdade se afasta, escapa, Lucas murmura entredentes uma, duas, três vezes conforme segue observando o número desconhecido e a mensagem no visor do aparelho…

Márcio Antônio… É claro que é Márcio Antônio.

Lucas não titubeia diante dessa hipótese, dessa revelação tardia. É claro que o professor tem outro número. E é claro que foi com esse outro número que ele lhe enviou as fotos, as malditas fotos, já que Márcio Antônio não estava no quarto quando ele as recebeu. Mas por que o professor está fazendo isso?, se questiona enquanto fita com uma raiva renovada aquele número, enquanto se sente tomado por uma autoaversão, fruto do orgulho ferido e da indignação mortal pelo pai…

Você não deveria ser grato, Lucas?

Uma voz… Uma das vozes se sobressai.

O que está pretendendo fazer é, de fato, a solução para os problemas de seus pais?

Uma voz masculina, Lucas apura. Sim. Um homem — ou a projeção do som da voz de um homem — que está se esforçando para distorcer a própria voz, tornando-a mais aguda, mais delicada; tentando parecer feminina, desagradavelmente feminina.

Eles o adotaram, não é mesmo? E é assim que pretende retribuir?

Lucas balança a cabeça com força. Resquícios da porra do álcool que ingeriu para tomar coragem para ir até o apartamento dele… Aquele maldito apartamento… Resquícios da porra do álcool ainda estão no seu sangue…

Márcio Antônio não valeu nenhum dos meus esforços, ele repete e repete enquanto a voz, aquela voz se perde em meio às demais, enquanto volta a sentir as mãos do professor rendendo-se ante sua beleza, a beleza de um efebo proibido; as mãos, aquelas mãos acariciando seus cabelos, seus ombros, seu peito; caminhando, morosas, firmes, sobre suas pernas… As mesmas mãos que também caminharam sobre o corpo do seu pai…

Lucas sente que algo dentro de si, agora, quer que ele pondere. Uma força, intuição, não sabe bem ao certo, sugere a contemplação do que está acontecendo sem rejeitar a emoção da raiva, sem querer alterá-la, porém, em paralelo, outra força, agigantando-se, ordena para que siga seus instintos resultantes da frustração por ter sido enganado, por ter sido usado. E essa combustão, esse incêndio em sua alma se propaga de vez, feroz e indomável, fazendo com que inicie, retome, por fim, uma busca alucinada pelos arquivos de fotos no seu celular até encontrar todas, todas as fotos que recebeu pelo WhatsApp enquanto estava no apartamento de Márcio Antônio.

“O que houve?…”.

A imagem de Márcio Antônio parado à porta do quarto, nu, ofegante, sem conseguir disfarçar a aflição…

“Lucas, isso que aconteceu… Eu, você… Há tão pouco tempo que você existe, mas agora, para mim, você… você…”.

Lucas meneia a cabeça num gesto rápido, obstinado.

— É você não é?

Ele questiona o pai logo em seguida; a determinação exalando por cada poro de seu corpo, o olhar desafiador encurralando o desembargador conforme posiciona o visor do telefone a poucos centímetros do rosto dele, à medida que vai passando as imagens, uma a uma, o peito arfando de cólera, pesar e tristeza, uma tristeza abismal ao dar vida novamente àquelas fotos onde seu pai e Márcio Antônio estão em posições comprometedoras.

— É você não é? — Lucas repete. O timbre um pouco mais alto. A exasperação se tornando quase incontrolável — Por favor, por favor, não minta pra mim. É você. Você e ele, o meu professor de filosofia, nessas fotos. Não há como negar.

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