Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:

abuso parental / automedicação / confusão mental / homofobia internalizada / linguagem imprópria / relação interpessoal aluno e professor.

 

12 de fevereiro, 2017, manhã de domingo

— É você não é?

Lucas insiste ao mesmo tempo que aproxima ainda mais o celular do rosto do pai, que segue observando as fotos com o mesmo semblante imperturbável, como se um daqueles dois personagens desfilando diante de si — mergulhado numa intimidade extrema em prazeres carnais ávidos e insaciáveis com o seu parceiro — não fosse ele.

Lucas não sabe até quando conseguirá manter a piedade filial para com o desembargador, não sabe até quando conseguirá conter o que resta do seu equilíbrio emocional, se é que ainda lhe resta alguma coisa. A mudez e a postura impassíveis do pai impregnam sua essência desarvoradamente como a dor provocada por uma queimação, uma ferroada progredindo de intensidade a cada segundo. Se pudesse, largaria tudo e fugiria correndo, sôfrego, até encontrar um precipício para se atirar de corpo e alma, sem hesitação, sem desespero, pois, decerto, a aflição que tomou conta de todo o seu ser desde que recebera aquelas fotos, o caos que se instalou em seu espírito desde que tomara conhecimento do perverso jogo de Márcio Antônio, seriam muito maiores, acobertariam qualquer medo, qualquer incerteza diante do nada que o estaria aguardando no fundo do abismo.

Você sabia, não sabia? Sabia todo o tempo de quem eu sou filho, não é mesmo?

Aquela pergunta indutiva, sim, indutiva e acusatória, por que não a fez? Por que não a cuspiu na cara do professor? Lucas se questiona; a desorientação emocional, agora, beirando um inevitável descontrole, determinada a se espalhar novamente por todos os recantos do seu ser, mas ele não vai permitir, não pode, não por enquanto.

Inspira…

Mas estaria sendo justo com ele mesmo se tivesse feito aquela pergunta?

Expira…

Porque, em verdade, não estaria dando nenhuma chance de defesa a Marcio Antônio e qualquer resposta que o professor desse e que fosse diferente da que ele quisesse, estivesse obstinado a ouvir, seria descartada.

Inspira, mais uma vez, soltado o ar pelo nariz de forma lenta e profunda…

Se algo não for dito no momento certo, desaparece irreversivelmente.

Outra tentativa de respiração… lenta… controlada…

Lucas segue fitando o pai, a figura imperturbável diante de si, ao mesmo tempo que volta a experimentar a estranha sensação da presença de um terceiro, que dessa vez está tentando forçá-lo a cogitar pensamentos que não são seus.

Márcio Antônio… Márcio Antônio… E se realmente ele não soubesse de quem eu sou filho

Súbito, ele tem novamente a impressão de estar sem rumo, sem saber para aonde ir, porém, algo, alguém ou uma força estranha, não o terceiro, aquele estranho terceiro, parece pegar em sua mão e guiá-lo, trazê-lo de volta para o lugar onde está de fato, que é parado à frente do pai, como se aquele alguém, aquela força estranha o estivesse ajudando a se recuperar de uma momentânea desorientação espaço-temporal típica de um súbito despertar.

— Por que você não diz alguma coisa? — Lucas protesta, por fim, retomando sua determinação, como se os últimos minutos não tivessem existido, não tivessem interrompido o curso natural do próprio tempo, enquanto recolhe o telefone diante da face do pai, guardando-o de volta no bolso da bermuda; gestos, aliás, acompanhados com aguda atenção pelo desembargador.

— O quer que eu diga?

— A verdade.

— A verdade… — o desembargador reproduz pausadamente, como se quisesse ganhar tempo enquanto reúne as palavras necessárias e devidas para responder ao filho — Você ainda não me disse onde passou a noite. Não me respondeu se andou bebendo ou sabe-se lá o que mais andou fazendo… — o olhar analisando cada linha da fisionomia de Lucas, desafiando-o definitivamente àquela quebra de braço — Você, garoto, está me exigindo a verdade, entretanto, não consegue responder a essas duas perguntas básicas, que entendo eu, tenho todo o direito de fazê-las assim como você tem o dever respondê-las.

O pai está procurando se preservar, Lucas conclui orgulhoso; uma vitória arrogante, mas amarga. É óbvio que está buscando se preservar, preservar aquela situação, pois, certamente, Márcio Antônio ligou pra ele e o preparou, ainda que sem saber a arma que ele, Lucas, tinha em mãos quando deixou o seu apartamento.

É claro que o professor sabia de quem ele é filho.

— Vamos conversar em outro lugar, Lucas?

— Não. Ou você me responde agora, ou invado o quarto, nem que eu tenha de passar por cima de você, e mostro cada uma dessas fotos pra minha mãe.

— E por que você faria isso?

Lucas sente novamente os olhos prontos para chorar, mas se recusa a sucumbir à medida que a respiração começa, de novo, a ficar fora de controle, à medida que todos os pensamentos, percepções e ideias desaparecem por alguns instantes — e mais uma vez — até o ponto do retorno das vozes em sua mente, bradando em dissonância, lutando para abafar umas às outras.

O que elas estão dizendo? O que elas estão dizendo?, ele indaga, assim como fez há pouco, mas sem desprezá-las. Contudo, agora, seu questionamento, suas palavras, apesar de soarem como seus não são seus. Seus lábios, apesar de terem se movido, não foram os responsáveis por essa sentença.

Um terceiro… Um terceiro…

Não faça isso. É o que ele quer. Não faça…

A voz, essa voz…

Lucas demora um instante para conseguir identificar a voz que se sobressai em meio ao pandemônio novamente instaurado em sua cabeça. Não é a mesma voz, aquele timbre masculino de agora a pouco se esforçando para distorcer a entoação, tentando parecer feminino, desagradavelmente feminino. Não, não é.

É o que ele quer. Não faça…

A voz, essa voz, apesar de parecer bastante incrível, surreal, a voz, essa tal voz é a de Márcio Antônio. Mas Lucas não tem tempo de se certificar, ainda que compreenda o quão irracional esteja sendo ao se permitir ser guiado pela confusão de sua própria mente, pois a voz, a tal voz, essa voz, a suposta voz do professor volta a se fundir às demais, se tornando ininteligível, enquanto ele sente uma pressão absurda tomando conta de sua cabeça e de suas articulações, cerrando, então, os olhos de imediato, conforme se vê mergulhando, se rendendo por completo àquele mar de confusão mental enquanto um estranho cheiro de pele, pele humana, quente e úmida invade suas narinas. Enquanto tenta manter uma respiração consciente e controlada ao passo que sua mente vai sendo dominada por um sem-número de sensações, algumas delas desconhecidas por completo, como se pertencessem a outra pessoa, a um terceiro…

— E por que você faria isso?

A pergunta do desembargador alcança os ouvidos de Lucas, resgatando-o de pronto daquele cenário caleidoscópico, cenário que por sinal seu cérebro trata de esquecer, de anular num zeptosegundo.

— Por que eu faria isso? — Lucas indaga retórico, descerrando os olhos e meneando a cabeça sem pressa como se afastasse irrefletidamente algo do seu campo de visão, como se tivesse acabado de despertar de uma longa noite de sono rastreada por neblinas de um sonho dissolvido, ao mesmo tempo que desliza a mão sobre o bolso da bermuda onde o celular está guardado — Porque minha mãe merece a verdade. Porque a mulher que está aí dentro… — ele aponta a porta do quarto com o queixo — Merece saber a verdade. Saber que o homem…

O desembargador imobiliza um dos braços de Lucas vigorosamente, impelindo o filho a seguir adiante, rumo ao quarto de hóspedes. O adolescente, pego de surpresa, tenta resistir, se desvencilhar conforme busca o equilíbrio enquanto é forçado a caminhar de ré, mas não obtém sucesso, deixando escapar, por fim, um gemido, à medida que continua pelo corredor até ser empurrado para dentro do cômodo, não demorando a cair esparramado sobre a cama.

— Como conseguiu essas fotos? — o desembargador, ofegante, terminando de fechar a porta atrás de si, pergunta sem disfarçar a tensão na voz.

10 de fevereiro, 2017, sexta-feira

Caminhando em direção ao estacionamento, dentro do prédio do Ministério Público, JP se convence mais e mais de que necessita urgentemente beber alguma coisa, relaxar, esfriar a cabeça. Outra semana estressante havia chegado ao fim, carregada de deliberações sobre as arbitrariedades de juízes de primeira instância que precisavam ser revistas, análises para concessões de habeas corpus, julgamentos de crimes de funcionários de Ministérios, metas processuais precisando ser alcançadas e superadas a qualquer preço… Deliberações, deliberações e mais deliberações.

Juliano às vezes se questiona se tomou a decisão certa ao se tornar bacharel em Direito, ao prestar concurso para juiz tão somente para atender as expectativas de seus pais e de todos os outros. Sim. Questiona-se com uma ferocidade atroz, potencializada com o passar dos anos, na mesma intensidade dos seus pares, daqueles que não conseguem digerir a culpa decorrente das próprias renúncias.

Ele dá de ombros. Tem cinquenta e cinco anos e uma completa consciência de que é tarde demais para mudar seja lá o que tivesse de ser mudado em sua vida. E como sempre, ao ver-se dentro desse círculo vicioso de autopunição, acaba agindo como um rabugento, atravessando aquele velho e conhecido terreno semeado pela autocomiseração, que no final das contas não o levará a lugar nenhum. A agonia não dura para sempre, e como todos os outros sentimentos, vem e vai, tal e qual as estações do ano. Contudo, reconhece que nos últimos tempos sua impaciência e insatisfação vêm progredindo, ainda que aparentemente um tanto morosa, sorrateira até, chegando a se convencer de que talvez esteja à beira de um ataque de nervos. E conhecer Ronaldo só contribuiu ainda mais para isso.

JP deixa escapar um suspiro longo enquanto sua mente é tomada pela lembrança do instante em que esbarrou com Ronaldo, pela primeira vez, no saguão daquele tribunal de segunda instância, há pouco mais de um ano, quando chegava para assumir o seu magistrado. Recorda-se do exato instante em que foi abordado por ele, que sorria um riso amigável, confortador, convidativo, lhe perguntando se podia ajudar, pois tivera a impressão de tê-lo visto um tanto desorientado; ambos nem sequer desconfiando que dali a instante pudessem estar atuando no mesmo gabinete — Ronaldo fazendo parte de sua equipe — e que mais à frente se tornariam amantes.

Ronaldo… Ronaldo era e é diferente de todos os outros, JP cimenta sua constatação à medida que diminui a celeridade dos passos. Sim. Diferente de todos os outros, afinal, jamais imaginou que poderia se envolver com outro homem da maneira como vinha se envolvendo com Ronaldo já há dez meses, ainda que continuasse a ter de lidar com a resistência do amante, uma resistência, que no início da relação, quando ainda estavam se conhecendo, JP compreendia, mas que agora lhe parecia irracional, completamente irracional.

Não foi fácil escalar todos os muros que Ronaldo havia construído em volta de si. E ainda não é. E por mais incrível que pudesse parecer, era ele, JP, quem estava — e sempre estará — em desvantagem, pisando em um terreno extremamente frágil ao lutar pelo futuro amante. Além da carreira sólida que construíra dentro do Ministério Público, estava colocando em risco o casamento com Abigail, mesmo que um casamento infeliz recheado de traições rápidas e passageiras da parte dele com outros homens, afinal de contas, não havia sido fácil encontrar o centro do equilíbrio quando se viu enredado naquela paixão avassaladora por Ronaldo.

 “O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança”, quantas e quantas vezes ele havia proferido aquela frase de Gabriel Garcia Marquez, de Memórias de minhas putas tristes, depois de deixar para trás mais uma de suas aventuras — ou brotheragem, como atualmente é chamado um dos mecanismos que os supostos heterossexuais, que como ele, sustentam a fim de continuarem a pertencer a uma normalidade social — com mais um de seus pares e retornar para casa lamentando as escolhas que fizera; a vida dupla que levava em contraponto ao casamento afortunado que mantinha na superfície.

Mas um dia aconteceu, enfim. A despeito de suas reticências, Ronaldo baixou a guarda, contudo, não espontaneamente. Não. Ronaldo estava cansado, extremamente cansado de lutar contra tudo aquilo que vinha negando durante toda a vida. E quando foram pra cama, ele, Ronaldo, ainda acorrentado aos últimos elos de sua resistência, acabou por se entregar de uma maneira absurdamente intensa, por inteiro, todo o seu ser disposto e disponível, exalando e praticando prazer, bondade, desejo de tocar e ser tocado, de amar e ser amado por outro homem sem as amarras, sem as autocríticas, sem o receio e o remorso de ser quem era… Assim como ele, Juliano!

A diferença entre os dois é que Ronaldo, mesmo lutando com todos os seus demônios pessoais todos os dias, se dispôs a ter mais coragem e não manteve um casamento por conveniência — o que poderia ter feito mesmo depois da morte da esposa. Não buscou seguir usando uma mulher como instrumento de autoafirmação social.

JP avista a entrada do estacionamento, por fim, e hesita um pouco antes de seguir adiante, como se quisesse parar, respirar e colocar em ordem todas aquelas súbitas e porque não incômodas reflexões. Entretanto, continua com passos incertos enquanto decide permanecer mergulhado, orbitando em torno da imagem do amante e o quão longe chegara, ou o quão distante estava se permitido ir guiado por seus próprios sentimentos, onde aprendeu, ou precisou aprender a suportar naqueles dez meses as mudanças de humores do seu amante, assim como as alterações radicais de comportamento, do modo de agir, da percepção, e até mesmo, não obstante, raríssimas vezes, do timbre da voz de Ronaldo.

Na cama, o sexo se tornara completamente diferente depois do terceiro, quarto encontro que tiveram. A volúpia, os limites atravessados, os gemidos, nada das contenções, nada das poucas amarras que ainda existiam e muita das vezes nada de sofisticação, do extremo carinho inicial: tão somente a pura hidráulica do sexo. Tal como também percebeu mudanças em algumas ocasiões quando o amante se propunha a conversar sobre o relacionamento que mantinham, como se estivesse discutindo a relação de um terceiro, deixando Juliano profundamente irritado. E toda aquela alternância parecia acontecer como se um interruptor fosse ligado e desligado dentro de Ronaldo.

Não à toa, ele, JP, se afastara. Sim. Há duas, três semanas não dava mais notícias. Não ligava. E antes disso o gelo, as desculpas, as milhares de desculpas esfarrapadas para não se encontrarem. Tinha que refrear tudo aquilo. Se retirar de cena. Se afastar física e emocionalmente, por mais difícil que pudesse parecer e estava sendo. Precisava reavaliar seus sentimentos, seus comportamentos… ou ao menos tentar.

Será que o amor absoluto não significa que devemos amar o outro com tudo que há nele e sobre ele, inclusive as suas sombras?”, JP pondera, citando Milan Kundera em A valsa dos adeuses, ao tempo que sente por um instante a cabeça latejar como se um milhão de pregos estivesse sendo martelado incessantemente dentro dela.

Juliano alinha os ombros, respira fundo e caminha, agora, a passos largos em direção ao seu carro. Em definitivo necessita urgentemente beber alguma coisa, relaxar, esfriar a cabeça. Algum bar? Não. Decerto não está com paciência para interagir socialmente, ensaiar sorrisos, cumprimentar conhecidos. Confere o relógio no pulso, 21h, e em seguida apanha o celular no bolso do terno e liga para o filho, que demora um pouco a atender.

— Oi?

— Jonas, por favor, avise sua mãe que estou indo tomar um drinque com alguns amigos…

— Ela está no quarto e com o celular a tiracolo — o adolescente interrompe sem titubear — Por que você mesmo não liga e avisa?

— Jonas… — JP hesita antes de continuar — Agora não. Eu não estou com cabeça pra isso. Por favor, dê o recado à sua mãe.

— Por que vocês dois não resolvem logo essa confusão? Eu tô cansado de ficar servindo de ponte. Eu só quero ver como vai ficar o climão nessa tal chácara que tu decidiu alugar pro carnaval… Na boa, eu não vou pra lá pra ficar servindo de intermediador, ok?

JP afasta o celular e olha para o display do aparelho fixamente enquanto engole em seco ao tempo que deixa o corpo descansar ao lado do carro, tão logo o alcança. Precisa reconhecer que o filho tem razão. Jonas não deve fazer parte disso, da crise conjugal que atingiu a ele e a Abigail, tornando a convivência cada vez mais desconfortável entre ambos e os transformando em duas pessoas completamente estranhas. Aquela decerto não era a primeira crise pela qual ele e a esposa passavam, mas estava durando além de todas as outras.

— Somos uma família, Jonas — JP retruca, por fim, depois de retornar o telefone ao ouvido ao mesmo tempo que massageia as têmporas, meneando a cabeça, fazendo o possível para manter-se equilibrado sobre a tênue linha que separa a resignação do descontentamento — Temos que nos apoiar… Eu e sua mãe estamos com problemas? Sim. E você já é bem grandinho pra entender que não vivemos num conto de fadas e que tampouco as coisas se resolvem com um pouco de pó de pirlimpimpim…

Juliano decide que não vai deixar a noite escapar por entre os dedos, apesar de tudo.

— Cara, na boa…

— “Cara”? Eu ouvi direito? — JP questiona abandonando a indulgência e a compreensão num pestanejar — Acredito que estejamos fora de sintonia.

— Foi uma maneira de falar, pelo amor de Deus…

— Espero que sua mãe receba o recado, Jonas — JP dispara num tom glacial, finalizando a ligação.

Ainda com o corpo apoiado sobre o carro, ele respira fundo, balançando a cabeça mais uma vez e bem, bem devagar, conforme devolve o telefone ao bolso do terno. Pensamentos sem nexo transitam por sua mente sem que consiga fisgar nenhum deles para talhar em palavras, em sussurros, que seja.

— Foda-se!

Juliano retira o celular do bolso do terno e disca com uma avidez tamanha o número de Ronaldo, desistindo após quatro tentativas sem sucesso.

— É… — ele reflete sem tirar os olhos de sobre o aparelho — Talvez não tenha sido uma boa estratégia ignorá-lo.

Num gesto rápido, devolve o celular ao bolso e antes mesmo que possa se virar para abrir a porta do carro, sente o telefone vibrar.

12 de fevereiro, 2017, manhã de domingo

— Como conseguiu essas fotos, você vai me dizer ou não? — o desembargador cobra novamente uma resposta de Lucas, se aproximando a passos largos da cama no quarto de hóspedes.

— E o que isso importa?

— Isso é uma montagem! — o desembargador afirma entredentes.

— Você sabe que não é uma montagem — Lucas, a respiração curta e acelerada, apoia os cotovelos sobre o colchão, impulsionando o corpo até conseguir se sentar — É você. Você e o meu professor. Você e seu amante…

Ele mal tem tempo de se preparar antes da mão do pai descer em direção ao seu rosto.

— Nós, eu e sua mãe, lhe demos tudo. Nunca se esqueça disso — o desembargador adverte num timbre monocórdio ao passo que vai recuperando o ritmo da própria respiração — Apenas se lembre de que você nos deve e muito.

— Ser grato a você por te me adotado, por ter me dado um lar não significa ser cúmplice da sua hipocrisia, da sua deslealdade — Lucas retruca enquanto corre a mão no lado da face atingida.

— Não seja arrogante, garoto. Você não sabe nada sobre a vida…

— Por que não se separam? Há meses você tem dormido aqui neste quarto.

Um instante de um silêncio abrupto, repleto de vergonha e raiva, empapa a atmosfera que abraça pai e filho numa trégua inadiável que teima em sustentar uma civilidade incômoda, apreensiva e frágil.

— Que roupas são essas? — o desembargador interpela de supetão, medindo Lucas de cima a baixo.

— São dele. Do seu amante — o adolescente não titubeia em responder.

Imediatamente Lucas sente a mente ser invadida por uma ideia bizarra, a ideia de que Márcio Antônio deveria estar ali, salvando-o do desembargador. Um pensamento, um desejo involuntário e descabido, decerto. Porém, quanto mais se esforça para afastar essa inusitada quimera, mais ela se fortalece: ele imagina o professor esmurrando a porta da sala; devaneia a respeito do desespero de Márcio Antônio enquanto busca pelo amado aluno até resgatá-lo, não sem antes confrontar o desembargador…

Os beijos, os beijos repulsivos… As mãos dele acariciando os cabelos, os ombros, o peito…

O que está acontecendo comigo?, Lucas se questiona enquanto tenta lidar com a aflição mental — dessa vez consciente — que volta a cruzar o seu cérebro numa velocidade vertiginosa.

— Eu… Eu… Eu preciso contar pra ela. Eu preciso contar pra ela — um tanto desnorteado, ele faz menção em se colocar de pé, mas sente a mão pesada do pai ao encontro ao seu peito, forçando-o a permanecer sentado sobre a cama.

— Por que você está com as roupas dele?

Absorto, tendo de lidar também agora com uma súbita dor torácica e palpitações, Lucas não percebe o assombro estampado no rosto do pai, o ar extremamente infeliz cingindo cada uma das palavras do desembargador.

— Eu passei… Eu passei… — os músculos da língua de Lucas voltam a travar, em guerra. Um conflito que faz parecer que a língua está maior que a boca enquanto o suor irrompe por todos os seus poros — Eu preciso contar pra ela, eu preciso…

— Por que você está com as roupas dele?

Finalmente Lucas ergue os olhos para encarar o pai, encontrando raiva e aflição demarcando cada linha do semblante dele. Aturdido, compreende, por fim, o que está acontecendo, ao mesmo tempo que um sentimento de comiseração direcionado ao homem parado à sua frente lhe invade, tomando sua essência por completo. Contudo, algo, uma força invisível, aquela mesma sensação de que outra pessoa, de que um terceiro o está impulsionando, o faz suplantar esse instante de fraqueza imperdoável.

O que está acontecendo comigo?, Lucas se questiona mais uma vez, o olhar correndo de um lado ao outro, até que as palavras transbordam de sua boca como uma barragem rompida.

— Eu passei a noite com ele. Eu passei a noite com o seu amante. Eu passei a noite com ele.

Lucas, mal terminando de despejar sua confissão, se levanta de um salto, desvencilhando-se sem grandes esforços da figura agora estática do pai. Ele corre em direção à porta do quarto arrastando atrás de si angústia, fúria e medo, determinado mais do que nunca a revelar à Abigail a miséria que está pesando por sobre seus ombros, custe o que custar.

— Ela está doente.

Lucas não consegue seguir adiante, pois é impedido pelo desembargador, que o agarra por um dos braços.

— A sua mãe está doente. O resultado da biópsia acusou que o tumor que descobrimos há pouco mais de um mês, é maligno.

01 de julho, 1976

Há vinte e um dias que não escrevo. Três semanas. A maior lacuna desde que eu comecei a dar vida a esse diário. Mas vou manter minha determinação em usá-lo tão somente como um escape. Nada mais que isso.

A minha relação com o professor C., ou melhor, a minha paixão platônica por ele segue adiante. Já perdi a conta do tanto que já sonhei e ainda venho sonhando em me declarar e obviamente ser correspondido. Seria demais. Porém, está ficando difícil. Sim. Bem, bem difícil administrar minha ansiedade, atravessando os noventa minutas de aula me segurando para não ter um rompante, pra não ficar pra lá de Marrakech. Isso sem falar o quão frustrado eu fico depois da aula.

Descobri que ele gosta de livros e gibis. Ao menos sempre para diante da minha carteira e os folheia entre uma explicação, entre uma tarefa e outra. Principalmente os gibis. Claro que passei a esquecê-los “sem querer” sobre a carteira até “me lembrar” de guardá-los de volta à pasta. E nada mais acontece, além disso. Nada.

Um idiota. Eu sou um idiota. O que eu preciso fazer pra me convencer que o professor C., um homem adulto, bonito, com um corpo aparentemente perfeito e que com certeza pode ter todas as pessoas que quiser no mundo, e possivelmente deve ter alguém na vida dele, vai olhar pra mim, um dos seus alunos, um reles moleque de catorze anos?

Novembro, 1976

Ronaldo se dirigiu ao banheiro a passos largos tão logo o diretor dispensou a turma após a notícia da morte do professor de geografia, como se ele, o diretor, não quisesse lidar diretamente com o assombro, com o estado de choque, com a incredulidade dos alunos diante daquela trágica notícia. O que de certa maneira para Ronaldo foi mais que providencial. Não saberia quanto tempo poderia ainda conter a iminente explosão daqueles sentimentos terríveis, opressores, da angústia, do desespero e do vazio que se alastravam mais e mais em suas células, tecidos, órgãos, sistemas, em seu organismo caso fosse obrigado a aguardar dentro da sala de aula a chegada ao colégio de sua mãe ou, sabia-se lá, de seu pai.

Durante o trajeto para o banheiro não ousou correr, pois se tentasse, com certeza, desabaria violentamente no chão, desmoronando física e emocionalmente antes de atingir seu objetivo, ainda que talvez não chegasse a chamar tanta atenção com sua reação, afinal, Camiro era bem-amado por todos os alunos.

Mal conseguira trancar a porta do reservado atrás de si, Ronaldo despencou sobre o vaso sanitário, cobrindo, de pronto, o rosto com as mãos conforme buscava conter a respiração completamente descompassada enquanto um turbilhão de imagens envolvendo o professor de geografia seguia desenfreado em sua mente. Cada uma delas, cada uma daquelas cenas, daquelas lembranças circulava independente, mas também interligadas entre si sem que Ronaldo sequer conseguisse fisgá-las, uma que fosse, para que pudesse, de fato, consolá-lo.

O que havia acontecido? Como Camiro havia morrido? Não. Não. O professor não estava morto. Tudo aquilo era um pesadelo, Ronaldo repetiu entredentes uma, duas, três vezes ao passo que balançava a cabeça em negação. Ele acordaria, sim, logo, logo acordaria perdido, confuso, mas aliviado e com toda certeza iria encontrar um tempo entre as aulas para pedir desculpas, pedir perdão ao professor por ter ido atrás dele na noite anterior; por ter lhe provocado; por ter lhe sufocado… Por ter projetado sobre ele o seu desespero em transformá-lo covardemente num super-herói para salvá-lo.

Lágrimas… Lágrimas… Ronaldo não conseguia chorar. Estava arrasado, sim, consumido, sim, por uma tristeza absurda, um pesar profundo. Sua alma estava dilacerada à medida que sentia toda aquela carga sem saber se algum dia iria conseguir unir todas as suas partes. Porém, talvez fosse melhor assim, concluiu, descobrindo a face, ainda tentando manter a respiração até então fora de controle. Sim. Talvez fosse melhor não derramar uma lágrima que fosse, ao menos não ali, naquele momento, na iminência da chegada dos pais. Não saberia como iria reagir ao se deparar com Norma, ou pior, com Antoniel. Um dos dois, ou ambos perceberiam a sua aflição e isso poderia lhe trazer problemas.

“Não temos nada em comum, garoto, a não ser o colégio onde você estuda e onde eu leciono”.

A voz enfática do professor de geografia repreendendo-o voltou a repercutir pesada, densa, gritando dentro de si, rasgando todas as fibras, todos os alicerces do seu âmago. Não sabia, não tinha mais a certeza se realmente tudo o que havia sentido por Camiro fora amor, paixão…

De repente, batidas na porta do reservado. Ronaldo respirou fundo, tão fundo que teve a impressão de que o peito havia se partido em dois até se colocar de pé, sentindo as pernas ainda um tanto trêmulas enquanto alheava o pequeno trinco de metal.

— Sua mãe está te aguardando na secretaria — Ronaldo ouviu da coordenadora do turno da manhã. Ela estava parada, quase uma estátua, encarando-o com um olhar transbordando comiseração, um semblante melancólico e com os ombros caídos. Bem, bem diferentes da postura sempre ereta que mantinha e do aspecto rígido que carregava por todos os lugares daquela escola — Mas antes de ir encontrá-la, acho melhor lavar esse rosto, Ronaldo. Parece que você chorou uma vida inteira dentro deste banheiro.

Maio, 1976

Antoniel, ao sair do banheiro apenas com uma toalha enrolada na sua larga cintura, olhou para Norma, deitada sobre o recamier, aos pés da cama, fitando fixamente o teto, absorta, como sempre ficava depois de testemunhar o que ele fazia com Ronaldo. Aquele estado, algo como uma pseudocatatonia, durava não mais que meia-hora e não foram poucas as vezes que Antoniel já havia tentando conversar para entender aquela reação, aquela mudança de humor, de personalidade. Algo completamente adverso à postura eufórica, incentivadora, fascinada até, que Norma mantinha enquanto assistia o que acontecia sobre a cama diante de si.

Depois de um longo e profundo suspiro, à medida que seguia observando a esposa ainda aparentemente alheia a tudo à volta dela, Antoniel decidiu perguntar, mesmo sabendo que não obteria um resultado diferente, o que estava acontecendo, se ela estava bem. Um silêncio ensurdecedor, claro, foi o que recebeu como resposta.

— Que seja!

Antoniel sentenciou sem resquícios de remorso, num murmúrio quase indistinto, dando de ombros, reconhecendo que há muito desistira de tentar descobrir o que — ainda — se passava na cabeça de Norma. Fizera de tudo para ajudá-la. Fora leal, compreensivo, uma verdadeira rocha enquanto ela esteve mergulhada na tristeza, no desespero, na falta de esperança desde a partida de Laura…

— Que seja!

Disse com mais determinação, seguindo para fora dali, carregando sua corpulência imponente, mas não sem antes avistar com inegável satisfação a cueca vermelha e a gravata emboladas no chão. Caminhou, então, pelo curto corredor em direção ao quarto do filho, parando, ainda que por um instante, um breve instante, em frente ao quarto de Laura, examinando sem nenhum pesar a porta fechada diante de si até começar a menear a cabeça, agastado, para daí retomar, sem delongas, o curto trajeto ao encontro de Ronaldo.

Até quando aquilo iria continuar?, Antoniel inquiriu a si próprio, entredentes. Até onde chegaria? Até onde continuaria a ceder aos caprichos da esposa? Por que Norma insistia em manter Laura naquela casa?, seguiu remoendo, emocionalmente vazio, oco, ate se deparar com a porta aberta do quarto do filho.

Ronaldo, encolhido e nu, estava dormindo, ou adormecido, Antoniel não teve dúvidas, parado onde estava sob o batente. O garoto estava crescendo e como previsto por ele e por Norma, a inconstância típica da adolescência já havia começado a se manifestar. Pela segunda vez o filho demonstrara resistência à submissão que lhe era imposta, ainda que uma resistência um tanto comedida, entretanto, não podiam ignorar que era um sinal alarmante do que estaria por vir dali a um, dois anos. Ou talvez não. Mas por agora estavam conseguindo administrar muito bem a situação com as doses esporádicas e diminutas de ansiolíticos que Norma vinha ministrando, porém, deviam tomar cuidado. Sim. Sim. Já haviam sido chamados à escola por causa do déficit de atenção de Ronaldo, ainda que esporádico, e também pelas duas ocasiões diferentes em que ele fora surpreendido dormindo em sala de aula.

Antoniel avançou quarto adentro, parando a dois passos da cama do filho, de onde passou a observá-lo por um longo, longo tempo, admirando cada parte do corpo dele, observando, num perverso deleite, as marcas do cinto deixadas em lugares estratégicos para não serem vistas quando Ronaldo estivesse vestido, ao mesmo tempo que dilatava as narinas para poder sentir o cheiro dele. Era uma pena, realmente era uma pena Ronaldo estar crescendo, lamentou, em completo silêncio, um olhar ameaçador e impiedoso.

— Ele é muito, muito branquinho…

Antoniel se voltou no instante seguinte ao ouvir a voz de Norma, encontrando-a de pé sob o batente da porta, braços cruzados; no rosto, uma mescla de apatia e desagravo.

— Se tivesse nascido menina…

Norma engoliu em seco sem tirar o olhar obstinado de sobre o corpo adormecido do filho, mal percebendo, de início, a aproximação do marido, mas afastando-se dele tão logo o curto espaço entre ambos se estabeleceu.

— Norma… — Antoniel respirou fundo e calou-se antes de prosseguir.

— A vida é um labirinto, não é mesmo? — Norma encarou o marido com os olhos brilhantes e os lábios trêmulos — Alguns ficam vagando, vagando, buscando uma saída. Mas só existe um caminho. E ele o leva para o fundo. E você só entende quando chega ao centro — ela deu mais um passo para trás, sem deixar de fitar Antoniel, mas dessa vez com um olhar intenso e perscrutador — Resta saber se você, se eu, se nós queremos permanecer nele ou não.

06 de maio, 1976

Não sei se estou fazendo a coisa certa ao escrever nesse que talvez venha a ser o meu diário. Nem sei se realmente quero ter um diário, mas algo dentro de mim precisa disso; precisa de um escape, porque senão vou enlouquecer. Não tenho com quem falar, com quem desabafar. A única pessoa que pensei que poderia me ajudar, o sacerdote L., simplesmente me julgou e me culpou e me chamou de mentiroso…

Um idiota. É claro que eu fui um grandessíssimo idiota ao confessar para um padre o que venho passando dentro desse inferno que é essa casa. Mas ele é um padre. E eu pensei que por ser tão jovem, ao menos a aparência dele é bem mais jovem que a dos outros dois padres que o antecederam, iria me ouvir, me escutar sem barreiras, sem sermões…

As cintadas que meu pai me deu anteontem estão ardendo. Ainda.

Desde que Laura foi embora, eles, ele e ela, atravessaram limites que jamais imaginei que poderiam atravessar… Deus, por que razão o Senhor permitiu que isso acontecesse com a Laura? Por que razão vem permitindo que isso aconteça comigo?

19 de fevereiro, 2017, domingo

Lucas acorda ofegante e ato contínuo se senta na cama, demorando alguns instantes para recobrar a consciência, recuperar-se da momentânea desorientação espaço-temporal típica de um súbito despertar. O entorno, cada canto do seu quarto, permanece o mesmo, ele conclui, num misto de obviedade e absurda surpresa conforme inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, buscando manter uma respiração consciente e controlada. A televisão está ligada e as imagens que se movimentam dentro dela estão sem som, ele não demora a perceber sem conseguir distinguir exatamente o que está passando à sua frente.

Sem pressa e reunindo forças num empreendimento hercúleo, se levanta, praticamente se arrastando até se posicionar sentado à beira da cama sem nenhuma coragem ou mínima disposição para sair de onde está, enquanto luta bravamente, ou covardemente, para não sucumbir ao impulso de se deixar cair sobre o colchão, sobre o seu travesseiro, de se deixar enveredar — de novo? — num sono profundo, ainda que seguido por intermitentes sonhos intensos e assustadores, alguns deles lhe parecendo bastante reais onde sempre se vê em uma espécie de labirinto, ora com caminhos únicos, ora se estendendo em múltiplas direções, porém, em todos esses sonhos, pesadelos, ele foge correndo desesperado de um homem sem rosto que o persegue a passos módicos e ainda assim sempre consegue quase alcançá-lo. E Márcio Antônio também habita esses sonhos, esses pesadelos, sempre à sua procura, berrando angustiado e aflito por seu nome, mas nunca, nunca ele e o professor se encontram.

Lucas sente os ombros pesados, extremamente pesados, tal como se sente cansado e porque não deprimido até. A sensação de fadiga que o vem acompanhando já há uma semana, desde que o caos tomou conta de sua vida, não o abandonou, mas que merda. Ainda bem que está de férias, pois a falta de energia para realizar suas atividades corriqueiras, as ocasionais dores de cabeça, a imensa necessidade de se manter deitado sempre seguidas de uma vontade absurda de dormir, dormir e dormir, decerto prejudicariam sua performance no colégio. E é seu último ano do ensino médio, nada pode dar errado. Nada!… nem mesmo ele, a existência do bem e do mal personificada em Márcio Antônio digladiando em seu coração.

No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;

Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada;

Os covardes o fazem com um beijo,

Enquanto o bravo o faz com a espada!

 Lucas move a cabeça, vagaroso, ao mesmo tempo que começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar… Essas palavras… Essa estrofe…

 (…)

Uns matam o próprio amor quando ainda jovens,

Outros o fazem na velhice;

É Oscar Wilde, Lucas não hesita em sua conclusão, mas não se recorda, ao menos não com clareza, como teve acesso a esse poema…

(…)

Alguns praticam a ação com muitas lágrimas

E outros sem um suspiro, sequer.

Pois todo o homem mata o objeto do seu amor

E, no entanto, nem todo homem é condenado à morte.

“Não importa se você aparenta ter mais idade, você continua sendo apenas um adolescente”.

A voz enfática de Márcio Antônio repreendendo-o repercute pesada, densa, interrompendo aquele estranho momento de uma inusitada e incerta reminiscência, seguida pelo olhar de reprovação do professor sobre ele, sobre o seu corpo nu, franzino, mancebo. Aquela súbita e palpável recordação, uma cortina sendo descerrada de maneira violenta, sem nenhum aviso, acaba por tomar uma proporção alarmante, arrastando atrás de si uma sensação de vergonha que é derramada em seu colo, uma vergonha absurda, quase sufocante; a mesma vergonha dilacerante que continuou a sentir até conseguir ter Márcio Antônio em seus braços, por inteiro, e também dentro de si.

Nós iríamos nos arrepender… Eu iria me arrepender…”.

“Arrepender do que, professor? Podemos ser amigos…”.

“Não. Não podemos…”.

“Claro que podemos”.

As mãos de Lucas descem até suas próprias pernas, refazendo mecânica e inconscientemente o mesmo gesto de afago que fizeram sobre as pernas trêmulas do professor. Sim. Sim. Ele esteve lá. Ele sentiu o medo, a hesitação e o controle digladiando por e sobre cada parte de Márcio Antônio… A saudade daquele instante bate forte em seu peito e com ela as marcas e cicatrizes que decerto irão acompanhá-lo por toda a vida…

Não. Não.

Lucas meneia a cabeça, rápido, ao passo que gesticula no ar com uma das mãos, enfático, afastando da mente qualquer outra tentativa de aproximação de lembranças que remetam a Márcio Antônio. Mas, como sempre, não consegue. O que mais precisaria fazer para afastar para bem, bem longe aquela conhecida sucessão de pensamentos e recordações exasperadas e tumultuosas? Estava começando a se cansar daquela luta insana contra moinhos de vento. Decepções eram e sempre seriam resultados de falsas expectativas. Há pouco mais de uma semana as aulas retornarão e mesmo que Márcio Antônio não venha a ser seu professor, por certo irão se cruzar pelos corredores ou por qualquer um dos cantos do colégio.

Pois todo o homem mata o objeto do seu amor

E, no entanto, nem todo homem é condenado à morte.

Por que foi se apaixonar? Por que se deixou envolver nesse clichê tão ridículo? Jamais imaginou que cairia nesse tipo de armadilha. Sempre, sempre achou graça do desespero das meninas, daquelas adolescentes suspirando e respirando seus amores platônicos por um professor, buscando desesperadamente a beleza e o bem de um sentimento que não pode ser nem belo e nem bom, pois quem ama deseja algo que não tem.

Lucas baixa os olhos. Por um instante, breve, tem a sensação de que esse raciocínio pragmático e sem um pingo de empatia não lhe pertence, nunca lhe pertenceu, apesar da obstinada impressão de que esse mesmo raciocínio pragmático sempre estivera ali, em algum canto de sua mente, sempre fizera parte de sua essência.

Mas não, claro que não.

Lucas insiste na presumível certeza de que seu cérebro acabou de formulá-lo, sim. Esse raciocínio pragmático acabou de ser inserido, “criado” em sua mente, afinal, o cérebro é capaz de mentir, descartar informações, manipular raciocínios e até mesmo criar ilusões… Todavia, ele, Lucas, dessa vez não consegue assimilar para si este argumento científico enquanto volta a sentir os ombros pesados, extremamente pesados; a sentir-se emocionalmente desorientado, uma desorientação que se espalha por todos os recantos do seu ser, se expandindo como o universo, rumo a um buraco negro errante.

Ele inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, buscando manter uma respiração consciente e controlada.

No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama…

O que está acontecendo comigo?, Lucas se questiona enquanto tenta lidar com a aflição mental. Aquele poema… Aquele pensamento pragmático… Não. Não. Ele não está em um filme de ficção científica, não é uma cobaia com um chip plantado em sua mente, preparado para injetar dentro dela pensamentos e sensações pré-desenvolvidos. Isso é ridículo. Pensamentos não podem ser adulterados, forjados, conhecimentos não podem ser adquiridos assim, de uma hora para outra.

Lucas sente as pernas rígidas e súbito lhe vem a sensação de que seu corpo está se desligando. Um cansaço, aquele cansaço intenso, irritante, falando mais alto. Sua boca, agora, está seca, muito seca. Mas ele se recusa a adormecer — de novo? Não, não vai. Decide, lutando bravamente, ou covardemente, para não sucumbir ao impulso de se deixar cair sobre o colchão, sobre o seu travesseiro, de se deixar enveredar num sono profundo.

Estresse e ansiedade e a pressão causados pela maldita traição dupla que descobriu, por ainda não saber como vai lidar quando receber, por fim, a notícia pela boca da própria mãe de que ela está com um tumor maligno com risco de metástase, e tampouco como encarar o último ano letivo que o aguarda, é o que está lhe deixando daquela maneira: irritadiço, apático, confuso, extremamente desanimado. Ponto. E com uma vontade quase incontrolável de chorar.

O que está acontecendo comigo?

O que está acontecendo comigo?

Lucas ergue os olhos, estica o braço até a mesinha de cabeceira e sem remover o controle remoto do lugar, desliga a TV, voltando em seguida a encarar o chão; o coração afogado em angústia.

É um sonho ruim, um pesadelo o que está acontecendo com sua mãe. Ele ainda não conseguiu acreditar naquele diagnóstico que o pai lhe contou, mesmo depois dele ter lhe mostrado o resultado do exame, dos exames… Não pode ser verdade, não pode. Abigail não merece isso. E por que ela não quer que ele saiba, ao menos não por agora?

“Deixe que ela escolha o melhor momento para desabafar. Apenas esteja lá, disponível. Tente não tocar no assunto e fale de outras coisas. Quando ela quiser e sentir-se à vontade, ela vai falar”, Lucas recorda as palavras embargadas do pai, ainda segurando um dos seus braços no quarto de hóspedes…

Apesar de tudo, o desembargador se mostrou, naquele instante, naqueles minutos intermináveis, um tanto compreensivo, distante da figura arrogante e autoritária que sempre manteve, Lucas pondera mais que reticente, resistindo em restituir parte dos créditos de confiança ao pai, afinal, as pessoas não mudam, não mesmo. O desembargador, decerto, deve ter agido daquela maneira, recuado, ao ter o ego ferido por ter sido confrontado pelo próprio filho por sua desonestidade moral.

Lucas volta a erguer os olhos, firme, decidido. As pálpebras atormentadamente pesadas.

Enquanto não ouvir da própria mãe o que precisa ser ouvido, vai permanecer na dele, sim, mas em um estado consciente e prevenido de negação. E se o pai, se o desembargador estiver mentindo… Se ele estiver mentindo, mentindo…

Márcio Antônio…

Lucas balança a cabeça, com raiva, uma raiva extrema.

— Por que fui me apaixonar? Por que me deixei envolver nesse clichê tão ridículo? — a respiração consciente e controlada tão perto e tão longe — Se eu pudesse voltar no tempo não teria ido atrás dele, não teria abusado um pouco do álcool ou de tudo e de todas as coisas para tomar coragem, não teria forçado tudo aquilo. Não teria.

Lucas inspira e expira e inspira e expira, pausadamente, pelo diafragma, ao invés do peito, à medida que resquícios daquela noite, a humilhação pela qual se permitiu passar antes do prazer intenso pelo qual se permitiu experimentar, insistia em se fazer presente, ainda que lutasse para que cada uma daquelas sombras pudesse morrer… Ainda que vez em quando tudo aquilo lhe perecesse um sonho, um mero sonho, um delírio, um recorte de uma realidade preservada.

Ele pode sentir, sim, pode sentir a água do chuveiro caindo, escorrendo sobre o seu corpo… Pode sentir a respiração entrecortada de Márcio Antônio… Pode ouvir as batidas forte de seu próprio peito… Pode perceber, como se estivesse ainda sob o chuveiro no apartamento do professor, a vibração da mão hesitante dele em querer tocá-lo…

“Chega! Tire essas roupas molhadas e se seque. Vou preparar um café bem forte e amargo pra você tomar. Enquanto isso eu irei buscar algo pra você se vestir…”.

Por favor, professor, por favor, me olhe”.

As lembranças vívidas daquela noite de novo e de novo, a enxurrada de lembranças vívidas daquela noite: sensações de euforia e depressão se intercalando rápidas e erráticas.

Lucas fecha os olhos e no instante seguinte sua mão está tocando Márcio Antônio e o professor não se afasta, permitindo ser explorado, deixando que o aluno seguisse lentamente pelo peito dele até a barriga e depois até a virilha, invadindo, sem titubear, o curto caminho até o pau dele para daí, então, deixar que o adolescente começasse a masturbá-lo.

Lucas aperta os olhos, forte, como se não quisesse correr o risco de escapar daquela recordação, daquela fantasia, daquele momento de magia. Sua boca, agora, está tragando a boca do professor, manipulando as duas línguas, norteando a intensidade do prazer como se ele, Lucas, carregasse dentro de si toda a experiência do mundo, como se tivesse conhecido outros homens, outros amores antes de experimentar os braços de Márcio Antônio, antes de sentir o cheiro de Márcio Antônio, a pele, a ponta dos dedos, os cabelos…

O professor ocupou e ocupa há oito meses todos os lugares de sua vida, ele pondera, conclui, tomado por segundos de espasmos, reflexos e de um cansaço arrebatador enquanto tenta abrir os olhos, impedido, entretanto, por uma repentina pressão sobre as pálpebras fechadas. Todavia, com algum esforço, consegue, por fim, seu intuito, permanecendo, então, contemplativo por alguns minutos, absorvendo a energia do seu entorno, como se mais nada no mundo importasse. Como se tudo e todas as coisas que lhe aconteceram, todas suas ações e reações o tivessem guiado até ali, para aquele momento. De pronto, estranhamente acredita não ser mais um garoto de dezesseis anos, mas, sim, um homem de meia-idade aprisionado no corpo de um adolescente.

Lucas não aguenta mais. A força devastadora, incansável de um sono profundo o devora. Deixa-se, então, cair sobre o colchão, sobre o seu travesseiro e cruza as mãos sobre a barriga. Não demora muito para que ele vislumbre, mesmo com os olhos cerrados, uma sombra se movimentando de forma lenta, quase arrastada, surgida de lugar nenhum. E a sombra, essa sombra, essa aparição recém-chegada segue em sua direção e ela não se assemelha a nenhuma forma humana; sua essência é indistinta, ambígua, disforme…

Ele está absolutamente exausto. Não há um único músculo ou osso de seu corpo que não esteja dolorido.

Não faça isso. É o que ele quer. Não faça…, Lucas ouve uma voz, distante, uma voz que, apesar de parecer bastante incrível, surreal, se assemelha à voz de Márcio Antônio, ao mesmo tempo que vai perdendo definitivamente a percepção sobre si mesmo, sentindo as ondas cerebrais mais lentas…

Laura, de pé à frente de uma mesa, examina seu reflexo no visor apagado do celular: os olhos absortos, amargurados, um vinco vertical entre as sobrancelhas aparadas, linhas proeminentes mais recuadas ao redor da boca, além de algumas rugas e músculos flácidos destacados ainda mais pelas maças do rosto, menos definidas…

Quantos anos mesmo ela deveria ter? Uns 56, 57?, se questiona um tanto indiferente com um sorriso dissimulado enquanto pondera sobre a origem da vida, deixando-se perder por alguns instantes em torrentes filosóficas até substituir os lábios distendidos por um riso débil expressando condescendência.

— O pecado é uma coisa que se escreve no rosto de um homem. Não pode ser escondido. — ela balbucia, à medida que deposita sem nenhuma pressa o telefone sobre a mesa — Ah, Ronaldo, você precisa se deixar ajudar — Laura eleva a cabeça, altiva, porém, decide se curvar para avistar mais uma vez o próprio reflexo no display apagado do telefone, erguendo-se, então, de pronto, passando a observar um quadro solitário que repousa à parede diante de si — Aquilo a que você resiste, persiste. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor…

— Antes de ajudar alguém a se curar, é bom perguntar se esse alguém está disposto a deixar para trás o que o fez adoecer. Ronaldo cansou de ouvir isso dos poucos psicólogos a que se permitiu visitar.

Laura se volta na direção da voz vibrante dispersada pela sala e se depara com um jovem alto, de nariz reto e cabelos castanhos levemente desgrenhados, aparentando não mais do que uns 22, 23 anos, vestindo uma batina preta com uma gola fechada na parte de trás do colarinho, formando um quadrado branco na frente. O rapaz está parado sob o batente da porta observando-a minuciosamente com os braços cruzados.

— E onde estaríamos agora se algum desses psicólogos tivesse conseguido persuadir Ronaldo? — Laura indaga pacificamente ao tempo que não deixa de fitar o jovem um instante sequer, não denotando nenhum indício de surpresa com a presença dele.

— Com certeza não estaríamos aqui… — ele retruca um tanto áspero, descruzando os braços e apontando com as mãos espalmadas para o alto, buscando abarcar o cômodo em que se encontram.

— O problema é que nenhum daqueles psicólogos, e até mesmo aquele psiquiatra, estavam preparados para entender ou aceitar a realidade — Laura articula num timbre um tanto circunspecto, se virando no instante seguinte para o quadro pendurado atrás da mesa — Não estavam dispostos a correr o risco de contradizer o sistema, a autoridade do modelo profissional acatado pela comunidade científica.

— Depois de todos esses anos, Laura, você nunca se questionou? Nunca se questiona?

— É sempre assim, não é mesmo? Enquanto ele estiver abalado, em crise, tudo ao seu redor reflete esse caos — Laura diz sem se voltar — Algumas vezes mais, outras menos, dependendo da intensidade.

— Mas agora essa intensidade está beirando o descontrole muito mais do que das outras vezes. Até mesmo daquela vez em que ele acabou atacando a companheira — o jovem arremata mantendo a aspereza na voz.

Um silêncio desconfortável, ensurdecedor, se abate sobre ambos e parece durar uma eternidade.

— Obteve algum progresso, sacerdote Lucas? — Laura, por fim, se volta novamente na direção do clérigo, confrontando-o com um semblante impassível, como se soubesse a resposta que iria receber.

— Não — ele responde dando de ombros conforme caminha na direção da mulher, estacando a alguns passos de distância — Ronaldo não para de tomar antidepressivos e ansiolíticos e com isso não está deixando um mínimo de acesso, que seja, entre o fim dos efeitos da inibição de receptores e a inserção de outras doses.

Mais um longo instante de silêncio recai sobre o ambiente até Laura decidir se manifestar. Seu olhar permanece fixo sobre o sacerdote, porém, ela parece surpresa, como se tivesse esquecido a presença dele.

— Infelizmente, então, não há o que se fazer. Ao menos por agora — ela responde conclusiva, sentando-se à mesa, uma antiguidade revestida em carvalho com puxadores corroídos à frente das gavetas, mantendo as costas totalmente apoiadas no encosto da cadeira — Durante o tempo em que estiver medicado, ou se automedicando, Ronaldo estará, de certo modo, a salvo, e você já devia ter se acostumado com isso — Laura cruza as pernas e coloca uma das mãos sobre o joelho, deixando que a outra simplesmente caia ao lado do corpo; um gesto quase displicente.

— Você parece estar muito calma — o sacerdote Lucas observa; a voz, agora, num tom ameno — Mesmo sabendo do que o Ronaldo é capaz de fazer — mas diferente de sua voz, não há suavidade em seu rosto.

— Melhor do que ninguém eu sei do que ele é capaz, porém, não podemos fugir da realidade.

— De qual realidade? — o sacerdote indaga com uma vivacidade notável e uma ferocidade cuidadosamente reprimida.

— Não temos outra.

— Aquele professorzinho tem… — o jovem clérigo dá de ombros antes de se deixar cair sobre uma das cadeiras à frente de Laura, ao passo que cruza e descruza as pernas, uma, duas, três vezes até decidir mantê-las abertas, ajeitando a postura logo em seguida, alinhando-se sobre o assento — Assim como você mesma já teve.

— Márcio Antônio não é uma referência. Nunca foi… — Laura suspira, encarando mais uma vez o sacerdote com certa surpresa ao passo que recolhe a mão caída ao lado corpo.

— Sempre me pergunto por que a equalização das idades não me atingiu… — o jovem padre inquire num tom reflexivo, os olhos bem abertos, distantes e atentos — Por que ele insiste em me manter o mesmo, como se ainda estivéssemos em 1975, quando ouvi aquela confissão? Como se quarenta e dois anos não tivessem se passado? Por que a equalização atingiu somente a você, alguns outros e a esse professorzinho?…

— Por que isso agora, Lucas? Nossa preocupação é outra. Precisamos ajudar Ronaldo a se estabilizar. E Márcio Antônio, como você bem sabe, finalmente está tendo o que merece.

— A maturidade da personalidade nos traz um novo nível de equilíbrio e sensatez — o jovem Lucas interrompe Laura sem titubear — Por que ele insiste em me enxergar como uma pessoa regredida, estacionada? Como se minha mente estivesse imantada num eterno estágio adolescente? Eu falei o que ele precisava e o que ele queria ouvir quando fez aquela confissão impulsionada pela sua fuga, Laura.

— Às vezes perguntas e respostas é a mesma coisa e você não percebe — Laura responde de pronto, um ar aparentando condescendência, ao mesmo tempo que se ergue um pouco para frente conforme enlaça as mãos e arqueia uma das sobrancelhas — E a equalização das idades, você bem sabe, não adiantou para Márcio Antônio. A personalidade, a postura dele nunca foi capaz de alcançar um senso de maturidade e de responsabilidade — ela encara o sacerdote com uma expressão quase sombria enquanto retorna ao encosto da cadeira — Ok. O papel de Márcio Antônio nesse jogo é bem diferente do meu, assim como o do seu. E assim como foram os dos outros. Mas, Lucas, você bem sabe que ele precisa de você como você é…

— Impulsivo? Violento? Corajoso? Determinado? — o jovem arremata, sublinhando em voz alta cada um de seus questionamentos num misto de espanto e genuína indignação.

— Temos os nossos papéis — Laura insiste.

— Pois eu quero sair, me libertar dessa situação constrangedora de viver sob uma névoa — o sacerdote faz menção em se levantar, mas desiste — Às vezes me pergunto se não teria sido melhor desaparecer como os outros… — lamenta num queixume entre terror e agonia, enquanto mantém por alguns segundos o olhar cabisbaixo.

— E quem garante que desapareceram? — Laura indaga como se detivesse a resposta para todos os segredos do universo — Talvez tenham retornado para lá, para aquela escuridão, acotovelando-se uns aos outros, mergulhados naquele lugar de obscuridade — ela se ergue para frente mais uma vez — Você já esteve lá, não se esqueça — e retorna ao encosto da cadeira encarando o jovem à sua frente, como a desafiá-lo — Tudo o que fizemos e tudo o que estamos fazendo, Lucas, é para o bem de Ronaldo. Ou você se esqueceu do quão frágil ele é? Do quão perdido ele sempre foi? Se não fosse a nossa intervenção, a nossa ajuda, não sei se ele teria chegado até aqui.

— Alguns dos outros, que tiramos desse jogo, talvez tivessem feito melhor…

— Talvez… — Laura responde como se estivesse a ponderar todas as palavras e a controlar todas as reações — Mas cada um deles, no final das contas, se mostrou uma pedra no caminho.

— Principalmente o…

— Precisamos fazer escolhas em algum momento de nossas vidas — Laura interrompe o jovem sacerdote; o rosto, impassível — Espero que você não esteja arrependido do lado que tomou nesse jogo.

O sacerdote Lucas nada responde, tão somente contrai os lábios, altivamente intransigente, enquanto Laura se levanta, por fim, em completo silêncio, até se prostrar de pé atrás dele com as mãos entrelaçadas às costas ao tempo que contempla a pintura no quadro solitário que repousa à parede atrás da cadeira onde estava sentada.

Hypnos e Thanatos — ela inicia assumindo uma expressão um tanto absorta — Os deuses gregos Sono e Morte, que na mitologia eram meios-irmãos. Hypnos era filho da deusa da noite, Nix, e de Érebo, que simbolizava a escuridão primitiva constituída no instante da criação. Ele tinha inúmeros irmãos, dos quais o mais relevante era o seu gêmeo, Thanatos, divindade responsável pela esfera da morte. Apesar de suas posturas semelhantes nessa pintura, o personagem em primeiro plano, o Sono, que está segurando algumas papoulas, símbolo da apatia, é banhado em luz, enquanto seu meio-irmão, a Morte, é envolto em trevas.

O sacerdote Lucas fixa também o olhar para a pintura, sem piscar, até ter sua atenção dispersada ao sentir o peso das mãos de Laura perfeitamente manicuradas sobre os seus ombros. Uma sensação de receio lhe percorre o corpo como uma flecha, uma brisa envenenada.

— Como o menino Lucas vai reagir quando descobrir que a mãe não está doente? Que tudo ao redor dele é uma mentira? Meros fragmentos personalizados por fobias, imperfeições, oscilações e arroubos?

— Talvez ele não tenha tempo para isso — Laura remata sem vacilar.

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