Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:
automedicação / confusão mental / homicídio
28 de fevereiro, 2017, terça -feira de carnaval
13h30min
Em um salto, invadido pelo desespero e atordoamento, ainda sem acreditar naquela fração de realidade que de um instante para o outro se tornara violenta, JP instintivamente começa a correr na direção contrária a de Ronaldo, acabando por seguir para o beiral da pedreira, daquela pedreira para onde aquele que tinha se transformado em seu algoz num piscar de olhos, os havia levado após terem se encontrado, surpreendendo a ele, JP, já que o amante havia recusado o seu convite de passar o carnaval ali, em Guapimirim, onde simulariam um encontro casual, não despertando nenhuma suspeita em Abigail ou em Jonas, ou em qualquer outro, até mesmo em alguém do Ministério Público que pudesse aparecer por lá.
De pronto, ao perceber a própria precipitação, o desembargador consegue frear, ainda que não muito distante da beirada do despenhadeiro, uma escavação deslumbrante de quinhentos metros de extensão por duzentos de profundidade. Nesse momento, a adrenalina percorre todo o seu organismo numa velocidade exponencial, tornando seus batimentos cardíacos ainda mais acelerados, a transpiração, irracionalmente abundante, assim como também começa a sentir um desconforto e um mal-estar na boca do estômago beirando o insuportável.
Abigail e Jonas, como eles estão?, JP, começando a se preocupar com algo ainda mais sinistro, se questiona bastante angustiado, sentindo-se impotente e culpado caso algo possa ter acontecido, ou possa vir a acontecer com a esposa e o filho.
Por que Ronaldo está fazendo isso? Qual a sua motivação? Nossa relação dentro e fora do Ministério Público nunca deixou de ser amistosa apesar das complicações que acabaram envolvendo o nosso relacionamento… E quem, por Deus, é esse tal de Márcio Antônio que Ronaldo alega estar defendendo?
Indagações e agonias seguem dançando convulsivas pela mente de JP durante aquele milésimo de segundo em que precisa decidir o que fazer para se livrar daquele pesadelo. Fato: necessita deixar aquele local o mais rápido possível, regressar para o seu carro e chamar a polícia, conclui, arquejando, à medida que se volta para enfrentar Ronaldo, determinado a apelar para o que fosse a fim de conservar a própria vida. Contudo, se depara com o louco correndo em sua direção e nas mãos dele uma pedra enorme que não demora a arremessar, sem dar tempo a ele, JP, sequer de se desvencilhar.
JP sente o baque da pedra atingindo em cheio o seu peito, provocando uma dor lancinante em toda região torácica enquanto agita os braços rapidamente, berrando um brado que vai mudando de volume conforme seu corpo despenca ao tempo que Ronaldo, parado e ofegante, o observa desaparecer do seu raio de visão.
— Freud disse que há dois instintos básicos: sexo e agressão — Ronaldo diz a si mesmo, exultante, inspirando e expirando com raiva — Cada decisão a favor de algo também é contra outra coisa. Uma vida por outra vida — ele caminha célere até a beirada do precipício a tempo de ver o corpo de JP se chocar na parte inferior do penhasco — Aguarde-me no inferno, desembargador — arremata num elegante traço de ironia.
Logo, um toque de telefone, longe, abafado, resgata Ronaldo de seu torpor. Instintivamente ele leva as mãos aos bolsos da bermuda vermelha que está usando, mas não encontra o celular, dando início, então, a uma busca minuciosa ao aparelho enquanto caminha sobre as pedras e pedregulhos, sobre o chão áspero ante o sol ardente daquele começo de tarde, à medida que se deleita imaginando o estado de aflição de Márcio Antônio do outro lado da linha, até que se depara com o telefone, caído próximo ao carro de JP, que havia sido deixado para trás com as portas escancaradas.
— Sinto muito, meu amigo — Ronaldo balbucia, esquadrinhando do alto o display do celular conforme uma sensação de vertigem o assola, discreta, ligeira, nada que lhe fizesse perder o equilíbrio — Agora é tarde demais. Esse é o resultado inevitável da confusão de sentimentos entre alguém que admiramos e muitas decisões ruins. Lucas não te merecia assim como eu não mereci Camiro, da mesma forma que também não mereci ter Gaby na minha vida…
Ele, então, cerra os olhos, inspirando fundo, bem fundo, expirando, de pronto, sem pressa, tentando manter uma respiração consciente e controlada ao passo que sua mente vai sendo dominada por um sem-número de sensações seguidas de pensamentos mal formados e dinâmicos, desorganizados e desconexos, e também de uma sucessão de imagens insuportáveis, ora estáticas, ora potentes, se alternando aleatoriamente, enquanto um cheiro de pele, pele humana, quente e úmida invade suas narinas.
— Não, não. É impossível — ele repete num sussurro doído, os olhos fixados no nada — É impossível… Não era. Não podia ser ela… Não podia ser Gaby… Gaby… Gabriela… Eu não a vi. Eu não a vi. Eu não a vi. Ela está morta! Gaby está morta!
Ronaldo abre os olhos e por um instante, breve, se questiona onde está enquanto lida com uma desorientação espaço-temporal acompanhada de uma inegável sensação de súbito despertar, passando a observar o seu entorno, o vazio e o silêncio reinando naquela pedreira.
“Você já tem algum plano para o carnaval?”.
JP… Por que cedeu ao desembargador? Por quê? Ele se questiona, furioso, começando a andar de um lado para o outro.
“Nós iríamos nos arrepender… Eu iria me arrepender…”.
“Arrepender do que, professor? Podemos ser amigos…”.
“Não. Não podemos…”.
— Camiro… Camiro… CAMIROOOOOO.
Ronaldo grita, empurrando o vazio diante de si.
— Bipolar. Depressivo. Ansioso. É isso. Sempre foi isso. Bipolar. Depressivo. Ansioso… Gaby… Gaby… Não era ela na TV, não era.
Ele estaca, por fim, ainda mais ofegante.
— Num minuto o poder que acreditamos ter pode se transformar em caos e por isso precisamos estancar a sangria, recuperar o controle — ele volta a deitar os olhos sobre o display do telefone conforme abre um sorriso nervoso — Quem combate monstruosidades, Márcio Antônio, Juliano, Lucas, deve cuidar para que não se torne um monstro. E, se vocês, cada um de vocês olhar longamente para um abismo, o abismo também vai olhar para dentro de vocês.
27 de Julho, 2017, quinta-feira, Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar
— Doutora Gabriela… — Orlando mantém um timbre moderado — Como a senhorita mesma acabou de ouvir do advogado do seu paciente, agora, de fato, só temos duas semanas até a audiência inicial e com isso precisamos chegar a um denominador comum.
Gabriela, sem desviar a atenção do diretor da clínica, inspira, expira, mais uma vez, devagar, até que uma repentina dor no estômago interrompe o fluxo dos seus pensamentos. Cada músculo de seu corpo está tão tenso que poderia se romper em instantes.
— Sinceramente, doutor Orlando, estamos perdendo tempo — Claus sinaliza com um afetado desdém.
Gabriela segue respirando cada vez mais devagar enquanto ouve as vozes do diretor da clínica e do advogado de Eve, que lhe parecem, naquele momento, absurdamente distantes, trancafiadas na escuridão, soando sem nenhum sentido. Porém, não demora a concluir, após uma rápida ponderação, como se estivesse assistindo a tudo debaixo d’água, de que talvez aquela sensação de incompreensão seja devido a sua postura defensiva…
“De repente ouvi um estrondo e em seguida um grito parecido com o de uma fera primitiva e por fim senti uma pancada, surda, nas minhas costas”.
— Alguém… — Gabriela balbucia, por fim. A respiração saltando de um polo ao outro. O olhar, ainda fixado sobre o diretor — O paciente Eve… — ela aumenta o tom da voz sem qualquer esforço voluntário, passando, então, a fitar Orlando e o advogado alternadamente — O paciente foi encontrado desacordado na chácara, superficialmente ferido e afirma que sentiu uma pancada nas costas antes de perder os sentidos… Existe a possibilidade de mais alguém ter estado na chácara além dele, do desembargador, da esposa e do filho? — a pergunta, dessa vez, é direcionada diretamente a Claus.
— Sim — o advogado se levanta. Um brilho de hesitação, fingida, dança em suas pupilas — Foram encontradas diversas impressões digitais no local, afinal, essa tal chácara em Guapimirim é bem requisitada…
Com um olhar perscrutador, Gabriela fita Claus enquanto ele caminha de um lado para o outro. Mesmo estando em uma sala, num espaço limitado, ela não quer perdê-lo de vista.
— Mas a perícia conseguiu concentrar quatro delas, relevante para o caso, óbvio: as do desembargador; as da Sra. Abigail, sua esposa; as do adolescente, o filho adotivo deles; e as de um professor do garoto…
— Márcio Antônio? — Gabriela não consegue conter-se e também se põe de pé.
Claus não responde. Não de imediato. Limita-se a olhar para Orlando, um olhar aparentemente neutro e daí se volta para Gabriela, dando de ombros antes de lhe retrucar, entredentes, um contrafeito “sim”.
— E a propósito, já que a senhorita está tão interessada… — o advogado complementa sem se impressionar — A denúncia que levou a polícia até o local partiu do celular dele, desse professor. O aparelho estava a poucos centímetros do corpo desacordado do desembargador. E foram encontradas no telefone três impressões digitais: as do seu dono, claro; as da Sra. Abigail e as do meu cliente, que…
Gabriela dá um soco na mesa, assustando os dois homens.
— Então havia, sim, uma quarta pessoa na casa? Eve não criou isso.
— Como assim, criou? — Claus estaca a poucos centímetros da psiquiatra — Doutora, a informação de que o paciente foi encontrado superficialmente ferido e desacordado no local do crime consta no laudo emitido pelo médico parecerista.
Gabriela, num milésimo de segundos, se vê perdida entre lógica e razão, não conseguindo concatenar, pensar em algo concreto, por mais que se esforce.
— O que esse professor fazia na chácara? — é tudo o que Gabriela consegue raciocinar — Se o celular dele estava lá, não restam dúvidas de que ele também estava… Ou esteve…
— E por que esse professor iria embora e deixaria o telefone?
— Por que sua linha de defesa, doutor Claus… — Gabriela ergue a voz numa entonação furiosa — Não tomou o caminho de que talvez essa quarta pessoa, possivelmente esse professor, possa ser responsável pelos assassinatos naquela chácara? Por que o senhor quer que eu estabeleça um diagnóstico inconsistente? — ela se volta de imediato para o diretor Orlando e depois retorna com sua postura ainda mais inquiridora na direção do advogado — Para facilitar o trabalho de vocês dois? É isso? Quer que eu também estabeleça uma lista de possibilidades para ajudar na sua ordeira e honesta linha de defesa, doutor Claus? Se preferir, além do TDI também posso incluir no laudo médico do desembargador a paranoia, ou uma deficiência afetiva, ou uma necessidade de ser reconhecido… Ou um impulso homicida, o que acha?
A tensão aumenta. Os olhos do advogado e do diretor sobre Gabriela a sufocam, a exasperam…
— Agora estou entendendo o jogo de vocês, assim como antes de mim a doutora Júlia entendeu…
— Doutora Gabriela, esse tal professor sumiu do mapa. Nem a polícia, e nem ninguém, conseguiu encontrá-lo… E ainda que o localizassem, entenda bem, nada poderia incriminá-lo. As impressões digitais nos corpos, nas gravatas usadas para estrangular a Sra. Abigail e o garoto, as impressões digitais na cama, nos lençóis, todas são de Eve, do desembargador. Nenhuma outra foi encontrada. Nem nos corpos, nem nesses objetos e tampouco por todo o quarto…
— Se esse professor esteve na chácara, como entrou? Como saiu? Não há filmagens? Que vinculo possuía com a família de Eve?
— Doutora Gabriela, fique calma. A senhorita está caminhando por um terreno que não lhe diz respeito. O papel de advogado forense nesta história é meu…
Gabriela meneia a cabeça, rápido, uma, duas, três vezes até caminhar a passos largos na direção da porta, porém, antes de girar a maçaneta, se volta e busca com veemência o rosto do diretor do hospital, que a esta altura já se encontra de pé.
— Façam o que quiser, mas eu não vou mudar uma linha sequer do meu relatório a não ser que o paciente dê motivo para isso — ela comunica ao mesmo tempo que passa a alternar o olhar determinado entre os dois homens — E se preferir, doutor Orlando, não se faça de rogado em me substituir. O que seria lamentável.
— Você não será substituída.
Gabriela o confronta num tom extremamente desafiador.
— Foi o paciente, o próprio desembargador quem fez questão de tê-la como sua médica após a desistência da doutora Júlia.
28 de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval
Márcio Antônio abre os olhos, devagar. Está tudo escuro. Sua mente parece um pouco confusa e ele leva alguns instantes para emergir do torpor que a envolve enquanto pisca diversas vezes buscando acostumar a vista, porém, a escuridão, total, não cede. Ele, então, inspira e expira, à medida que meneia a cabeça morosamente; parece que houve uma batalha épica dentro dela. Mas quando? Não se recorda, não consegue se recordar, por mais que tente.
Será que está em meio a um sonho? Definitivamente não se lembra de ter se preparado para ir dormir; de ter se deitado à cama; de ter resistido ao sono como sempre fazia todas as noites… como vem fazendo nas últimas noites.
Inspira e expira mais uma vez. As pernas parecem pesadas, assim como todo o corpo que dá sinais imediatos de uma repentina queda de temperatura seguida de tremores involuntários.
O que está acontecendo comigo?
Márcio Antônio pisca uma, duas, três vezes. Precisa acordar. Pisca novamente. Acordar. Sim. Acordar. Pisca de novo e mais uma vez, entretanto, a escuridão permanece ao seu redor e ele, sabe-se lá porque, permanece onde está…
Mas, afinal, onde ele está?
Inspira e expira.
Os tremores involuntários pelo corpo continuam, mas agora são seguidos por uma sensação nauseante.
O que está acontecendo comigo?
Márcio Antônio volta a inspirar e expirar, respirando devagar, aumentando a barriga, contando até cinco, pausando para, daí, exalar lentamente, contando até seis. Por fim, decide se colocar de pé. As pernas, ele constata de pronto, continuam pesadas, e todo o corpo também.
E…
E…
Correntes?
Sim. Correntes.
Seus pulsos e tornozelos estão travados por correntes, ele pode sentir o metal, ele pode ouvir o som em meio a toda aquela escuridão.
O que está acontecendo? Preciso acordar. Já. Agora!
Os tremores parecem ter se intensificado, assim como a sensação de náusea. A respiração, até então mantida sob certo controle, começa a ficar acelerada, ofegante, ao passo que ele apura que as correntes, aquelas absurdas correntes, permitem tão somente uma reduzida margem de manobra.
Correntes? Correntes? O que são essas correntes?
Márcio Antônio busca se acalmar. De alguma maneira precisa manter o controle, por mais difícil que isso lhe possa parecer, enquanto decide começar a identificar o lugar onde está. Sob seus pés, que estão descalços, há um chão duro e atrás de si, numa distância de um antebraço, há uma parede ou um muro, ou uma sebe, um obstáculo, enfim, tomado por uma substância gosmenta, gelatinosa.
A respiração… A respiração retornando curta e acelerada, mas ele precisa se acalmar, precisa se acalmar.
O que está acontecendo comigo? O que está acontecendo comigo?
As pernas continuam pesadas, assim como todo o corpo, Márcio Antônio volta a se certificar, conforme o olhar segue passeando, se perdendo no breu que o rodeia por completo, ao passo que se esforça, vasculhando cada canto de sua mente, de modo a lembrar-se de como ou quando chegou até ali, como ou quando foi levado para ali, enquanto é invadido progressivamente por uma sensação de estar rodeado por um vazio, como se habitasse um nada, um lugar nenhum, ao mesmo tempo que se sente como um copo sendo enchido aos poucos, à medida que vai sendo consumido pela desconfiança de que talvez esteja sob o efeito de alguma medicação.
De repente, um gosto vagamente metálico toma conta de sua boca, tal como também sente espasmos na laringe e uma sensação, ainda que um tanto distante, de irritabilidade, conforme se recorda de uma frase de Philipe K. Dick: é estranho como a paranoia pode se associar com a realidade de vez em quando.
Drogado. É isso. Fui drogado, Márcio Antônio não demora a concluir, entre extasiado e afligido, sentindo a coação obstinada das correntes travando seus pulsos e tornozelos, ao tempo que volta a lutar para controlar a respiração cada vez mais deficiente.
Um grito. Depois outro grito. E outro urro. E mais um brado. Sim. Sim. Márcio Antônio começa a gritar, alto, bem alto, muitas e diversas vezes até sua voz começar a falhar, a ficar fraca, alquebrada, rouca, conforme uma tristeza arrasadora e um desespero sombrio se apoderam brutalmente de toda sua essência e um nó no estômago, um nó crescente em seu estômago vai se transformando numa queimação insuportável que mal lhe dá tempo de cair de joelhos e vomitar.
A mão direita está tremendo, começa a sentir.

O que fizeram comigo? O que fiz para estar aqui?, Márcio Antônio se questiona depois de limpar a boca com o dorso da mão, apesar da limitação imposta pelas correntes, pelas malditas correntes que travam seus pulsos e tornozelos.
Merda! Merda!
Ele tenta gritar mais uma vez, porém, não consegue, por mais que se esforce.
De joelhos, ainda de joelhos, se enfurece com as correntes, com as malditas correntes, e então se lembra, sim, se lembra, apesar da memória relativamente difusa, que estava… que esteve… Com quem ele estava? Sim… Sim… Estava com o desembargador…
A chácara…
Na sala…
O mal-estar…
A sala…
Ele, o desembargador e Lucas…
Abigail sendo gentil…
O mal-estar…
Vinho… Uísque…
Lucas…
Lucas estava confrontando os dois, a ele e o desembargador…
“Você sabia, não sabia? Sabia todo o tempo de quem eu sou filho, não é mesmo?”.
Por que aceitou a porra do convite sabendo que ia parar naquela maldita chácara?
A respiração segue curta e acelerada, mas ele precisa se acalmar, precisa se acalmar.
Súbito, uma porta é aberta e em seguida um retângulo de luminosidade deixa Márcio Antônio praticamente cego por alguns instantes, mas, após recuperar a visão, consegue distinguir uma silhueta, uma silhueta masculina…
— Quem está ai? Por favor, quem está ai? — ele indaga com a voz ainda fraca, alquebrada, rouca…
A figura, a silhueta masculina, estacionada sob o batente da porta, permanece em silêncio, braços cruzados, observando Márcio Antônio com uma atenção acurada, reunindo as palavras necessárias antes de se manifestar, até, por fim, dar um passo adiante.
— A confiança é a base para qualquer relacionamento — o homem, a silhueta masculina dispara num timbre frio, naturalmente frio.
— O quê? Quem é você? Por quê?… Porque está dizendo isso? Quem é você? Onde estou? — Márcio Antônio, com a voz entrecortada, tremida, se esforça em se fazer ouvir.
— Eve — o tal homem responde com uma voz afiada que arde como um corte de papel — Pode me chamar de Eve, se preferir.
Márcio Antônio engole em seco, meneando a cabeça tão logo termina de ouvir a apresentação daquela silhueta masculina estacionada sob um retângulo de luminosidade.
Eve! Eve! Este nome, esta alcunha ou o que seja não lhe soa estranho, entretanto, por mais que se esforce, não consegue lembrar, concatenar, atormentando-se por um segundo com a impressão de que esqueceu este nome por medo de esquecê-lo, ao passo que um mar de emoções e sensações contraditórias invade sua mente que, ato contínuo, começa a ir atrás de alguma referência, um sinal, um bordão. De repente, imagens pálidas, confusas, qualquer coisa disforme, começam a se formar, alinhando-se, mas também se dispersando, uma sucessão de imagens insuportáveis, ora estáticas, ora potentes, se alternando aleatoriamente.
Drogado. É isso. Eu estou drogado
Márcio Antônio, por fim, se vê na cama, ao lado do desembargador, realizando fantasias, buscando prazer forte, intenso e revigorante como se ele e o amante fossem dois adolescentes movidos por uma overdose de testosterona ao invés de homens maduros, no alto dos seus cinquenta e cinco anos. Em seguida se observa na sala de aula, estacionando diante da mesa de Lucas, entre uma explicação e outra, folheando um livro ou um gibi… Não, não, folheando um livro ou um mangá, isso, mangás que o garoto deixava ou esquecia sem querer, conforme ambos, ele, o professor, e Lucas, o aluno, trocam olhares ambíguos, convergentes, conflitantes, cúmplices…
O que está acontecendo comigo? O que está acontecendo comigo? Eu fui drogado, é isso.
De pronto, como num passe de mágica, surge diante de si a imagem de Ronaldo estacionando um carro, apressada e negligentemente. Em seguida, como se estivesse assistindo a um filme onde ocorre um corte brusco de uma cena para outra, presencia o amigo discutindo com Abigail, num quarto, sim, num quarto, até a repentina chegada de Lucas e antes mesmo que pudesse piscar, ele testemunha os dois, Ronaldo e o adolescente rolando pelo chão, lutando como dois gladiadores cujas vidas dependem tão somente da aniquilação da existência do outro.
Márcio Antônio começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos. A respiração… A respiração… A respiração está mais rápida, cansando os músculos respiratórios, que não conseguem relaxar, prendendo parte do ar dentro dos pulmões.
Súbito, ele sente um baque em seu peito, como se algo sólido, pesado, o tivesse atingido, provocando uma dor lancinante em toda região torácica ao mesmo tempo que também sente como se estivesse despencando. À sua frente, a figura de Ronaldo com um olhar vazio, que a princípio parece não se fixar em nada, em lugar nenhum, para, tão logo, passar a observá-lo, a ele, Márcio Antônio, de uma forma intensa transbordando desprezo, raiva e nojo.
Márcio Antônio deixa escapar um grunhido. A vontade de vomitar o assola novamente enquanto apoia a mão direita, ainda tremendo, na parede, à distância de um antebraço, sentindo aquela substância gosmenta, gelatinosa. Não há nada em seu estômago, mas ainda assim o sente revirar.
— É sempre assim, não é mesmo?
A voz branda e macia, mas também obstinada de Eve, faz com que Márcio Antônio retome a atenção sobre o retângulo de luminosidade escapando da porta aberta, conforme recolhe a mão direita, trêmula, balançando-a a fim de eliminar os resíduos pegajosos. A sucessão de imagens, lembranças ou falsas memórias — ele, inesperadamente, não consegue mais catalogá-las —, agora parecem se perder em meio à brumas dispersadas em sua consciência, porém, deixando rastros de que estarão ali, sempre estiveram ali.
— Enquanto ele estiver abalado, em crise, tudo ao seu redor reflete esse caos, não é? — Eve arremata, permanecendo onde está, parado sob o batente da porta com os braços cruzados, não deixando de examinar Márcio Antônio um instante sequer.
— Onde estou?
— É diferente. Aqui. Concorda?
— Aqui? Onde? Onde estou? — Márcio Antônio tenta divisar o entorno, por mais absurdo que possa parecer, legitimando com esse gesto o seu desconhecimento do lugar, do breu que o envolve, mas não consegue, pois uma onda de dor, pulsátil, uma pressão profunda e assustadora em sua cabeça, o impede.
— Você realmente achou que ele ia te blindar pra sempre? — o homem, a silhueta masculina devolve; a voz agressiva, mais agressiva do que gostaria.
Márcio Antônio emudece enquanto deixa o olhar cair em direção à escuridão do chão duro sob seus pés descalços. Seu âmago arde. Sua cabeça arde. Seus músculos ardem.
— Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você.
— Do que é que você está falando? — Márcio Antônio questiona, erguendo o olhar logo em seguida. A pressão na cabeça ainda persiste, contudo, um pouco mais amena, enquanto se certifica de que a contraluz do facho de luminosidade o impede de discernir os traços do homem estacionado um passo a frente do batente da porta.
— Para um professor de filosofia, citar Nietzsche não deveria ser algo estranho ou incomum, não é mesmo? — Eve pontua num elegante toque de ironia.
— Há quanto tempo estou aqui? Por que estou aqui?
— Ah!, Márcio Antônio, você, como sempre, um dissimulado.
— O que você quer de mim? Quem é você?
— A sua segunda pergunta já foi respondida. Mas enfim, às vezes perguntas e respostas é a mesma coisa e não percebemos. Entendo que agora você, Márcio Antônio, mental e emocionalmente esteja lutando contra essa fragilidade, essas reações paradoxais. E não poderia ser diferente… Mas ainda assim, não se esqueceu de quem somos. Acredito, mesmo, que você saiba quem somos… — Eve adere ao silêncio por um minuto ao tempo que meneia a cabeça bem, bem devagar antes de prosseguir — Apesar do seu papel nesse jogo ser bem diferente do meu e de todos os outros; apesar de, ainda assim, teimar em não dimensionar o tamanho do universo que nos cerca.
— Jogo? Você chama isso de jogo? — Márcio Antônio de pronto se coloca de pé, sacudindo as correntes, as malditas correntes que travam os seus pulsos e tornozelos, permitindo tão somente uma reduzida margem de manobra. A voz, alguma coisa ainda debilitada.
— Existem mais coisas suscetíveis de nos assustar do que existem de nos derrotar; sofremos mais na imaginação do que na realidade.
— Onde ela está? — Márcio Antônio questiona abrupto e um tanto incisivo.
— Ela?
— Sim. Ela. A mulher que sempre usa um tom de autoridade quando fala comigo… Onde ela…
— A irmã de Ronaldo? — Eve o interrompe.
30 de julho, 2017, domingo
Gabriela abre os olhos após experimentar uma célere sensação de estar caindo ao mesmo tempo que se sente desconectada de suas funções motoras, ainda que temporariamente, enquanto lida com uma desorientação espaço-temporal acompanhada de uma inegável sensação de súbito despertar. Em sua mente, resquícios de imagens, impressões ainda que precárias que lhe sugerem que esteve sendo observada… E havia escuridão… E vozes… E um quarto que não parecia ser o dela… Enfim, fragmentos confusos e dispersos de um sonho ruim como todos os outros que vem tendo nos últimos tempos e que certamente não demorariam a ser deslocados para algum canto do seu cérebro envolvido organicamente na produção onírica, mas não sem antes, claro, deixar um rastro de ansiedade e irritação.
Em um gesto imperiosamente instintivo, ela constata que está na sala do seu pequeno apartamento, recostada sobre o sofá, conforme sente os músculos começando a relaxar e a respiração ficando mais leve até, súbito, um ruído distante despertar sua atenção, algo que não chega a importuná-la de início, contudo, não demora muito para que a obstinação daquele som comece a desagradá-la, reconhecendo, por fim, que é o seu celular dando sinal de vida. Sem demora, se coloca de pé num salto, disparando até o quarto, mergulhando de pronto sobre a cama, já tateando todos os cantos e recantos em busca do aparelho que não para de tocar, afinal de contas, tem certeza que deixou o telefone ali, e o toque do aparelho, ainda que abafado, não deixa espaço para dúvidas.
De repente, um silêncio, mas apenas para dar a Gabriela tempo suficiente de recuperar o fôlego e experimentar uma falsa sensação de paz até se entregar a mais uma busca ante um novo sinal do telefone que agora parece soar um som estridentemente abominável aos seus ouvidos. A pessoa do outro lado está de fato determinada a falar com ela custe o que custar, então é melhor que encontre o famigerado aparelho o mais breve possível antes que enlouqueça. E assim, como que por encanto, como se os deuses tivessem atendido a seu pedido, ele surge, ali, sob o travesseiro, lugar que decerto ela já havia verificado.
— Que seja!
Gabriela sentencia entredentes, se colocando de pé e dando de ombros, enquanto resgata o telefone, encontrando de pronto no display o número da doutora Júlia Mathias.
“Infelizmente a senhora não poderá falar com minha esposa… Ela está na UTI… Júlia tentou o suicídio”.
Aquela triste notícia ecoa de imediato em cada canto do cérebro da jovem psiquiatra, palavra por palavra, ao mesmo tempo que ela segue olhando fixamente para o número à sua frente à medida que busca controlar o pressentimento angustiante, desenfreado e inelutável que toma conta de si, pressionando sua mente a tornar em certeza — uma incontestável certeza — qualquer possibilidade de receber uma má notícia. Mas precisa atender, Gabriela pondera. Ignorar aquela ligação não mudará o que está para ser dito do outro lado, seja o que for.
— Alô?
— Doutora Gabriela? É o marido da Júlia Mathias…
Sim. É a voz do marido de Júlia, Gabriela reconhece de pronto, entretanto, é tomada no mesmo instante por uma repentina e disparatada impressão de que o timbre daquela voz não é o mesmo daquele homem que há três dias lhe dera a notícia da tentativa do suicídio da esposa.
— Doutora Gabriela? Está aí? A senhora está podendo falar?
Conforme segue buscando identificar, sem sucesso, o que há de diferente na voz que está ouvindo, Gabriela acaba por retomar a convicção, ainda que um tanto débil, de que essa voz masculina é, sim, a mesma voz que lhe dera a notícia da internação de Júlia. Todavia, a bifurcação derivada dessa intuição acaba por se transformar numa maldita trifurcação, pois o dono dessa voz, da voz que agora parece fluir de dentro de sua cabeça e não mais do seu celular, lhe soa bastante familiar.
— Doutora Gabriela? Doutora Gabriela?
— Sim…
Gabriela finalmente responde, porém, hesitante, mesmo sem saber o porquê, ao tempo que sente um gosto metálico na boca, uma sensação de sonolência, rigidez muscular e tremores, além de uma dor excruciante avançando por todos os cantos de sua cabeça.
— Como a Júlia está?
Ela questiona imediatamente, uma reação quase involuntária, como se as palavras ditas, apesar de terem saído de sua boca, não fossem suas.
— Infelizmente, doutora, ela não resistiu.
Gabriela abre os olhos. Sente-se tomada de um pressentimento, não, não, talvez uma percepção de perda de continuidade, de desprendimento de si mesma, de suas emoções. Uma impressão de que sua mente se deslocara a grandes distâncias, para locais desconhecidos, e que nesse ínterim algumas lembranças, reminiscências se perderam e se tornaram inacessíveis.
Mas que memórias?, ela indaga um tanto confusa quanto à própria identidade, meneando a cabeça logo em seguida, ao passo que começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidida a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda, enquanto lida com uma entranha sensação de retomada de seus movimentos corporais.
Depois de inspirar e expirar profundamente alinha a cabeça sobre o travesseiro: está deitada na cama, no quarto do seu pequeno apartamento, reconhece, conforme vai sendo assaltada pela impressão de que algo está roubando seus sentidos, deixando tudo suave, lento, o mundo ao redor completamente harmonioso e num tênue silêncio. E ela, indubitável, reage na mesma proporção, não resistindo a essa inesperada sensação, se permitindo mergulhar numa calma, numa súbita e mortal calma que se espalha, avança e por fim toma conta de todo o seu ser em questão de segundos.
Sim. Sim. E está lhe fazendo muito bem. O seu corpo necessitava desse bálsamo, ainda que com um empurrãozinho de um antidepressivo e um barbitúrico, apesar de não se lembrar do momento exato em que os ingeriu. Acredita que tenha sido depois daquela discussão desgastante com doutor Orlando e Claus, aquele advogadozinho de merda que lhe atribuiu uma hostilidade gratuita, ou talvez depois da conversa que teve com Eve e aquela inusitada e inaceitável manifestação de um transtorno de dissociativo de identidade.
Ou quem sabe só os tenha tomado ao chegar ao apartamento…
Mas isso foi a três dias, correto?
Então decerto os tenha ingerido há algumas horas…
Pouco importa, Gabriela conclui qualquer coisa enfadonha, observando o teto, até ter sua atenção resgatada por um som, um repentino e irritante som que lhe parece familiar, ainda que distante, mas que não consegue identificar. Contudo, o som, aquele som está se tornando maçante e ela vai resistir bravamente, pois não vai abandonar este instante de quietude, esta brecha de uma paz há muito perdida e que arduamente está conseguindo impor à sua consciência.
Ela cerra os olhos e luta uma batalha intensa para poder se manter na zona de calmaria, mas não consegue. Mil e um pensamentos são despejados em sua mente. Flechas aleatórias disparadas a 250 km/h enquanto experimenta uma inusitada e absurda sensação de que uma força externa parece estar disposta a invadir sua consciência, seu córtex cerebral, como uma doença autoimune determinada a destruir suas energias vitais, seus sentidos extrafísicos ao mesmo tempo que seu cérebro se recusa a ser tomado, resistindo como antibióticos se defendendo bravamente do causador de uma doença.
“Sísifo foi condenado a rolar por toda a eternidade uma rocha montanha acima. E sua tarefa não terminava nunca, pois, uma vez colocada no alto da montanha, a pedra rolava novamente para a planície. Não há castigo mais terrível, doutora, do que um trabalho inútil e sem esperança”.
— Não.
Gabriela, de um salto, se põe de pé e começa a andar de um lado para o outro, passos firmes, conforme se recorda da troca de olhares cúmplices entre Orlando e Claus, a mise-en-scène muito bem orquestrada entre os dois para encurralá-la, até convencê-la a se dobrar aos intentos controversos para a defesa do desembargador.
“A minha linha de defesa, doutora, está cem por cento construída sobre o transtorno dissociativo de identidade do meu cliente, como preconizou a sua colega, Júlia Mathias. E é em cima desta defesa que irei pedir a absolvição do desembargador ou, se for o caso, garantir uma pena devidamente equilibrada”.
Não. Não. Esse advogadozinho e o doutor Orlando não irão fazê-la sucumbir até que desista. Não. No dia seguinte irá até à clínica conversar com o diretor e confrontá-lo, ainda que não seja o seu dia de plantão. Sim. Eve, Arnoldo, o desembargador precisa da sua ajuda, Gabriela constata deitando o olhar sobre o piso inspirado nos bistrôs parisienses, com tons e padrões marcantes, sombreada pela sensação de que aquele piso não havia sido instalado no quarto, somente na sala do seu pequeno apartamento, erguendo, por fim, a cabeça no instante seguinte enquanto se sente invadida novamente pelas mesmas sensações de combustão e angústia crescentes, que lhe tomaram durante a conversa com o Orlando e Claus. Assim como a mesma impressão absurda de que tudo que esteja vivenciando seja uma mentira e que talvez esteja dentro de um jogo onde não passa de um mero peão em um tabuleiro de xadrez liderado por uma mão desconhecida.
Eve. Eve. Eve. Precisa e deve focar em seu paciente. Ela pode sentir e ouvir os gritos dele clamando para que não o abandone, deduz mergulhada entre razão e sensibilidade, como uma mãe ansiosa.
Por favor, doutora, vá embora! Eu a trouxe para cá, para tentar… para tentar… para salvá-la, nos salvar, mas não consegui. O passado é passado. Não volta.
Gabriela estaca após concluir entre surpresa e satisfeita que a carta que recebeu de Eve pedindo para que fosse embora, com certeza, era um grito de socorro. Só Deus pra saber em que circunstâncias ele, Arnoldo, escrevera cada uma daquelas linhas, o desespero para que conseguisse deixar aquela carta em sua mesa, o risco de ter sido descoberto…
“Está pedindo ao seu paciente que confie em você, enquanto você não confia em si mesma. Qualquer psiquiatra de quinta categoria saberia o quão isso se parece: uma aberração médica”.
“Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem antes e nem depois. Não podemos e nem devemos trabalhar com conjecturas. Não temos mais o tempo ao nosso favor”.
Não. Não. Ela não é uma impostora. Não é. Gabriela repete e repete e repete para si mesma, uma vontade feroz de gritar. Arnoldo apresenta sintomas de esquizofrenia, um transtorno mental está afetando o seu modo de pensar, sentir e se comportar. Ele perdeu o contato com a realidade, Gabriela determina ao passo que a última conversa que teve com o paciente, bastante peculiar, por sinal, lhe invade por completo o cérebro. Ela não esteve diante de uma manifestação de um transtorno dissociativo de identidade. Não. Não. Arnoldo apresentou no teste de Rorschach um transtorno de pensamento subjacente ainda que sua autodefesa inconsciente tenha tentado camuflar. Ele possui transtornos mentais e sintomas da esquizofrenia, porém, os aspectos inconscientes de sua personalidade não entregou nenhuma discrepância da própria identidade.
Gabriela se deixa cair sobre a cama. Uma queimação no estômago. Tambores retumbam em seus ouvidos. Ela se encolhe enquanto é tomada novamente pela sensação de que uma força externa parece estar disposta a invadir sua consciência, seu córtex cerebral e que talvez esteja dentro de um jogo onde não passa de um mero peão em um tabuleiro de xadrez liderado por uma mão desconhecida.
23 de fevereiro, 2017, quarta-feira
Lucas acorda ofegante e ato contínuo se senta na cama, demorando alguns instantes para recobrar a consciência, recuperar-se da momentânea desorientação espaço-temporal típica de um súbito despertar. O entorno, cada canto do seu quarto, permanece o mesmo, ele conclui, num misto de obviedade e absurda surpresa conforme inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, buscando manter uma respiração consciente e controlada.
A televisão está ligada e as imagens que se movimentam dentro dela estão sem som, ele não demora a perceber, sem conseguir distinguir exatamente o que está passando à sua frente até, por fim, esticar o braço, alcançando o controle remoto sobre a mesinha de cabeceira, desligando a TV.
Há quanto tempo mesmo vem dormindo? Por quantas horas do dia e da noite ele vem se entregando ao sono pesado, chegando ao cúmulo de não ter mais a mínima noção do que faz quando está acordado? Não consegue mensurar, não mais, por mais que se esforce. A vontade absurda de dormir e dormir, assim como a sensação de fadiga, a falta de energia e as ocasionais dores de cabeça não o abandona já há quase duas semanas, desde que o caos tomou conta de sua vida…
Quase duas semanas?, ele se questiona um tanto hesitante, mecânico, lidando ainda com os resquícios da desorientação espaço-temporal típica de um súbito despertar, enquanto inicia uma busca pelo celular a fim de saber das horas e irracionalmente, sim, irracionalmente também tomar conhecimento da data e do dia da semana em que se encontra, ao mesmo tempo que é assaltado pela impressão de que aos poucos vem perdendo o domínio sobre o seu próprio corpo, sobre seus processos mentais, como se um interruptor em seu cérebro tivesse sido ligado, ainda que essa sensação, apesar de inesperada, lhe pareça um tanto familiar, como um déjà vu.
Lucas meneia a cabeça, conformado, uma conformação fragilizada, ele reconhece tão logo se dá conta de que o telefone não está à vista, iniciando a partir de então um movimento diferente de inspiração e expiração, imaginando dessa vez o oxigênio se movendo dos pulmões para o topo da cabeça e o dióxido de carbono para fora do corpo à medida que sente sua mente sendo ocupada por flashes de memórias, muitas delas sem que consiga identificar onde e quando se formaram, contribuindo ainda mais para o seu estado de confusão mental, fazendo-o julgar, embora por alguns instantes, que não se encontrava ali, sentando sobre sua cama.
O que está acontecendo comigo?
O que está acontecendo comigo?
Balbucia e, sem pressa, reunindo forças num empreendimento hercúleo, se levanta, praticamente se arrastando até se posicionar sentado à beira da cama sem nenhuma coragem ou mínima disposição para sair de onde está enquanto se surpreende por não conseguir se lembrar de como havia chegado até ali, no seu quarto, e tampouco como estava vestido com o short e a blusa que sempre usava para dormir.
O que está acontecendo comigo?, Lucas se pergunta mais uma vez e de novo e de novo, sentindo-se mais e mais desorientado, uma desorientação que se espalha por todos os recantos do seu ser a cada segundo, se expandindo como o universo rumo a um buraco negro errante conforme os flashes de memórias, daquelas memórias desconhecíveis começam a desaparecer um a um para dar lugar a fragmentos dos seus agora recorrentes pesadelos habitados por labirintos.
Ele começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda. As imagens fracionadas de sua fuga pelos múltiplos corredores daqueles dédalos são projetadas, cada uma delas e todas ao mesmo tempo, rapidamente diante de si, como cenas de um filme mudo. O tal homem sem rosto, claro, continua presente em cada um desses fremes, sem exceção, e continua a persegui-lo a passos módicos com a inabalável certeza de que irá alcançá-lo como sempre. Mas e Márcio Antônio? Onde está o professor? Ele não o ouve, não mais, gritando angustiado e aflito por seu nome.
No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;
(…)
Uns matam o próprio amor quando ainda jovens…
Lucas olha para os lados, inacreditavelmente buscando pelo professor de filosofia, constatando no minuto seguinte o ridículo do seu gesto acompanhado de uma vontade absurda de chorar embargando sua garganta.
Por que fui me apaixonar? Por que me deixei envolver nesse clichê tão ridículo?, lamenta, mas sem tanta convicção, ao tempo que é invadido por um sentimento nostálgico, uma saudade tamanha por Márcio Antônio, algo que não consegue controlar por mais que tente e que vai se misturando ao nó que surge em seu estômago, à raiva, à mágoa…
As imagens caleidoscópicas não param de se projetar, contudo, parecem, agora, um tanto distantes, como se um escudo invisível o estivesse protegendo de algo ruim que elas pudessem lhe causar, o que seria um absurdo.
O que está acontecendo comigo?
O que está acontecendo comigo?
O embargo na garganta parece cada vez mais opressor.
Raiva e saudade, raiva e saudade, Lucas consegue sentir a guerra palpável entre os dois sentimentos, a instabilidade emocional se recusando cruelmente a ceder, apesar de ser ele o responsável por tudo isso. Não deveria estar permitindo essa brecha porque ainda está magoado, desapontado, sentindo-se usado por Márcio Antônio. Ele sabia, é claro que o professor sabia o que estava fazendo.
As vozes voltam a passear pela sua mente, em dissonância, numa irritante dissonância lutando para abafar umas às outras ao passo que as imagens caleidoscópicas desapareceram e com elas a sensação de estar sendo blindado por um escudo invisível. Súbito, ele retoma a busca pelo celular, mas dessa vez se colocando de pé e revirando cada canto do quarto, num misto de inconstância e perseverança, não obtendo, como antes, nenhum sucesso em sua empreitada.
As vozes não estão mais ali. Elas foram embora, Lucas apura diante do incontestável som do silêncio que tomou conta de cada recanto do seu cérebro. Ato contínuo, a fadiga, a maldita fadiga, a falta de energia e a vontade absurda de dormir o paralisam enquanto ele se volta na direção da cama, lutando bravamente, ou covardemente, para não sucumbir ao impulso de se deixar cair sobre o colchão, sobre o seu travesseiro, de se deixar enveredar num sono profundo, mas dessa vez algo, uma força estranha, uma luz solitária em meio aquele oceano de processos cognitivos conscientes ou não conscientes, o impede. Como se aquela invasão tivesse desencadeado, por fim, uma série de reações no seu sistema imunológico psicológico, lhe dando forças para seguir adiante, sair daquele quarto…
Não faça isso. É o que ele quer. Não faça.
Algo esbraveja dentro de si e Lucas então caminha a passos largos até a porta, abrindo-a de supetão, deixando o quarto para trás sem nenhuma cerimônia, caminhando, enfim, por todo o apartamento enquanto nota um inquietante silêncio incrustado em todos os cantos ao mesmo tempo que é tomado pela inusitada sensação de já ter vivenciado tudo aquilo, cada passo dado…
Nada na cozinha.
Nada na área de serviço.
A sensação de déjà vu cada vez mais presente, sufocante…
Ninguém na sala.
Aquela sensação agora acompanhada de um rastro de neblinas de um sonho dissolvido em fragmentos num dos cantos da sua memória…
Ninguém no quarto dos seus pais.
Lucas estaciona à medida que busca manter uma respiração consciente e controlada, consciente e controlada, consciente e controlada…
Os seus pais… Onde eles estavam? Por que não consegue se lembrar de nenhum dos dois, nenhum deles indo procurá-lo para saber o que estava acontecendo, o porquê do seu cansaço crônico, o porquê estar se entregando a um estado de sono contínuo…
“Deixe que sua mãe escolha o melhor momento para desabafar. Apenas esteja lá, disponível”.
Uma respiração consciente e controlada, uma respiração consciente e controlada, uma maldita respiração consciente e controlada.
De repente, uma música desconhecida invade todos os cantos do apartamento, mas Lucas, incompreensivelmente, reconhece ser o toque do seu celular e como se não bastasse identifica aquela música, em pouco tempo, como sendo uma canção setentista que seus pais adoravam, mas que ele sempre odiara e que jamais fizera questão em aprender, apesar da insistência de… de… Ele não consegue se lembrar dos nomes de seus pais, por mais que tente, insista, assim como também não consegue recordar seus pais ouvindo aquela música em nenhum momento desde que se entendeu por gente.
O que está acontecendo comigo?
O que está acontecendo comigo?
Lucas abre os olhos, apesar de não se lembrar de tê-los cerrados. Está diante de uma escadaria completamente desconhecida e que leva ao primeiro andar de um lugar tanto quanto indefinido. Mira, então, o entorno enquanto tenta entender como fora parar ali, mesmo não se lembrando de onde se encontrava antes, ainda que tomado pela inerente certeza de que realmente não estava aos pés daqueles degraus; assim como também pela estranha sensação de ter despertado naquele exato momento de um sono longínquo, profundo, eterno, além da impressão desagradável de um gosto vagamente metálico na boca acompanhada de uma distante, mas presente sensação de irritabilidade.
Não faça isso. É o que ele quer. Não faça.
Lucas meneia a cabeça sem pressa, buscando o dono daquela voz. Sim. É uma voz masculina, contudo, não a reconhece.
Fuja!
Ele ignora a advertência, aquela anônima advertência, aquela insólita advertência. Parece anestesiado.
— Por que você me ignorou quanto tentei falar com você?
Outra voz. Sim. Outra voz masculina. Um timbre completamente diferente e dessa vez a tal voz parece estar bem próxima, não mais um eco como a que a precedeu, Lucas observa conforme volta a atenção para a escadaria e com extremo cuidado passa a examinar cada um dos seus degraus até se deparar com o patamar, encontrando uma figura que não estava ali até poucos instantes.
É um homem…
Ele está de pé sobre o último degrau…
Sim. Decerto é um homem: cabelos aparentemente grisalhos e as costas ligeiramente curvadas…
E as mãos cobrindo totalmente o rosto.
— Olá?!
Lucas não recebe nenhum retorno.
— Olá?!
Lucas repete o chamamento, mas em vão, até que em um nanossegundo, sem grandes alardes ou gestos inesperados, a tal figura descobre a face e o encara de pronto, lhe direcionando inicialmente um olhar incisivo que não demora em se transformar, com sua expressão, num mar de abismal perplexidade.
— Nós o matamos!
Lucas sente uma mão pesar sobre o seu ombro antes mesmo de tentar identificar a fisionomia do tal homem e daí se vira imediatamente, não encontrando ninguém, o que começa, por fim, a deixá-lo intimidado.
Acorde! Por favor, apenas acorde!
Ele ouve alguém bradar, mas não há ninguém por perto — confirma mais uma vez e rapidamente — exceto o tal homem ainda parado no patamar da escadaria e em completo silêncio. E a voz, a voz que está gritando, pedindo, clamando para que ele acorde, é uma voz masculina, reconhece, sim, e essa voz pertence a alguém chamado Márcio Antônio…
— Mas quem é Márcio Antônio?
28 de fevereiro, 2017, terça-feira de carnaval
— O quê? — Márcio Antônio sente a cabeça um pouco pesada — A mulher que sempre usa um tom de autoridade quando fala comigo, é irmã de Ronaldo? Ele tem uma irmã?
— Sim. Ele tem.
Eve aguarda a informação ser absolvida como se tivesse planejado com todo cuidado aquele momento.
— Irmã de Ronaldo?… Ele nunca me disse… Eu nunca… — Márcio Antônio sente-se afetado de maneira confusa e insatisfatória.
— Você realmente acreditou que sabia de tudo, não é mesmo? Que o seu amigo lhe contou tudo? Que você teve acesso a todo histórico de vida dele?
— Eu… Eu… Ela…
— É a irmã dele, que diferente de nós, não apenas sabe de tudo que se passa nos bastidores, como se mantém num estado de perfeita lucidez.
— Impossível… Ronaldo nunca… Eu saberia.
— Não. Não saberia — a voz de Eve sai com rispidez.
Márcio Antônio, agora, consegue menear a cabeça. A pressão e a queimação seguem incomodando, entretanto, cada vez mais atenuadas.
— Ah, Márcio Antônio, Ronaldo sempre confiou em você, mas também, na mesma proporção, se arrependia da relação que os une… Unia.
— Ele… Ronaldo deve estar me procurando… Sim…
— Não. Ronaldo não está em condições para isso.
— O que houve com ele?
— Não me diga que está preocupado? A amizade de vocês, nos últimos tempos, vem se deteriorando consideravelmente e você não me pareceu fazer questão em compreender o que estava acontecendo com o seu amigo…
Márcio Antônio se fecha numa camada de silêncio a fim de rememorar os acontecimentos das últimas semanas, ou o que lhe for possível acessar dentro do torpor que ainda envolve sua mente.
“Por que você está fazendo isso? Por que está tirando o Lucas de mim?”.
— Você provou por diversas vezes não ser merecedor da amizade de Ronaldo, mesmo sabendo da fragilidade que o acometia. Mesmo sabendo que ele depositou sobre ti o papel de um modelo, de um associado…
— Não — Márcio Antônio busca se defender de pronto — Na verdade, eu sempre, sempre busquei ajudá-lo a se livrar das amarras que o prendiam, e infelizmente ainda o prendem…
— Ajudá-lo? Fazendo-o caminhar por uma estrada perigosa? Levando-o a conhecer lugares e pessoas sem nenhum pudor, sem nenhum limite?
— Ronaldo tinha, tem necessidade de transgredir a ordem natural das coisas, de tudo aquilo que lhe foi imposto por aqueles pais, por aquele ambiente em que cresceu. Ele não teria sobrevivido…
— Não foram poucas as vezes que você nos obrigou a assistir coisas deploráveis e em algumas delas, ainda bem, nos foi permitido intervir.
— Eu não obriguei Ronaldo a nada.
— Como eu disse… — Eve pontua com uma calma alarmante — Seu papel nesse jogo é bem diferente do de todos os outros. Ronaldo lhe deu um poder quase absoluto e você poderia, sim, tê-lo feito se afastar da recusa, da negação da realidade de uma percepção traumatizante.
—E eu fiz isso. Procurei afastá-lo da negação de quem realmente sempre foi. Do fantasma da rejeição em se aceitar como era, como é…
— De forma leviana, não é mesmo? Alimentando a avidez de Ronaldo em saciar uma gana eternamente insaciável. Ele tentou deixá-lo para trás, Márcio Antônio, principalmente quando esteve com Gaby. Sim. Ronaldo se esforçou em mantê-lo distante, tanto quanto possível, bloqueando todo e qualquer acesso entre vocês.
— Foi ele quem sempre me procurou. Todas as vezes. Todas! Em todas as ocasiões em que se sentiu frustrado, desesperado, ansioso por se aproximar da sua real natureza, foi ele quem chamou por mim. Ronaldo sempre se reprimiu, sempre negou a si mesmo, desejando coisas que odiava reconhecer…
— Você é o amigo da onça, o lado obscuro dele e, como todo lado obscuro, não entende de boas intenções, de compromissos, de fazer o que se supõe que deva ser feito. E ao contrário da sua “boa intenção”, acaba oprimindo ainda mais e com isso vai crescendo, ocupando espaços.
— Eu tentei ajudar Ronaldo a se comprometer com JP.
Um silêncio de quase um minuto inteiro toma conta da escuridão talhada pelo retângulo de luminosidade da porta aberta até Eve decidir quebrá-lo.
— Você sabe que o que você e o desembargador tiveram, ou o que você acredita sentir por Lucas, não passa de fobias, imperfeições, oscilações e arroubos, não é mesmo?
— Lucas… — um gatilho emocional é despertado em Márcio Antônio, um gatilho que até então ele, sua mente, parecia ter evitado — Lucas, Lucas, eu preciso vê-lo. Salvá-lo. Ele estava fora de si… Sim, sim… Lucas estava fora de si quando nos confrontou, a mim e ao pai, lá, na sala daquela maldita chácara…
— Ah!, Márcio Antônio, realmente você me surpreende. Não sei mais até onde essa fragilidade, essas reações paradoxais da sua mente estão de fato te afetando. A sua transição pelas três instâncias sem sombra de dúvidas deveriam lhe fornecer algum bom arcabouço…
— Do que você está falando?
— Você joga esse jogo há tanto tempo e ainda assim não sabe como funciona? Ou finge não saber? Lucas nunca te confrontou… — Eve diz, mal conseguindo esconder a satisfação evidente — O desembargador está morto. Abigail está morta. E o filho deles também. Todos assassinados por Ronaldo.
— Do que você está falando? — Márcio Antônio, incrédulo, volta a questionar. A voz, mergulhada num genuíno assombro, retomando o timbre necessário, conforme tenta dar alguns passos adiante a fim de diminuir a distância entre ele e Eve, sendo impedindo, decerto, pelas correntes travando seus tornozelos — Lucas está preso… — ele diz mais para si mesmo do que para a silhueta parada não muito distante enquanto o olhar corre de um lado ao outro e a mão direita segue tremendo — Ronaldo o está mantendo preso, dopado, anestesiado, assim como você, ou vocês, estão me mantendo preso aqui também.
— Você sabe muito bem porque está aqui. Você sempre se faz de cego e surdo quando convém, não é mesmo? Você até acredita que pode sonhar… — Eve devolve; um sorriso amargo e tenso enquanto deixa escapar um suspiro, longo, antes de prosseguir — A negação é um mecanismo de defesa para afastar assuntos muito complicados ou esconder verdades chocantes — ele faz menção em dar um passo à frente, mas desiste — Jonas está morto.
Márcio Antônio é atingido por um pressentimento híbrido, uma sensação mesclada a um déja vu remetendo-o a passado que faz seu coração acelerar diante de uma recordação perdida.
— Jonas está morto com o corpo atado a uma cama, estrangulado ao lado do corpo da mãe.
Márcio Antônio, por um instante, não se dá conta do que está vivenciando. Tudo é tão confuso que não consegue encontrar uma reação condizente com o que está sentindo. Seu âmago, sua cabeça e seus músculos voltam a arder, ao mesmo tempo que a respiração volta a ficar ofegante, não lhe deixando mais respirar. Mas ele precisa respirar, sim, precisa respirar para continuar vivo.
— Você não vai conseguir sair daqui. Dessa vez, Ronaldo não irá encontrá-lo. Ele está debilitado. Precisa de ajuda. E ele vai sair disso, desse poço. E nesse processo, não tenha dúvidas, Márcio Antônio, ele vai te esquecer. Por completo.
30 de julho, 2017, domingo
A queimação no estômago e os tambores retumbando em seus ouvidos persistem, Gabriela lastima caída sobre a cama, ainda tomada pela sensação de que uma força externa parece estar disposta a invadir sua consciência, seu córtex cerebral. Mas resiste. Precisa resistir. Como antibióticos se defendendo bravamente do causador de uma doença.
Gabriela inspira, expira, inspira e expira pausadamente pelo diafragma ao invés do peito até reunir forças o suficiente para pôr-se de pé, lutando para ignorar todas aquelas sensações agressivas. Precisa verificar o dossiê do paciente Eve e se for preciso revisá-lo uma, duas, três, cem vezes até ter a certeza de que não deixou passar nada, por mais improvável que isso possa parecer.
“Se atenha aos fatos existentes. Apenas isso”.
O que Júlia Mathias enxergou? Gabriela interroga a si própria, mas também a tudo e a todos e ao nada ao seu redor, enquanto caminha inicialmente um bocado trôpega, apoiando-se no que podia, até alcançar a entrada do escritório, parando sob a ombreira da porta aberta, de onde esquadrinha de imediato um envelope um tanto enrugado e disposto de qualquer maneira sobre a mesa, da mesma forma como encontrou o envelope que Eve lhe deixara na clínica.
Antes de seguir adiante, ela coloca as mãos nos bolsos da calça, buscando o envelope do seu paciente, acreditando tê-lo guardado ali, mas não o encontra e deduz, por fim, ao passo que segue em direção à mesa, que aquele invólucro a poucos centímetros de distância é o mesmo que encontrara na clínica, apesar de não se recordar de como e quando o abandonara.
Ao se aproximar da mesa, enfim, decide guardar o tal envelope junto ao dossiê do paciente, contudo, diferente do invólucro anterior, este não está destinado a ela e nem a ninguém, Gabriela constata um pouco admirada, abrindo a sobrecarta, sem pestanejar.
No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada;
Os covardes o fazem com um beijo,
Enquanto o bravo o faz com a espada!…
É um poema de Oscar Wilde, Gabriela reconhece antes mesmo de terminar de lê-lo. Um trecho do poema A balada do cárcere, escrito pelo dramaturgo em seu exílio após a prisão sob a acusação de pederastia. Mas por que esses versos foram parar no seu apartamento? Quem os deixara ali? Dorlan? Mas é claro que só pode ter sido o seu companheiro. Porém, com que propósito? Que recado quer dar? E por que o deixara num papel amarrotado e jogado de qualquer maneira e sem assinatura?
Súbito, ela é tomada por uma vertigem, por uma sensação de que tudo está rodando, ora indo para frente, ora para trás, acompanhada de um zumbido no ouvido, náusea, espasmos na laringe e um gosto vagamente metálico na boca… Cambaleante, consegue chegar até o pequeno sofá, defronte à mesa, deixando-se cair sem qualquer cerimônia à medida que se esforça em recordar a imagem do companheiro, qualquer tipo de lembrança, entretanto, esbarra apenas com a certeza, uma contestável certeza de não ter visto Dorlan nos últimos dias, ou até mesmo antes disso…
Gabriela, seguindo a um impulso irracional, faz menção em se levantar para iniciar uma busca pelo pequeno apartamento no intuito de localizar qualquer registro que comprove a existência de Dorlan, um despropósito, é claro, constata no instante seguinte, contudo, inusitadamente necessita dessa certeza, mas é impedida de prosseguir, sendo acometida por uma nova leva de mal-estar e uma iminente sensação de desmaio acompanhada de um aumento na frequência cardíaca.
Com a cabeça reclinada sobre o encosto do sofá, Gabriela sente uma redução na ansiedade, no tônus muscular, na coordenação, da mesma forma que percebe as pálpebras pesando, como se estivesse sendo induzida ao sono, envolta em véus limitando suas percepções sensoriais…
Quem é você, Dorlan?, ela balbucia, mas decerto não se recordará, não assimilará esse questionamento, pois ele, em verdade, foi elaborado por seu subconsciente.

Assim como não recordará da presença de Orlando, observando-a, respirando lenta e profundamente até decidir apertar o nó da gravata, num gesto um tanto afetado, enquanto esquadrinha o entorno daquele pequeno escritório daquele pequeno apartamento até voltar a deitar o olhar sobre a jovem psiquiatra.
— Há coisas que não são daqui. Que não deveriam estar aqui. E você é uma delas — ele balbucia mesmo tendo a certeza de que Gabriela está entorpecida, completamente entorpecida — Até quando a senhorita pretende resistir?